![]()
“Acabei de estacionar em Pero Vaz de Caminha, ainda tenho uns minutos de caminhada pela frente e agradecia companhia”, foram as primeiras palavras que disse ao telefone depois de encontrar estacionado para o carro, 16 minutos após uma intensa procura. A rua dada em nome do famoso escritor é uma das muitas perpendiculares à Avenida Marechal Gomes da Costa, uma das mais conceituadas avenidas da cidade e onde se localiza a Fundação de Serralves, para onde me dirigia. É uma avenida grande e larga, mas nesse dia pecava pela falta de espaço – nomeadamente para o meu carro.
A Fundação de Serralves foi um sonho realizado de Carlos Alberto Cabral, 2º conde de Vizela e que ficou terminado em 1940. É um exemplo de art decó e tem no seu currículo vários arquitectos famosos, como Álvaro Siza Vieira.
No caminho vêem-se cartazes a anunciar as 40 horas non-stop que este evento promete - marca o início das festividades do 25º aniversário da fundação e dos 15 anos do museu. À porta há uma barreira, pejada de vendedores ambulantes que tentam impingir pipocas, algodão doce, gelados e balões, e outras tantas pessoas que oferecem jornais e panfletos – quando se entra há quase uma sensação de dever cumprido, mal se consegue vislumbrar a pá gigante enterrada na terra, uma das imagens de marca deste espaço. O programa do evento promete mais de 250 eventos naquelas 40 horas seguidas – tudo desde música, teatro, circo, até outro tipo de estranhas performances que se auto-rotulam como “arte contemporânea”. E comida, claro; não pode faltar comida.
Entram dezenas de pessoas por minuto naquele átrio central: dirigem-se às barracas, perguntam coisas, recebem (mais) panfletos que não fazem ideia do que se tratam. Ninguém anda com um objetivo definido, vai tudo rumo ao desconhecido e em busca de sair surpreendido com uma performance espectacular. Caminha-se por entre aquelas árvores enormes, no principal caminho que dá acesso à grande casa cor-de-rosa e ao extenso curso de água que desce à sua frente. Há centenas de pessoas a tirar fotos, a posar para a fotografia, a descer as escadas rumo ao grande lago, e outras tantas relaxadas, a apanhar o sol que não visitava o céu do Porto há alguns dias. Foram muitos os que não trouxeram calçado confortável e o chão não convida a grandes caminhadas a quem veio desprevenido: o verdete, as escadas errantes, a gravilha e o paralelo incerto não são amigos de sandálias ou saltos altos. Algumas pessoas desequilibram-se e agarram-se às paredes ou, em caso de emergência, à pessoa mais próxima.
“Não faças isso!” grita o pai ao filho. Seguiu-se uma pancadinha amorosa na cabeça de um rapaz anafadinho, com um chapéu enfiado na cabeça e uns óculos muito pouco estilosos, que acabava naquele preciso momento de arrancar uma folha de uma plana que fazia parte do trilho. Fazia, porque parte ficou na mão da criança, a quem o pai continuou a admoestar, mas sem grandes resultados.
A máquina fotográfica está sempre pronta para captar algum momento que seja digno de ser captados e ao avistar o lago é impossível ficar indiferente. Apesar de verde, por a água estar estagnada, acaba por não perder a sua beleza. Ainda lá moram meia-dúzia de patos e muitos peixes, de várias cores e feitios, que alegravam a vista das muitas crianças que por lá vão passando enquanto a minha máquina fotográfica vai fazendo “chack” a cada foto que tira. O tráfego nas escadas é maior do que o aconselhado para um sítio onde não há muito mais para as pessoas se apoiarem do que rochas e, do outro lado, a água onde ninguém quer, definitivamente, tomar banho. Tirar fotografias passa para segundo plano quando a coisa que mais queremos é evitar molhar os pés – ou qualquer outra parte do corpo.
Às 16:30 horas começa um concerto no prado. Não há pressas naqueles jardins: toda a gente caminha e conversa com calma, a apreciar o ar fresco e a oportunidade de passear um bocadinho sem ter de pagar por isso. No caminho para o recinto existe uma cronologia apresentada em placards sobre a história da fundação - do outro lado estão barracas de bebidas alcoólicas e comidas rápidas, como bifanas, pães com chouriço ou kebabs. Já há muitas pessoas sentadas em cima de toalhas, pois a relva ainda está húmida da chuva que caiu no norte nos últimos dias; fazemos o mesmo.
Começa o concerto. O recinto está composto, com muitas pessoas, mas com um espaço confortável entre si. “Guitarrafonia com Tiago Sousa” é uma orquestra de muitas guitarras, tocadas por homens e mulheres vestidos de preto e que tocam música que soa a barroca ou medieval. Só cordas, uma vez mais rápido, outra mais devagar, mas soam demasiado igual enquanto aqueles vinte minutos passam. “É contemporâneo”, ouve-se alguém dizer em tom gozão. Aquele estilo de música tão diferente daquele consumido pelas massas parece não estar a agradar a toda a gente.
Um menino, com o seu ano e meio, de cabelo loirinho e olhos azuis, deambula por ali como se nada fosse. Sem querer pisa as mãos de quem está à frente dele e os pais pedem, muito pronta e rapidamente, desculpa. Depois vai outra vez contra uma senhora que já lá estava sentada e os pais, um tanto ao quanto envergonhados, tornam a lamentar o sucedido. “Anda cá Francisco!”. Uma pausa na música. “Os meninos tocam e tu danças, sim?”. E, mal a música começa, ele dança, mexendo com a fralda de um lado para o outro, e espalhando charme por quem passava. Chega até mim e folheia o meu bloco com atenção, nunca passando mais do que uma página de cada vez. Observa, com a caneta na mão – a mesma caneta que depois rouba e com a qual se passeia ali à volta, com sorriso matreiro: mais uma vez sob o olhar envergonhado dos pais, que passado uns minutos ma vêm entregar.
Na parte das cavalariças está uma fila enorme, cheia de pais e filhos - há mini concertos esporádicos, feitos com materiais do dia-a-dia – paus a baterem em garrafas, colheres em depósitos de latão e tantas outras coisas. Divertido para as crianças, não tanto para os nossos ouvidos. Mais à frente, numa outra sala onde as actividades são mais uma vez para a malta mais nova, podem ver-se vários tipos de formigas e morcegos que existem na fundação e ainda a evolução da borboleta, com vários terrários onde estão borboletas nas várias fases da sua vida.
![]()
Rumo a um concerto na clareira das azinheiras, vê-se o “Biométricos parque”, onde decorre um jogo com bolas de várias cores, pessoas a correrem com óculos escuros, coletes reflectores e esparguetes de andar nas piscinas. O cheiro a comida é demasiado intenso para ficar a olhar para um jogo e não o perceber – a barraquinha dos crepes estava ali ao virar da esquina, a emanar um cheiro delicioso. Já com o dinheiro na mão, dizem-nos “já não vendemos crepes, só à hora do jantar” e o mundo quase pára ali. Ainda não é agora que matamos a fome.
Muitas cadeiras estão vazias enquanto os “Éme” se fazem ouvir – e mesmo as pessoas que lá estão comem, conversam e olham para os mapas da fundação, não prestando muita atenção às movimentações no palco. Para música pop rock, a voz do cantor é fininha demais, e não convence. Ele tenta, tem pinta, mas o rock não mora ali.
![]()
As crianças têm claramente um lugar predominante neste evento. Vêem-se centenas de carrinhos de bebés e oficinas para os mais novos: à saída do concerto estão a fazer máscaras, mais adiante experiências. Tentam adivinhar qual a cor que vai sair da junção de dois componentes. “O que acham que fez isto mudar para roxo?”, pergunta a monitora. “A água!”, grita alguém do outro lado da mesa. “Mas a água costuma mudar a cor das coisas?”. Não ficamos para a ouvir a resposta, embora a tivéssemos na ponta da língua.
Há uma feira de artesanato a decorrer, onde há colares, brincos, camisolas originais e todo outro tipo de coisas à venda. Para além disso, há uma feira do livro para os amantes da leitura e outras locais de venda onde se podem comprar artigos da fundação.
De volta ao prado para assistir a mais uma performance que começa às 18:30, o dinheiro já não ficou no bolso. O estômago já se queixava há muito, já passavam largas horas desde o almoço e depois de uma bela caminhada era merecido: dois euros e meio em troca de um pão-com-chouriço. Os “Bainha” começam a atuar: segundo o programa é “circo contemporâneo”. Uma rapariga a baloiça-se de uma forma pouco perigosa num trapézio. Sobe e desce a corda, anda de um lado para o outro sentada em cima do baloiço e tocando uma guitarra, de uma forma demasiado pacífica e que foge muito ao nosso conceito de circo normal.
![]()
Finda a refeição, conseguindo vislumbrar muito pouco do espectáculo e vendo o sol descer em direcção ao horizonte, é hora de voltar a casa. Está um grupo de pessoas em pé mais perto do local do espectáculo, razão pela qual muita gente não consegue ver aquilo que se está a passar lá à frente, o sítio de maior interesse. Gritam mais atrás: “SEN-TEM-SE!”. O espectáculo para o resto das pessoas deve ter começado no momento em que acabou mim. Pouco depois, de volta a Pero Vaz de Caminha, o relógio aponta 19 horas e 44 minutos. O tempo andou mais rápido do que o previsto, o sol já está a pôr-se. Vêem-se muitas pessoas na rua, está trânsito na Avenida da Boavista, mas os sorrisos vêem-se à distância. A vida em Serralves passa mais rápido, que as coisas quando são boas acabam depressa.