Uma familiar chata nas trincheiras do cancro
É sobejamente conhecida a minha difícil relação com os médicos. Tragam as aranhas, os ratos, o escuro, os palhaços e as bruxas: não há nada que eu tivesse mais medo, em miúda, do que indivíduos de bata branca. Na verdade não é medo: é pânico. Era irracional, profundo; uma dor que ultrapassava a parte física e que transpunha a alma. Era inimaginável, sufocante. De tal forma que só a ideia de entrar num hospital me deixava nauseada e era incapaz de fazer a distinção entre o médico-profissão e o médico-pessoa. Um médico era um médico - e era sempre o vilão da minha história.
A minha racionalidade não era suficiente para ultrapassar o medo - e muito menos para ter a frieza de perceber que os médicos são sempre a nossa salvação nos momentos de maior aperto. Em alturas em que a nossa saúde parece de aço e a atenção aos males dos outros não é o nosso forte, não imaginamos que nalgum dia - mais cedo ou mais tarde, a verdade é essa - as vidas dos nossos entes queridos vão estar nas mãos daqueles que outrora receamos. Vá... detestámos. Pronto, está bem, eu digo a verdade: odiámos.
Agora, seis meses depois do desabar do mundo da minha família, passei mais tempo em hospitais do que achei que passaria durante a vida inteira. São tempos de aprendizagem profunda: sobre a importância de aproveitar a vida, sobre fé e esperança, sobre os médicos e a medicina, sobre as pessoas, sobre a bondade, sobre a tolerância à dor que cresce a cada dia que passa, sobre medicamentos - as suas maravilhas e as suas consequências. Nunca quis ser médica nem enfermeira nem nada que tivesse que ver com saúde - longe de mim ter alguma coisa que ver com aquele mundo que tanto detestava! Mas hoje em dia dou por mim a querer muito ser médica - quero perceber o que me dizem, o que receitam, o que escrevem. Quero ajudar, quero fazer parte da cura. Quero saber explicar aos outros, quero entender os olhares, quero perceber a gravidade dos problemas - sem pena, sem paninhos quentes, sem positividades tóxicas. Gostava de saber fazer diagnósticos em vez de simplesmente acreditar nos diagnósticos dos outros. Gostava de não ser refém dos conhecimentos de alguém.
Por isso ouço. Ouço como se estivesse na aula mais importante da minha vida. Retenho tudo o que me dizem. Decoro o nome estranho do cancro, da proteína que indica uma boa receptividade à imunoterapia, do medicamento difícil de pronunciar, a lista de todos os sintomas de alerta, os exames que são mesmo necessários ou só aqueles que fazem parte do protocolo. Era mais feliz há seis meses, quando nunca tinha ouvido falar de uma PET, do PDL-1 ou do pembrolizumab; mas hoje trago no currículo a bagagem pesada que dois cancros na nossa família nuclear nos fazem carregar. Sei muito mais. Não sou médica - nem iria a tempo de ajudar quem amo se hoje fosse tirar o curso. Por isso agarro-me ao que tenho: ao que ouço, ao que leio, ao que me explicam. E também à lógica, à racionalidade e ao sentido crítico. Faço muitas perguntas. Sugiro coisas. Exijo que me expliquem. Sou chata. Sou persistente. E luto, todos os dias, pela vida de quem me rodeia.
Mas a verdade é que sinto que, de alguma forma, este meu espírito combativo e absorvente de informação não é bem recebido por grande parte da comunidade médica. Acho que se espera dos pacientes e seus familiares a submissão de alguém cuja vida está nas mãos dos sujeitos de bata branca; não é suposto perguntarmos, mas sim acreditarmos; não é suposto queixarmo-nos, mas sim agradecermos; não é suposto falarmos, só ouvirmos.
Sei que sou uma mulher nova, muitas vezes perante médicos com tantos anos de carreira como aqueles que eu conto de vida - mas por muito empenhados que os médicos estejam, não há nenhum que queira mais a cura do que eu. Não há ninguém com mais foco nem desejo nem dor. Se as minhas pessoas não estão capazes de perguntar, eu pergunto. Se não são capazes de contestar, eu contesto. Se não são capazes de decidir, eu decido. Defendê-las-ei até ao fim, sem me preocupar com egos alheios, machismos exacerbados ou faltas de paciência por parte de familiares chatos. Não aceito "porque sim"'s como resposta; não quero saber o que dizem ou acham de mim depois de sair do consultório, se reviram os olhos, se me acham insolente, insistente ou com a mania. Porque foi esta minha forma de estar que me fez atalhar caminho quando, dois meses depois de um primeiro diagnóstico, apareceu outro que fez tremer os meus alicerces como um terramoto de 9.5 na escala de Richter; foi isso que me deu clareza sobre o que tínhamos pela frente e descanso por não ter de aprender todos aqueles termos pela primeira vez. Eu quero saber, quero ajudar, quero fazer parte da cura. Batalho com o coração, com a cabeça, com a alma; com amor, com inteligência e com instinto. E se um dia disserem que não consegui, pelo menos não poderão dizer que não tentei. Dei tudo. Dou tudo, todos os dias, para que sejamos, até velhinhos, dezasseis à mesa.