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Entre Parêntesis

Tudo o que não digo em voz alta e mais umas tantas coisas.

17
Nov24

Uma joaninha sempre comigo

Foi relativamente cedo no processo de doença da minha irmã que lhe criei uma bucket-list. Só tomou a forma de lista no último par de meses da sua vida, mas a verdade é que na minha cabeça existia há muito tempo. Era uma bucket-list dela mas que consistia em coisas para fazer comigo, mesmo que ela não exprimisse que as queria fazer. Pronto, ok, na prática era a minha bucket-list - mas isso agora são pormenores que não interessam nada.

Continha das coisas mais mundanas - desde arranjar as sobrancelhas - até às mais especiais, como fazermos uma tatuagem em conjunto. Cumprimos várias e fomos muito felizes. Fizemos karaoke no banho e no carro, enquanto ouvíamos a playlist que fiz para ela no Spotify, recheada de músicas dos tempos em que ela me fazia ouvir Jamiroquai, Manu Chao e Craig Davis enquanto tirava o próximo CD da sua malinha; fomos fazer compras várias vezes e trouxemos as mãos cheias de sacos; fomos às festas da cidade, jogamos matraquilhos e comemos aqueles geladinhos cremosos, ideais para quem não pode comer grandes sólidos; arranjei-lhe as unhas e descobri que, apesar de não ter o dom da manicure ou pedicure, o amor faz com que nos safemos em qualquer tarefa; arranjamos as sobrancelhas uma à outra e foi tão divertido que os músculos da barriga dela expulsaram um catéter que lá tinha espetado, de tanto rirmos e sorrirmos - seguiu-se um banho de soro até descobrirmos onde havia uma fuga. Fizemos um escape game, festejamos aniversários e até fiz uma pizza party eleitoral onde ela provou as nossas pizzas caseiras; fiz-lhe uma festa surpresa depois do seu internamento mais longo, com o tema "a Joaninha está de volta ao seu jardim", com pequenos insetos vermelhos de madeira colados em tudo o que era palito e espacinho, rodeados de balões verdes de vários tons, qual jardim tropical. A verdade é que a festa não correu tão bem como eu gostaria nem resultou na alegria exponencial que desejava proporcionar à minha irmã - mas não me arrependo nem um pouco de a ter feito. Fomos comer um gelado à beira-mar, na minha nova gelataria favorita; e, durante vários dias, ela tentou-me ensinar o básico do tricô: um conhecimento que não ficou muito bem consolidado, mas com que tenho material para trabalhar e melhorar nos próximos anos.

Por realizar ficaram alguns lanches com amigos, ver em conjunto a nova temporada da Emily in Paris e fazer uma tatuagem. Esta última era algo especial e com simbolismo, mas ela tinha medo de comprometer o seu estado de saúde, já tão débil; e muito embora tivéssemos luz verde da médica para avançar, a minha irmã tinha receio e não sabia bem o que fazer. Já tinha decidido, logo no início do processo, que faria uma tatuagem caso se curasse; quando lhe disse que, independentemente de tudo, eu ia fazer uma, ela disse que para ela já não fazia sentido, pois não ia ficar curada. Respondi-lhe que aquilo que ela estava a fazer requeria muito mais coragem do que uma cura: viver e lutar contra um cancro incurável exige uma coragem e dureza que não é para todos. E isso merecia ser celebrado.

A verdade é que não houve tempo. Quando partilhei com ela a minha ideia de desenho - e após ter chorado um bocadinho com a ideia do que eu queria fazer - ela reiterava que continuava sem saber ao certo o que queria colocar na pele. Respondi algo que não viria a ser verdade: que ela tinha tempo para pensar. Não teve.

Mas na bucket list continuavam coisas por riscar - e se não houve tempo para as fazer com ela, decidi rapidamente que as ia fazer por ela. E assim, nem duas semanas depois de nos ter deixado, lá estava eu, de braço estendido em cima de uma maca, a fazer a joaninha que tinha prometido. A minha sobrinha veio comigo e fez a sua primeira tatuagem também... E foi especial. Porque não o fiz com a minha irmã mas consegui fazê-lo de uma maneira única, com a pessoa que mais herdou dela; porque é algo que partilhei com a minha sobrinha e que não vou esquecer; e porque ficará eternamente marcado na minha pele que a Joana(Inha) está sempre comigo.

Se era estritamente necessário marcar de forma tão visível a dimensão e o impacto que a minha irmã teve na minha vida? Não, claro que não era - se eu o sei, é o suficiente. Mas era importante para mim... porque a parte física dela apagou-se deste mundo e custa-me não a ter ao meu alcance. Sei que tenho fotos, vídeos e, claro, a memória - mas queria ter um sitio rápido e imediato para onde olhar e pensar: é ela, comigo, aqui.

E por isso, agora sim, metafórica e rigorosamente, tenho uma joaninha sempre comigo. Não só cravada na alma e na memória... mas na pele, para sempre, até ao fim dos meus dias. Não sei se sou eu que sou muito dorida, mas de cada vez que a agulha entrava na pele eu fazia um esgar de dor - e em todos esses momentos eu lembrei-me dela, de tudo o que ela sofreu, de todas as vezes que teve de ser picada... e das tão poucas vezes que se queixou. O mínimo que eu podia fazer era aceitar a dor e olhar para o resultado que se desenhava na minha pele. Agora, onde eu estiver, ela está - e caramba, fofinha, como é bonita a República Dominicana. 

 

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