Vamos pôr a conversa em dia sobre o Festival da Canção
Este foi o primeiro ano em que vi o festival da canção. Acho que não fui caso único - muitos dos que nunca viram, começaram a ver; muitos dos que já tinham desistido, voltaram a assistir; e, pelo estilo da coisa, os que antes eram acompanhantes assíduos, agora já podem não achar graça à coisa. Digo isto porque para além de todo este fôlego que o Salvador Sobral deu ao Festival da Canção, é impossível não dar os louros à RTP, que deu uma volta de 180º ao programa. Se compararmos este novo formato com aquele em que a famosa Suzy ganhou, parecem ser duas coisas completamente diferentes - e é natural que os fãs de um não sejam precisamente os fãs do outro. Ainda que a diversidade musical continue a existir - não houve, este ano, nenhum exemplo "pimbalhão", mas podia - o antigo festival era muito mais "popularucho" e fraco, tanto em letras, como em melodias, passando por interpretes e mesmo autores.
E foram estes dois últimos factores que mudaram no formato - e que mudaram mesmo "o" formato. Diria mesmo que os autores e compositores foram a chave de tudo, mais ainda que os intérpretes. Isto porque, este ano em particular, acho que houve músicas incríveis com interpretações muito más. O problema é que as músicas têm de ser avaliadas como um todo e não se pode passar uma canção só por ela ter uma letra bonita. Para além disso, ouvindo apenas a música uma vez, aquilo que nos fica é a ideia que o intérprete nos passa (tanto vocalmente como fisicamente) - não conseguimos prestar a atenção devida à letra, nem à construção da melodia. Essa é a maior razão para muitas pessoas não terem gostado da "Amar pelos Dois" o ano passado - a figura do Salvador é estranha, com todas aquelas caretas e movimentos de mãos que muitas vezes o fazem parecer um autêntico totó. Se calhar, se a ouvissem na rádio, gostariam da música logo à partida: mas a presença do intérprete, naquele caso, pode ter sido um obstáculo.
Este ano não aconteceu o mesmo no que diz respeito à presença dos artistas, mas não tenho dúvidas de que muitas músicas foram altamente prejudicadas pela escolha do/a cantor/a. O exemplo mais óbvio é a música "Anda Estragar-me os Planos" que, para mim, tem a letra mais bonita de todas. É in-crí-vel. Mas a interpretação é feita de uma forma tão sorumbática, estranha, grave, meio monocórdica e pouco convicta que vai tudo pelo cano (a figura e a sua presença também não ajudam). A melhor forma de vermos isto é tendo um termo de comparação. Basta ouvir a interpretação da Joana Barra Vaz apresentada no festival e uma do Salvador, que ele colocou no seu facebook, e ver a diferença. Esta música, na voz dele, voltava a ganhar os prémios todos.
O mesmo acontece com a "Só Por Ela", de Peu Madureira. A letra é muito bonita, a melodia também - mas aquele estilo faduncho deu um tom pesado à música, quando ela, cantada docemente, se torna algo completamente diferente. A prova? Está aqui, no instagram da Carolina Deslandes, que a interpreta incrívelmente. Não tenho dúvidas que esta seria a música vencedora se tivesse sido ela a cantar. Sei que havia muita gente fã da música conforme ela foi apresentada, mas acho que não batia a cara com a careta. Faltava ali algo. E aquilo não era fado, mas também não era outra coisa qualquer. Era incoerente e de certa forma inconsistente. E a música, mais uma vez, não era a culpada - mas sim quem a cantou.
Mas falemos da vaca fria: a música vencedora. Estão prontos para o que eu vou dizer a seguir? De certeza? Estão bem sentadinhos? Então pronto: eu gosto da canção. Mais uma vez, não adoro a interpretação. Mas como disse, neste caso, não temos outra hipótese senão avaliar as composições como um todo - e de tudo o que nos foi apresentado na final, esta foi a que eu mais gostei. Para mim, "O Jardim" e a "Para Sorrir Não Preciso de Nada" - as que estiveram taco a taco para vencer - têm imenso em comum. Tanto a voz da Catarina Miranda como a Claúdia Pascoal são dois vidrinhos - parece que se vão partir a cada nota que atingem. Eu não sou apreciadora desta característica, nao adoro vozes frágeis e muito menos quando se posicionam lá em cima, nos agudos - e, na verdade, acho que também o público gosta de vozes mais seguras. Em ambas há a sensação de que desafinam, quando na verdade (pelos a mim, que não sou um expert) elas simplesmente tremem com a voz, porque é assim que cantam. Se isso dá um efeito estranho? Dá. Se acontece mais com a Claúdia Pascoal? Acho que sim. E acho que a Catarina Miranda terá outra imponência, tanto na voz como na presença, mas no final foi a música que contou. Nem sequer vou avaliar se a emoção da Pascoal é, ou não, sincera (já vi muito escrito sobre este tópico); para mim, prevalece o facto da letra ser mais bonita, fazer mais sentido, ter dor, luto e esperança nela contida. Na outra música, não sinto grande coisa. Mas, curiosamente, outra coisa que penso que têm em comum é o facto de primeiro se estranharem e depois se entranharem - não gostei de nenhuma delas quando as ouvi pela primeira vez, e fui apreciando à medida que as fui ouvindo e conhecendo melhor (ao ponto de já ter feito uma versão minha, ao piano, d'"O Jardim).
Aquilo que ninguém podia esperar era que acontecesse o que aconteceu o ano passado. É verdade que o festival melhorou imenso, mas não podemos ter sempre músicas brilhantes; não podemos ter sempre combinações música-autor-compositor-arranjo perfeitas. Eu lembro-me como se fosse ontem da minha pele de galinha quando ouvi apenas cinco segundos da "Amar pelos Dois". E isso é raro. E se não ganhámos a Eurovisão durante cinquenta e tal anos, também não podemos agora exigir, quais ditadores, que ganhemos outra logo de seguida.
Eu não conheço as músicas dos outros países, não sei a competição que vamos ter, mas por todas as razões e mais algumas penso que não vamos trazer o troféu para casa. O trabalho da Isaura e da Claúdia Pascoal vai ser ingrato, pois vão estar sempre na sombra do Salvador Sobral e à luz de todas as comparações. Mas não acho que vamos fazer má figura. Pelo contrário. Mais uma vez, acho que é uma música que sabe tocar, mesmo quando não sabemos o que está lá "escrito"; tem alguma alma e só precisa de ser aceite e mais rapidamente entranhada, em vez de estranhada. E acho injusto tudo aquilo que se anda a escrever, entre plágios (a sério? agora virou moda?) e artistas dizendo que "esta canção não representa o povo e a cultura portuguesa". O que é uma música que representa um povo? Vamos lá cantar o hino? Vamos falar do bacalhau e dos pastéis de nata? Da corrupção e do Palácio de Belém? Dos Descobrimentos e do Pedro Álvares Cabral? É como no ano passado, quando meio mundo dizia que a música do Salvador não era música de festival. Pois não era. Talvez por isso é que ganhou.