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Entre Parêntesis

Tudo o que não digo em voz alta e mais umas tantas coisas.

21
Jul21

Uma história com princípio, meio e sim! #10

A construção de um vestido de noiva e o embate num dogma da sociedade

A prova na Rosa Clará aconteceu a uma quarta-feira – e na sexta seguinte o país fechou. De volta ao confinamento. A minha prova com a Pureza estava marcada para meados de Fevereiro e acabou por só acontecer no final de Abril, quando voltamos a desconfinar. Foram dois meses de espera, ânsia e sofrimento.

A Pureza tem agora o seu novo espaço no Porto, num edifício lindo junto à Biblioteca Municipal, onde atualmente se encontra a Associação de Ourivesaria e Relojoaria de Portugal. Foi lá que fui e que fiz a primeira prova com ela – algo muitoooo diferente da prova anterior, giro para algumas pessoas, potencialmente assustador para outras.

Não acho que fazer um vestido por medida seja para todos. Na minha opinião é preciso ter uma noção mais ao menos clara do que se quer, conhecer bem o próprio corpo e os nossos gostos e, diria até, ter alguma experiência no que diz respeito aos tecidos e à sua fluidez (não tem de ser nenhum expert – basta alguém que goste de fazer compras e toque em muita roupa). Pessoas sem qualquer tipo de noção do que querem, do que gostam, do que fica bem... o melhor é irem a uma loja e experimentar um bocadinho de tudo para tirar alguma conclusão. Depois se, tal como eu, quiserem alguma coisa única e ter uma palavra a dizer sobre o processo de construção do vestido, aí sim, podem passar para uma experiência deste género. No entanto, fica o aviso: a magia de nos vermos com um vestido de noiva (a menos que experimentem algum da coleção para venda) não existe numa prova destas, o que pode ser desconcertante para algumas noivas.

Basicamente, a primeira prova consiste em experimentar várias peças e conjugá-las, construindo o vestido bocadinho a bocadinho. Como é que queremos o top? Decote em bico, redondo, mais profundo ou mais conservador? E a saia? Em chiffon, tule? Plissada ou com um corte reto? Com cauda ou sem cauda? E as mangas? Com, sem? Compridas, curtas ou meio-termo? Rentes ao braço ou fluídas? Depois de tudo isto, tiramos 568 medidas e voilà! No fim, parecemos umas bonecas repletas de alfinetes, com uma manga diferente de cada lado e a cabeça a carborar forte até decidir aquilo que realmente queremos.

As minhas guidelines eram simples: queria um vestido com um decote em V, com mangas soltas, muito fluído e sem saiote. Como bónus gostava que tivesse várias camadas (no fundo, ter vários vestidos num - tirava a cauda, depois isto, depois aquilo) e que fosse versátil o suficiente para, eventualmente, o usar numa outra ocasião. Tinha mandado várias fotos – incluindo a do tal vestido de que gostei na Rosa Clará – e o processo inicial foi extremamente simples.

Enquanto alguém que gosta de moda e que ama têxtil – sem esquecer que também já tinha tido aquele primeiro embate, que me atirou para longe dos contos de fadas que tinha imaginado – eu gostei muito da prova e senti-me no controlo do meu próprio vestido. Sei que para a minha irmã, que não tinha estado na primeira prova e não me viu a experimentar um vestido a seguir ao outro, aquilo não foi a representação daquele sonho que também ela tinha para mim. Mas, no meu caso, foi uma sensação nova - estranha, mas boa. Senti-me sempre muito segura e calma nas mãos da Pureza e das suas profissionais – embora mentisse se dissesse que o caminho até ter o meu vestido não teve lombas e solavancos.

Fui a última pessoa, de toda a festa, a ter vestimenta – casei no domingo e só na terça-feira é que trouxe a roupa para casa (sendo que na sexta anterior tinha ido escolher a renda para a cauda). Muitas pessoas perguntavam-me se eu não estava em stress com isso, e a minha resposta era verdadeira: não, não estava. Independentemente dos dramas com o vestido, estava mais do que segura da minha escolha e das mãos em quem tinha deixado esta tarefa tão importante. Seria para mim muito mais stressante ter comprado o vestido numa loja qualquer que os importa e que, com todos os problemas inerentes ao covid, podia sofrer atrasos indesejados. Desta forma eu sabia que o meu vestido estava a ser feito de raiz em Lisboa (não em Barcelona, não na China ou no Bangladesh) e que, caso qualquer problema surgisse, eu estava a três horas de distância de o resolver (ou, pelo menos, de ter o poder de decisão para tal). Como empresária da têxtil não posso esconder que me deu um prazer extra dar trabalho a uma empresa de moda portuguesa, com costureiras competentíssimas e de um trabalho de excelência.

No total fizemos cinco provas (três no Porto, duas em Lisboa): a primeira, onde “montamos” o vestido; a segunda, onde vimos pela primeira vez o vestido como uma peça completa e acertamos detalhes (como o tamanho do decote e escolhemos as rendas); a terceira, onde subimos a baínha e vimos o trabalho feito até então; a quarta, onde decidimos nova renda para a cauda (depois de um percalço com a primeira renda que escolhi, que não chegou do fornecedor) e voltamos a ver todos os detalhes do vestido, incluindo o véu; e a quinta, a primeira com a cauda e o vestido completo, onde nos ensinaram a vestir e fechar tudo (ou a tirar as partes), altura em que o pude finalmente levar para casa!

As provas, embora fossem momentos de ânsia, não eram momentos muito felizes. Nunca, em nenhuma fase do processo, me senti apaixonada pelo vestido ou sequer pela ideia daquilo que ele viria a ser. E aí perguntam-me: mas depois de tantos anos a ver vestidos, não sabias o que querias?! A resposta é não. Nunca achei que me iria casar. Via os vestidos como uma utopia. Pensava muitas vezes: “usaria este se me casasse com 50 anos. E este se não tivesse as ancas largas. E este se o casamento fosse na praia”. Nunca pensei: “é este!”. Sabia, à partida, os estilos que gostava e não gostava. Estava muito inclinada para o estilo boho e sei que nunca vestiria um vestido com corte sereia. Mas não sei até que ponto não levaria um vestido de princesa, se as circunstâncias fossem as ideais para isso, percebem? Dependia de tanta coisa! E como casar nunca esteve nos planos, não era algo com que me preocupasse. E quando chegou a altura... fiquei perdida. Perdida com tanta coisa que tinha visto ao longo dos anos, perdida com o facto de nada estar a decorrer conforme eu desejava e contava, perdida pela frustração de não sentir aquilo que aparentemente todas as noivas se sentem – lindas, maravilhosas e especiais.

Aqui, o facto de ter um vestido feito só para mim também não ajudou: vi-me muitas vezes indecisa após as provas, pois sentia que havia qualquer coisa que eu não gostava mas que não sabia explicar. Inicialmente o vestido era para ficar com uma linha (demasiado) simples e ao longo do tempo foi ficando cada vez mais trabalhado: a cauda era para ser em chiffon com fitas de renda e passou a ser toda rendada, era para ser só atrás e no final acabou a cobrir a saia toda; o decote sofreu várias alterações (sempre para maior), entre outros detalhes. A minha mãe, irmã e cunhada iam dando ideias e inputs, mas eu sentia-me desamparada. E, do desamparo, veio a incompreensão.

Expliquei muitas vezes, ao longo destes meses, a importância que tinha para mim envolver o Miguel no processo da escolha do vestido. Sou normalmente uma pessoa muito decidida e se gostar de uma peça trago-a para casa e uso-a, independentemente das opiniões alheias. O Miguel é a minha exceção. A opinião dele pode, de facto, mudar a minha – e eu tenho de admitir que tenho uma permeabilidade e uma abertura às opiniões dele diferente das opiniões das restantes pessoas. Por razões diversas o processo do casamento foi, durante muitos dias, duríssimo. E era ele, ao final do dia, quem me ouvia e apoiava. Era a minha muleta. Muleta essa que me faltou neste processo – que se iniciou realmente em meados de Abril, altura em que estava extremamente fragilizada – acima de tudo porque a tradição assim o dita.

Não consigo perceber porque é que os noivos não podem ver o vestido da noiva (e vice-versa). Para mim era a opinião mais importante de todas – e tive de esperar até ao último segundo para poder saber, finalmente, aquilo que ele achava da minha escolha. Mas atenção: fi-lo porque percebi que, para ele, o efeito surpresa era algo bom. Ele queria ver-me vestida, pela primeira vez, no altar – e eu compreendi. O que não aceitei – e que me doeu e dói até hoje – foi a incapacidade generalizada dos outros perceberem o meu ponto de vista, por muito que eu tentasse explicar. Senti-me invisível – eu a minha dor, tão evidente para mim naquele momento, e que eu achava que era impossível não transparecer para os outros. Eu dava explicações racionais e emocionais, eu tentava desconstruir e desvalorizar o lado da tradição... eu tentei de tudo. Descobri que é um autêntico dogma, uma luta que não vale a pena travar. Não é só o facto de estar enraizado na sociedade, é ser uma questão central do casamento. Pessoas com quem íamos falando esporadicamente perguntavam pelo vestido e, logo a seguir, retorquíam: “o Miguel não viu o vestido, pois não?!”.

E eu não estava para fretes. “Não, não viu, mas devia”. E depois explicava. E normalmente a resposta era sempre a mesma: “o noivo não deve ver o vestido, dá má sorte”. E eu não tinha outra solução senão seguir caminho e continuar na minha, embora respeitando sempre a vontade do noivo não ver, de facto, o vestido. E o que teria mudado, perguntam vós?

O Miguel não é um expert em moda e muito menos em vestidos de noiva. Mas tem uma especialidade: chama-se Carolina. Se o Miguel estivesse nas provas e visse na minha cara que eu não estava feliz com o vestido – como de facto aconteceu - ,  teria dito qualquer coisa, sugeria mudanças, faria críticas construtivas e colocar-me-ia sempre acima das suas vontades próprias. No limite, se não houvesse mesmo nada a acrescentar, dizia-me: “estás linda, não te preocupes, eu não mudava nada!”. E eu podia nem acreditar, mas sossegava. Porque aquele vestido era para mim, mas a pensar nele. E se ele gostava... eu ia gostar também.

Mas não foi assim. Chorei muito. Falei muito com ele até chegar a um terreno sólido em termos de decisões (eu quis saber como era o fato dele, mas ele preferiu ficar na ignorância até me ver no dia do casamento), até dissecar todas estas dores, até deixar que a roupa fosse um dos maiores obstáculos deste casamento. Percebi que era muito mais que roupa que estava em jogo: era uma dor muito profunda de incompreensão, um sentimento de invisibilidade muito grande perante quem me rodeava. Eu falava, mas não me ouviam. Senti sempre que a tradição era mais forte que a minha vontade e a minha crença – e isso mexeu muito, muito comigo.

Um dia o Miguel disse-me que era eu que fazia o vestido, tal como era ele que faria o fato. Ele sentia-se impecável dentro da roupa que escolhera – e sabia que, no dia D, ia estar impecável para mim. Eu só tinha de me sentir igual. Linda, confiante e impecável. Confiar no meu instinto, nas minhas decisões e vestir aquela peça com a confiança com que visto tudo o resto quando quero arrasar.

E foi assim que eu enfrentei a última prova: com as palavras dele a fazerem-me eco na cabeça, de queixo levantado e esperança de que tudo estivesse bonito. E estava. A linha que separa um vestido bonito de um piroso é ténue, mas sei que no meu caso esteve longe de ser ultrapassada; é um vestido intemporal, sem modas, frufrus ou breloques. Não me favorecia em tudo (acho que me alargava ligeiramente), mas era de uma excelência magnífica no que diz respeito aos materiais e à construção. E, acima de tudo, tinha detalhes que gritavam "Carolina!". 

Não casei com o vestido dos meus sonhos, porque eu não sonhei com nenhum vestido. Mas casei com um vestido que tinha muito de mim e com a certeza de que fiz a escolha certa quando escolhi a fazer um vestido à medida, de que estava a usar uma peça única – minha, só minha! - e que daqui a uns anos olharei para trás e direi: caramba, estava linda!

 

Seguem fotos da segunda, terceira e última prova (das restantes não tenho ou são muito más) - assim como algumas do grande dia. 

 

Segunda prova - ver o vestido construído pela primeira vez e escolha das rendas:

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Terceira prova - ver pela primeira vez a aplicação da renda no topo e nas mangas (inacabadas); decote ainda muito subido; cauda por fazer, ainda com a renda e ideia original, de cair simplesmente para trás:

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Última prova - tudo finalizado!:

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No grande dia:

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