Um ano de tatuagem. Arrependimento?
Fez há dias um ano que fiz a minha tatuagem. Mentiria se dissesse que foram muitas as vezes em que falei sobre ela - e foram ainda menos as ocasiões em que me fizeram alguma pergunta (em grande parte porque durante a maior parte do tempo uso relógio, fazendo com que ninguém note que tenho a pele marcada para a vida). Ainda assim, quando o assunto vem à baila, a pergunta é sempre a mesma: "doeu?". E eu acho curioso como isso não reflete aquele que foi o meu maior receio na altura, mas que por outro lado demonstra muito do estilo de vida atual: o pensamento focado no agora, sendo que o futuro a ele o pertence. A mim apoquentava-me a ideia do arrependimento, do poder mudar de ideias. Não eram os 15 minutos de dor; era o futuro, os anos que tenho pela frente, que me preocupavam.
Entretanto, desse futuro de que receava, já passou um ano. Arrependimentos: zero.
Gosto muito da minha tatuagem - e guardo dois momentos deste ano em que ela foi particularmente importante para mim. O primeiro foi em Dezembro, no dia em que fui operada à fístula criada por o quisto que tive no cóccix. Em momentos importantes sou muito de amuletos, de algo físico que me sirva de suporte e inspiração (uso normalmente peças dadas ou herdadas das minhas avós, curiosamente); no momento da entrada no bloco, por força das circunstâncias, uma pessoa vê-se despida de tudo - da roupa, dos anéis, dos adereços. Quase de si própria. A ideia que fica é que somos só um nome, associado a um diagnóstico que tem no seu foco uma cura - e que os bisturis, e todo aquele aparato de instrumentos que vemos à nossa volta, estão prontos a trabalhar sem se importarem com quem está deitado naquela cama. A solidão - e o medo, acima de tudo - que senti ali, enquanto estava sozinha (e foi por pouco tempo!), foram aterradores. E a única coisa que tinha para me agarrar, a única coisa que era minha no meio daquelas roupas e toucas e fios que estavam coladas ao meu corpo - e médicos, e luzes, e instrumentos, e aquele cheiro a éter que nos entra pelos pulmões até à alma - eram as minhas aspas. Foram elas a última coisa que vi quando me senti a desfalecer, um minuto depois de ter pedido encarecidamente para me porem a dormir e me tirarem daquele inferno.
Uns meses mais tarde, no meio de uma crise de inspiração brutal - não só na escrita como na vida em geral, em que me sentia completamente incapaz de escrever o que quer que fosse e de completar uma tarefa com sucesso -, o meu namorado agarrou-me no braço e mostrou-me aquilo que eu tinha feito questão de desenhar na pele. E relembrou-me o porquê de a ter feito. Disse-me: "fugiste das letras, escolheste outro caminho, mas as letras não fogem de ti. Nunca". Fez-me ver que posso não escrever um dia, dois, cinco ou quinze; que de facto não o faço com a frequência que queria, mas que eventualmente ia voltar a fazê-lo - era só uma questão de tempo, porque as palavras não me fogem, só se escondem por uns tempos.
No fundo, um pouco como a minha tatuagem: anda quase sempre escondida, mas está sempre lá. Foi muito importante em momentos chave e, só por isso, já compensou o risco. Compensou o medo, a dor, o receio do futuro. Fez a diferença - e isso basta para ter valido a pena.