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Entre Parêntesis

Tudo o que não digo em voz alta e mais umas tantas coisas.

28
Mai25

A dinâmica de cemitério

Foi a minha mãe que me ensinou a perceber o que era o cemitério, o porquê de se ir lá e de me ensinar como se agia num cemitério. Essas idas nunca foram um peso e, por isso, ainda hoje não o vejo como tal. Sim, é um sítio onde passa gente muito triste, a atravessar, provavelmente, os piores momentos da sua vida. Mas isso não faz dele - pelo menos para mim - um lugar pesado.

Quando ainda só tinha perdido os meus avós, visitávamos só o Prado Repouso - um dos maiores cemitérios da cidade do Porto e, para mim, o mais bonito de todos. Parece um parque, cheio de árvores centenárias de copa cheia, com apontamentos de flores que pintalgam de cor as suas avenidas enormes; já para não falar de uma vista rio estonteante! Adoro lá ir visitar os meus avós - não o faço mais vezes porque é longe, porque fecha cedo e porque é um sítio terrível para arranjar estacionamento.

Mas agora, desde o falecimento da minha irmã, que ir ao cemitério deixou de ser uma coisa esporádica; faço-o, pelo menos, uma vez por semana. Felizmente as cinzas dela ficaram enterradas perto de mim, o que facilita bastante este ritual. E, apesar do cemitério onde ela está não me transmitir a paz do Prado Repouso (é um cemitério clássico no centro de uma cidade, praticamente só com pedra), eu adoro a rotina de lhe ir deixar uma vela, cuidar da campa e garantir que está florida e colorida. Não o faço por obrigação ou cadência certa; vou quando posso, quando me apetece e quando o meu tempo (e a meteorologia) o permite. O que acaba por ser com bastante frequência.

Porque, por muito tétrico e estranho que isto pareça, eu gosto da vivência e da dinâmica de um cemitério. Gosto de falar com os meus, de pedir ajuda, de me sentar a conversar e olhar e imaginar as suas respostas na minha cabeça; gosto de chorar com eles, quando preciso. Adoro sentar-me com calma e sem tempo, desfazer as floreiras e redecorar tudo, como quem remexe nos móveis de uma casa e lhe dá um novo visual (e eu que, até há bem pouco tempo, achava que não tinha jeito nenhum para fazer arranjos).

Mas, mais do que isso, gosto de estar num ambiente em que todos partilhamos a mesma dor: o luto. De uma forma ou de outra, todos os que ali circulam estão lá por terem perdido alguém. Dividem a maior dor da minha vida sem saberem nada sobre mim, mas conhecendo a dor de perto. E, não sei bem porquê, isto provoca uma dinâmica já não muito comum na sociedade, quase como quem num café do antigamente: dizemos bom dia a quem deambula com flores, baldes e vassouras; pedimos e oferecemos "lumes" descontraidamente; trocamos bitaites sobre o tempo horrível dos últimos dias, que nos destruiu os arranjos; confiamos no próximo para nos devolver os fósforos e a tesoura que emprestamos, mesmo quando os perdemos de vista até ao outro lado do cemitério. Esta semana um senhor até nos ofereceu as flores que lhe tinham sobrado para arranjarmos a campa. É um sentimento de comunidade que já não se encontra hoje em dia numa cidade. É quase como se fosse um micro-clima, onde há um pacto de paz, sob a premissa de estarmos todos ali por causa do mesmo: a ceifeira que nos roubou uma peça essencial da nossa vida. E isso, dentro da tristeza que tudo isto é, é muito bonito. Ou, pelo menos, eu assim o vejo.

 

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(esta é a minha última "instalação" na campa da minha irmã: um jardim repleto de joaninhas (como ela)  para dar cor e vida àquele espaço, que eu quero que seja de leveza e partilha, e não de peso e tristeza)

23
Fev25

Devia tirar mais fotos?

Debí tirar más foto' de cuando te tuve
Debí darte más beso' y abrazo' las veces que pude

Como a maioria das pessoas que ouve rádios comerciais, cruzei-me com esta música do Bad Bunny há já alguns meses. Aliás, diria que até foram as redes sociais que ma mostraram primeiro, com este refrão em loop, conjugadas com imagens lindas e mensagens supostamente-inspiradoras. É curioso, porque eu não gosto nada da música - aliás, nem me parece música, é mais uma poesia semi-cantada, mas enfim; a verdade é que me tocou e fez pensar sobre o assunto, por isso creio que já concretizou o seu propósito, mesmo não me caindo no goto (sonoramente falando).

Até há um ano eu era a fotografa oficial da família. Sempre que havia um evento qualquer - aniversários, ajuntamentos ou festas -, para além da minha multa em forma de pastelaria, levava sempre a máquina às costas para registar alguns momentos. Tenho vários textos escritos aqui no blog sobre a importância da fotografia para mim, de como gosto de registar algo que vai durar no tempo e ajudar-nos a recordar no futuro. Mais do que tirar fotografias, sou muito preciosista na escolha, arquivo e partilha das fotos e faço esse exercício com tempo e carinho para que, quando quiser consultar aquelas memórias, ter tudo pronto para uma consulta rápida e saborosa. Para além disso faço sempre álbuns de fotos anuais, com o best of de cada ano - um mais generalizado, com os aniversários da família nuclear e etc., e outro só meu e do Miguel, com fotos dos nossos passeios e viagens.

Mas este ano não me apetece tirar fotografias. Forcei-me a fazê-lo em alguns eventos mas as fotos estão empilhadas nos cartões de memória, à espera de chegar a sua vez de entrar no meu programa de edição. Não as edito, não as envio, não as organizo e muito menos as coloco em álbuns. Tenho fotos em eventos em que a minha irmã já estava doente... e outros em que a minha irmã simplesmente já cá não está. E eu ainda não sei lidar com esse degradé de desaparecimento. Aliás, perdi a capacidade de lidar com tudo: ver fotos em que ela estava saudável e feliz dói; ver fotos em que ela estava doente dói muito; ver fotos em que ela já não está dói imenso. Porra: o que é que afinal não dói nesta vida?

E é curioso sentir isto, porque na altura em que ela adoeceu eu tirei muitas fotos. Mais: cheguei a pedir ao Miguel para abrir a pestana e captar os momentos que sentisse que eram especiais. E o meu marido, incrível como foi em todo aquele processo, só me dizia "já tirei". Eu enchi o meu telemóvel de fotos porque sabia que aqueles momentos eram efémeros e queria captá-los, guardá-los, garantir que jamais cairiam no esquecimento. Ao contrário do Bad Bunny, nunca pensei que "devia tirar mais fotos", porque as tirava a toda a hora, nas mais diversas condições - mesmo nos piores momentos. Porque aquele era o meu dia-a-dia e nenhuma imagem me chocava; porque eu sabia que tinha de aproveitar todas as ocasiões para dar "os beijos e abraços, todas as vezes que pude". 

O pior é agora - agora que o tempo está a fazer o seu trabalho, que apaga umas coisas e realça outras, que quase nos altera a memória de forma a que possamos seguir em frente. Mas será que é sempre para melhor? Porque se por um lado o tempo ajuda - uma das frases que mais ouvimos neste percurso - também o é que o desenvolvimento do luto não é linear e coisas úteis e valiosas se perdem neste processo de detox do cérebro. Hoje, por exemplo, tenho muito mais dificuldade em lidar com a morte do que há quatro meses; a ideia dessa passagem como algo que salva da dor, como uma coisa que pode ser positiva e que está ao virar de cada esquina de cada um de nós, está a desaparecer. A morte, naqueles meses, deixou de ser algo que eu receava; aquilo que eu temia era não viver. E isso mudou tudo em mim e era algo que eu gostaria de manter. Mas agora, longe da minha irmã doente e das entradas e saídas dos paliativos, em que o meu presente virou passado e as memórias deixam de ser frescas, começo a encarar a morte como antes: uma coisa distante, terrível, a forma suprema de dor. E isso reflete-se na maneira como olho para as fotografias. Se antes as tirava com o intuito de lembrar as coisas boas, dos momentos extra que tive com ela, hoje observo-as com a dor de quem só perdeu e nada ganhou. Um filtro negativo está a invadir a minha visão e, por muita racionalidade que ponha nos meus argumentos, a emoção da perda e do luto levam a melhor. 

Não sei se me hei-de obrigar a agarrar na máquina e fotografar, de pegar no computador e editar as milhares de fotografias que se acumulam - mesmo que isso seja quase um autoflagelo que sei que culminará com dor e choro - ou se, simplesmente, espero que o tempo continue a fazer o seu papel e aguardar pelo momento em que tudo isto se suavize. A questão é: será que esse momento vai chegar? Será que alguma vez voltarei a pegar na máquina com o mesmo intuito de salvaguardar momentos e memórias para a posteridade ou é simplesmente um hábito que vai morrer? No fundo, na última década, registei a história de uma família unida. Faz sentido parar de o fazer? Será que não me vou arrepender no futuro? Porque a verdade é que, enquanto medito sobre a melhor maneira de lidar com isto, os momentos vão passando. E, sem fotos, vão só ficando memórias. E, como o tempo é traiçoeiro, sei lá eu o que vai restar na minha cabeça daqui a uns anos. Talvez o Bad Bunny tenha (agora sim), razão... e eu deva tirar mais fotos. 

Mas porra. Dói tanto.

 

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19
Fev25

O adeus a Pinto da Costa: uma figura cheia de contraditórios

Este blog anda assim, anacrónico. Está longe do que foi em tempos, sempre em cima do assunto, com textos escritos nos minutos seguintes aos acontecimentos; mas a verdade é que a minha vida está muito longe daquilo que eu alguma vez imaginei. É aceitar e continuar. Por isso, ainda que em contrapasso, venho aqui deixar umas palavras sobre Pinto da Costa.

Há pouco mais de um ano eu estava furiosa: as eleições para a presidência do Porto tinham sido marcadas num dos únicos fins de semana do ano que não passei em Portugal. Eu, que tinha as quotas em atraso e não planeava regulá-las tão cedo, paguei tudo o que tinha a pagar só para ir votar no Villas-Boas - e, quando lançam a data do sufrágio, já eu tinha a viagem para a Islândia marcada.

Lembro-me bem de estar em Vík quando saíram os resultados. A ver a RTP no telemóvel, festejei como se tivesse sido o meu partido a ganhar, porque queria muito que o FCPorto mudasse de rumo. Fiquei mesmo muito feliz. Sou portista desde que me conheço e embora esteja longe da minha fase mais "aguda", continuo a ser sócia e muito simpatizante do símbolo. Daqui a quatro anos recebo a minha roseta de prata, que muito me orgulhará.

Dito isto, é importante frisar que o facto de almejar um rumo novo para o meu clube não quer dizer que despreze tudo aquilo que foi feito no passado. E o passado do Porto - o recente, o médio e longo prazo - tem um nome: Jorge Nuno Pinto da Costa. E a sua presidência foi incrível e gloriosa, mas teria sempre de ter um fim. Há uns dias, a propósito do óbito do nosso eterno presidente, Rui Moreira dizia uma coisa tão verdadeira como interessante; não conseguindo parafrasear, foi algo como: "felizmente para mim [a propósito da presidência da Câmara do Porto], tenho um número limitado de anos em que posso estar no meu cargo, o que não acontece no caso do FCPorto". Continuou explicando que a permanência no cargo tira vida à instituição, assim como a capacidade de atrair novas ideias e pontos de vista, promovendo também coisas menos boas, que todos sabemos que existem em todos os cargos de poder.  

Nunca poderei agradecer ao Pinto da Costa as alegrias que me proporcionou enquanto vencedora da Liga dos Campeões e de duas Taças Uefa, para além de campeonatos nacionais. O futebol tem esta coisa maravilhosa de nos dar alegrias só por uma bola entrar numa baliza. Mas a verdade é que o coração acelera e a dopamina se espalha pelo corpo de forma mágica... e isso é algo que só quem gosta é que sabe explicar. E tal não seria possível sem alguém com visão e ambição no poder e à frente do Porto.

Aquilo que eu gostava que se percebesse é que o facto de se votar pela mudança não é a negação da prestação incrível que Pinto da Costa teve enquanto presidente. Não são duas premissas que se neguem uma à outra - conseguem perfeitamente coabitar. Isto só não acontece em mentes quadradas e que não vêem o FCP como uma empresa, que precisa de ser gerida como tal, e não como uma associação de amigos em que os lucros são distribuídos e não declarados. Para além disso, o Porto também não é uma associação de geriatria: embora perceba que a perda do cargo possa ter impactado negativamente a saúde de Pinto da Costa, também sei que nunca seria benéfico para o clube ter alguém em fim de vida nos seus comandos. Porque a questão é: nós somos portistas ou Pintistas? Qual é o nosso objetivo máximo? 

A falha capital do Pinto da Costa foi a sua saída. O verdadeiro capitão de um barco escolhe o todo em vez de si próprio; olha para as necessidades da organização em vez de observar as suas próprias vontades. E o Porto, que estava em risco de tanta, tanta coisa (financeira, de valores, de podridão interna) precisava de sangue novo - e que pena o Pinto da Costa ter posto o amor pelo seu lugar já tão desgastado acima do amor pelo clube! A ovação que recebeu deitado no caixão, em pleno Estádio do Dragão, poderia ter recebido em vida, enquanto um estádio inteiro lhe agradecia todos os feitos por ele conquistados. Pinto da Costa amava o FCPorto, mas também amava o seu lugar de poder, a sua influência e os seus "amigos" - e o tempo fez com que esta balança fosse ficando progressivamente desequilibrada. Por isto, creio que terá morrido um homem amargurado - algo que teria sido evitado se tivesse sido conduzido da forma correta a uma saída que teria sido colossal e merecida.

Quando recebi a notícia da sua morte fiquei triste - na verdade, até emocionada, com todas as homenagens prestadas. Porque estas discrepâncias são possíveis e existem, pois somos humanos e sentimos muitas coisas, às vezes até contraditórias. Pinto da Costa era um homem com uma eloquência e dom da palavra que eu admirava - mas usava-as muitas vezes no sentido e propósito errados. Pinto da Costa foi um presidente ótimo e histórico, mas precisava de sair ainda antes de ter saído. Pinto da Costa foi, de certeza, corrupto - mas deu mais ao clube do que alguém possa imaginar. Pinto da Costa é uma figura incontornável do futebol e até da sociedade, propulsor do FCPorto mas também do norte do país, pela capacidade que teve de levar o nome do Porto aos quatro cantos do mundo - mas também fez com que os portistas fossem conotados com uma série de adjetivos e ideias menos felizes e, quiçá, injustas para quem do FCP é adepto.

Eu teria votado no Villas-Boas (e todo este processo só fez ver que foi de facto a escolha certa para o clube), mas nunca desprezei o Pinto da Costa e todos os seus anos no meu clube do coração. Que, com a sua morte, se pare finalmente com uma cisão que ele infelizmente ajudou a criar e que não tem razão de ser: porque apoiar um candidato não é negar a grandiosidade de outro. Para um homem tão inteligente, falhou as aulas de lógica mais básicas de filosofia.

Pinto da Costa: a sua ausência será sentida mas o seu legado sempre lembrado. Mas o FCPorto continua - e esse, sim, tem de avançar. Siga!

 

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Foto daqui

22
Nov24

Um mês de saudade

Faz hoje um mês da morte da minha irmã. E eu tenho saudades.

O tempo sana muita coisa, mas as saudades não são uma delas. A falta da presença física constata-se nas pequenas coisas, nos detalhes. O luto vem em ondas - tanto o mar está calmo como, do nada, de um pormenor se faz um tsunami. 

Vejo o luto dos outros e, de facto, cada um tem o seu processo. A mim não me dá para os porquês e não ponho em causa as decisões tomadas durante aqueles oito meses; também não tenho remorsos do que fiz ou deixei de fazer com a minha irmã, tanto antes como depois de ela saber que estava doente. Estou serena com as decisões dela e com as minhas. Mas a mim, o que me pesa, são as memórias.

Há pouca coisa na minha vida que não se ligue à minha irmã, porque as minhas raízes cresceram em conjunto com as dela; é indiferente aquilo que eventualmente nos distanciava nos últimos anos, porque o que nos unia era um iceberg invisível e gigante que vem de tudo aquilo que ela me transmitiu e que fez de mim a Carolina que sou hoje. O monte de gelo que está por cima do iceberg, mais sujeito às intempéries da vida, podia ir variando... mas nunca, nunca o iceberg diminuiu de tamanho. E tudo o que fiz por ela e com ela neste ano foi tudo, tudo vindo de uma fístula profunda que se chama, simplesmente, de amor. Todo o iceberg é tecido por milhões de laços de amor, que são no fundo memórias e ensinamentos que ela me transmitiu e que agora vêm à superfície, por um canal que não se fechou e que vai trazendo ao de cima coisas que estavam lá escondidas há muito tempo. 

Ultimamente sou assolada por canções que ela me cantava ("Era uma vez um cavalo que vivia num lindo carrossel, Tinha as orelhas furadas e a cabeça era feita de papel" ou a "De olhos vermelhos, e pelo branquinho, aos saltos bem altos, eu sou um coelhinho", com a qual me cruzei hoje) e a dor que isto causa é de uma dimensão que desconhecia. São coisas tão pequenas e aleatórias que são totalmente arrebatadoras. Todos os dias, vindo de um gatilho que até agora não era disparado, lá vêm uma ou duas memórias novas, que me atingem como tiros: porque não a posso ver, não lhe posso tocar, não a posso ouvir a cantar aquela canção da minha infância. A dureza da finitude, da incapacidade de realizar todos os pequenos atos, é por vezes incapacitante. E mais do que injustiça, tristeza ou zanga com a vida... o que me resta é uma saudade do tamanho desse iceberg que nos une. 

 

Passado um mês, acho que faz sentido deixar aqui o texto que lhe escrevi e li no seu funeral. Gosto daquela ideia de cerimónia americana que vemos nos filmes, em que se tenta celebrar a vida em vez de a chorar. Tentei que aquele momento fosse uma ode à sua vida, sobre quem ela foi e aquilo que representa para mim, e não um reflexo da tristeza com que a sua doença e consequente partida nos deixou. Ao contrário do meu costume, tentei pontuar o discurso com algumas piadas e com uma leveza que a situação não refletia. Quando me perguntam como é que consegui ler isto sem uma única lágrima, eu digo que não sei. Mas sei que foi por ela: porque ela merecia um funeral que a celebrasse, que fosse lembrado, que fosse único. Tal como ela.

Antes de mais queria agradecer a presença de todos vós neste momento tão difícil para mim e para a minha família, assim como todo o apoio que nos foi dado ao longo desta jornada; agradecer também ao Sr. Padre por me disponibilizar este espaço para dedicar à minha irmã umas últimas palavras.

A Joana era uma mulher simpática, de sorriso fácil e um coração gigante. Era bondosa, intuitiva e generosa. Era linda - por dentro e por fora - e, para quem realmente a conhece, um ser especial. Também era teimosa, ciumenta e tantas outras coisas que normalmente não se mencionam nestas altura da vida; no entanto, o que importa é dizer que a balança era aqui muito desequilibrada, e pendia largamente para o lado positivo. A Joana era boa pessoa. E a verdade é que, dependendo do contexto em que a conheceram e das fases da vida em tiveram oportunidade de privar com ela, todos vós terão uma noção diferente daquilo que era a Joana, as suas qualidades e defeitos. Mas eu tenho uma noção privilegiada - porque a Joana não era a Joana para mim. Era a minha irmã. E sei que falo também pelo Zé e pelo João, dizendo que era uma irmã extraordinária, mas ela era a minha única irmã, tendo sido, desde sempre, muito mais que isso.

Acho que poderia resumir tudo isto com uma história breve: das muitas e tantas vezes que a chamei - para me limpar o rabo, para me ajudar a fazer os trabalhos de casa, para me chegar alguma coisa, para jogarmos um jogo, para tirar uma carraça a um cão ou simplesmente para a ter ao meu lado - o substantivo mana começou a ficar gasto. E, sem querer, lá me fugia a boca para a verdade: em vez de mana, saía-me um "mãena", uma mistura entre mãe e mana. O que, por si só, já explica bem a nossa relação.

Pelos dezasseis anos que nos distanciavam mas, acima de tudo, pela dedicação e o amor infinitos que me deu, a minha irmã foi a minha segunda mãe. Não me carregou no ventre, mas eu e ela teremos para sempre uma série de cordões umbilicais que jamais poderão ser cortados. Nem a morte tem esse poder. A minha irmã foi o primeiro amor da minha vida; foi a primeira e a única pessoa a quem eu pedi em casamento, porque na minha cabeça de criança era o que fazia sentido. Se o casamento é a união de duas pessoas que se amam, porque é que eu não podia casar com a minha pessoa preferida, aquela que eu amava com todo o meu coração? Foi ela que me explicou - como fez com tantas outras coisas da vida, umas mais difíceis que outras - que os irmãos não se podiam casar, que as coisas não funcionavam assim. Foi a tampa mais dura da minha vida.

Acho que é por causa da minha irmã que adoro animais - não só porque adormeci durante sete anos ao lado dela a ver o National Geographic mas porque foi ela que, por via do exemplo, me mostrou o que era a amar os nossos animais de estimação. Foi a minha irmã que me ensinou a apertar os cordões, ainda que de uma maneira que, ainda hoje, toda a gente goza comigo, pois eu era incapaz de dar o nó clássico como as pessoas normais. Era a minha irmã que me acompanhava aos médicos, os seres de quem tinha mais medo na vida, e me confortava enquanto agarrava as minhas mãos suadas. Era a minha irmã quem me penteava todos os dias de manhã e me fazia os dois puxinhos que tanto caracterizaram a minha infância. Foi com a minha irmã que dei os primeiros passos. Era a minha irmã que passava os níveis mais difíceis dos jogos de Playstation por mim, porque eu ficava frustrada e nunca conseguia. E ficaríamos por aqui horas se vos continuasse a dizer tudo o que ela fez por mim ao longo dos 29 anos que partilhámos.

Fiz questão de lhe dedicar estas últimas palavras porque, até há bem pouco tempo, achava que escrever era o meu maior talento. Mas entretanto descobri que cuidar da minha irmã foi não só a tarefa mais árdua da minha vida mas também aquela para a qual senti que estava genuína e instintivamente talhada. Nunca gostei de cuidar fisicamente dos outros, mas senti que ajudá-la a atravessar esta sua era uma tarefa minha. E tudo me saía tão naturalmente que houve alturas em que pensei que o destino existe mesmo, que esta tragédia estava escrita e que esta era hora de retribuir todo o amor e dedicação que ela me havia dado, principalmente nos primeiros anos da minha vida. E agora que a luta acabou, agora que ela não está mais aqui, volto para aquela que passou a ser a segunda coisa que tenho mais jeito para fazer: usar as palavras. E espero que ela as ouça.

Primeiro dizendo que sei que estás bem, meu amor. Finalmente em paz. Mas, acima de tudo, bem acompanhada, pelos avós que sempre e tanto te amaram e mimaram. Tenho a certeza que a D. Odete te recebeu com as tuas omeletes preferidas.

Segundo, relembrar que uma pessoa só morre quando a última pessoa que se lembra dela morre também. A minha irmã deixa uma herança enorme: não só os seus dois maravilhosos filhos mas também um conjunto gigante de memórias que lhe permitirá viver durante muitos anos no coração de muita gente. E, no que depender de mim, essas memórias serão tantas e tão cheias de amor que ela se tornará eterna.

Obrigada.

 

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(Uma foto representativa da verdade do meu discurso: eu no pote, ela ao meu lado. Sempre. Para sempre.)

26
Out24

O fim de uma luta, o término de uma vida e o início de outra

A minha irmã morreu na terça-feira.

Foram oito meses de luta. Talvez, lendo isto, pensem: "caramba, foi tão rápido". Mas a verdade é que passou muito, muito lentamente. Sei que os relógios me vão contrariar, mas ninguém me tira da cabeça que alguns dos dias que vivi tiveram cerca de 129 horas. Eram intermináveis. Aquele pesadelo nunca mais terminava. A notícia boa nunca vinha, o alento nunca chegava. Os momentos maus foram imensos, incontáveis, indescritíveis, de uma dor que não consigo pôr em palavras. Mas, caramba, como desfrutei dos bons! Como vivi com ela! Como fiz dos momentos mais pequeninos as joias mais preciosas..!

E foi isso que me permitiu usufruir de uma tranquilidade que nunca achei possível aquando da sua morte. A minha irmã morreu em casa e eu soube que ela ia morrer. Eram três da manhã quando acordei repentinamente e o meu corpo se ergueu como se tivesse uma mola nos pés, sabendo claramente ao que ia. Quando fui até ao seu quarto percebi que ela já não estava no mesmo plano que eu. E é com muito orgulho que digo que, ainda que com ajuda dos meus irmãos, fui eu que decidi todos os pormenores das cerimónias que iriam celebrar a sua vida - e que bonito que foi! Porque mesmo na tristeza profunda, na dor e no luto pode haver beleza. A minha irmã estava linda e em paz da última vez que a vi, com o sorriso que lhe era tão característico. 

E da mesma forma que cuidei da minha irmã sem "se's" ou "mas" - ignorando opiniões alheias e não perdendo tempo naquilo que era ou não suposto ser o meu papel - foi assim que encarei os últimos dias do corpo dela em terra. Sei que as flores dos funerais são normalmente brancas, mas posicionei estrategicamente todos ramos coloridos que lhe haviam traziado em cima e à frente do caixão. Quis ir para as cerimónias fúnebres com roupas de cor (era, provavelmente, a única pessoa da igreja com um vestido vermelho às flores - um ultraje!, terá pensado a beata e outros tantos, mas não é isso que alguma vez me tirará o sono à noite). Quis ler no seu funeral uma homenagem, porque não queria que aquele fosse um momento igual aos outros. A minha irmã era, para mim, sinónimo de cor e sol; de algo especial e marcante. E eu tentei fazer com que estes últimos momentos fossem um reflexo disso. Não fazia sentido ir de preto quando aquilo que ela me ensinou foi a ver o arco-íris todo; não fazia sentido chorar quando ela me proporcionou dos momentos mais felizes da minha vida.  

Muitos acharão que a minha forma de estar durante aqueles dois dias eram uma capa, uma defesa. Sei que pensam que o meu sorriso era um muro que acabaria por desabar em casa ou nos dias seguintes. Mas saibam que foi tudo genuíno - o que não implica que, quando eu me aperceber que não posso ligar à minha irmã para contar um evento da minha vida ou que quando vir o seu lugar da mesa vago aquando de uma celebração ou aniversário, não irei desabar. Mas a minha postura leve e pouco chorosa daqueles dias foi o espelho da paz de espírito que vai na minha alma; a paz de quem acredita que fez tudo, tudo, tudo o que podia ter feito. E a serenidade de saber que tinha de a deixar ir. Porque esse talvez seja o supremo ato de amor - largar a mão, pôr a nossa vontade de parte e dizer: vai. 

Não fazia sentido eu não partilhar isto aqui no blog - primeiro por respeito às pessoas que têm acompanhado os parcos desenvolvimentos que aqui deixei e que clara e facilmente perceberam que algo muito destruturante se estava a passar na minha vida, mas também por respeito à história deste que acaba por ser o livro aberto da minha vida. Há treze anos que aqui escrevo, que partilho alegrias e depressões, e sentia-me na obrigação de aqui registar a maior tristeza desta minha jornada de vinte e nove anos: a minha irmã morreu. A Joana. A minha, e eterna, mana.

Esta luta - sem dúvida a maior da minha vida - acabou, o que não significa que isso se reflita no fim de um capítulo aqui no blog. O poder e o impacto do cancro e da partida da minha irmã foram cravados a ferro quente na minha alma e isso não são feridas que se possam ignorar. Há ainda um texto importante, já meio escrito, que quero partilhar... mas eventualmente, ao longo do caminho, surgirão outros, onde certamente a saudade será o ponto central. Talvez, também, seja pertinente explicar a forma como cheguei até aqui - é provável que soe a cliché, mas posso tentar descrever a maneira como percorri o caminho de forma a ir fazendo um luto pacífico, usufruindo do percurso e não me focando simplesmente na crueldade deste destino. Quiçá partilhe o elogio fúnebre que lhe escrevi. E que, pelo meio, volte ao meu registo habitual (ainda há o roteiro de uma viagem à Islândia para terminar). 

Quinta-feira, depois de todas as cerimónias oficiais, ainda fomos enterrar as suas cinzas. No entanto, foi o primeiro dia depois de todas "obrigações" e protocolos habituais que um evento destes acarreta. E, mal acordei, surgiu logo na minha cabeça uma música de que nem sequer gosto particularmente mas que não me deixou o cérebro em paz: Sérgio Godinho não parecia cansar-se de me cantar ao ouvido de que "hoje é o primeiro dia do resto da tua vida". Uma vida que eu não queria estar a viver mas que vou ter de aprender a navegar.

Porque a verdade é que uma vida se perdeu no dia 22 de Outubro de 2024, mas eu não quero que a minha se perca também no meio do luto e de uma dor sem fim. Sei que não é isso que a minha irmã quereria para mim. Por isso, quero viver por mim e por ela. Quero saborear, ainda que sinta que estou a comer uma goma ácida. Só o futuro o dirá, mas é possível que fique para sempre com um amargo de boca. Que isso, no entanto, não me impeça de testar novos sabores, de comer a minha comida preferida e de sempre, sempre, sempre ir comendo. Vivendo. Seguindo. Lutando. Agora com a garantia de que ela está comigo. Sempre. Para sempre. Porque a morte, sendo o sinónimo de tudo o temos de mais temível e terrível nesta vida, leva muita coisa mas não tem a capacidade de quebrar um amor destes.

 

"Em fim de uma escolha faz-se um desafioEnfrenta-se a vida de fio a pavioNavega-se sem mar sem vela ou navioBebe-se a coragem até dum copo vazioE vem-nos à memória uma frase batida

Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida"
 
 

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Joana Gonçalves Lemos, o primeiro amor da minha vida

27/01/1979  //  22/10/2024

06
Dez20

As filosofias de vida baratas não resolvem problemas

Ou um pensamento sobre a morte precoce de Sara Carreira e como mexe com todos nós

Quando tomamos conhecimento de uma tragédia como aconteceu à da família Carreira todos sentimos que levamos um chapadão da vida. Não falo da família nem de amigos próximos: esses terão que aguentar com um terramoto, com demasiadas réplicas, que será muito difícil de ultrapassar; muitos - anónimos, aqueles cujas histórias não são dissiminadas pelos jornais nem pelas redes sociais - não se reerguem após uma perda destas (e eu espero que, dentro dos possíveis, todos os que orbitavam à volta da Sara possam voltar às suas vidas, dentro do novo normal, o mais rapidamente possível).

Falo de nós, os que assistimos à distância. Gostando ou não dos Carreira, não há forma de não nos identificarmos e projetarmos em nós e nos que nos rodeiam aquilo que lhes está a acontecer a eles. Alguns, como eu, têm uma idade próxima da da Sara. Outros terão filhos, netos, amigos, irmãos a quem poderia acontecer exatamente a mesma coisa. E no momento em que nos apercebemos disso cai-nos a ficha. Também a nós nos dói, pois percebemos que poderíamos ser nós, dentro do carro; que poderíamos ser nós a receber a notícia. Aliás: podemos. Basta estarmos vivos.

Depois de acontecerem coisas destas, as redes sociais enchem-se - para além dos merecidos votos de pesar - de filosofias baratas sobre a vida, cuja aplicação só é possível numa existência utópica. "Aproveitar cada dia. Não nos chatearmos. Não fazermos planos. Viver o momento."

Eu falo por mim: vivo absorvida pelo futuro, às vezes demasiado dedicada ao trabalho, muitas vezes preocupada com a gestão da agenda e do tempo, algumas vezes chateada pelas pedras no caminho e eternamente stressada com uma vida que gosto e que escolhi, mas que não me dá margem para muitos erros.

Este ano já não é a primira vez que levo estas chapadas de realidade - na verdade, foram mais que chapadas. Enterrar um antigo colega da primária mexe connosco; e ver no leito de morte alguém que nos criou, e cuja vida e a distância nos separou muito embora o vínculo estivesse lá, também dói muito. E, também por isso, há algo que aprendi e que não falho: todos os dias relembro as pessoas que amo do quanto eu gosto delas. E também evito deitar-me chateada com alguém.

Embora não tenha no meu dia-a-dia a ideia constantemente presente de que a vida é um fósforo (acho que isso faria com que endoidecesse), implementei essas duas regras já tendo em vista de que não sei o que o futuro nos reserva e que quero que todos tenham presente aquilo que sinto por eles. Sei pouco sobre a morte - e dispenso saber mais -, mas tenho a certeza que não levamos qualquer tipo de bens connosco quando morremos; confio, no entanto, que uma consciência tranquila e um coração cheio ajudem ao processo, tanto dos que ficam como dos que vão.

Implementei estas duas regras de forma preventiva, para estar bem comigo mesma e garantir que os que me rodeiam também ficam de consciência tranquila caso aconteça algo. Fora este tipo de ações (e outras momêntaneas, que surgem na hora), opto por descartar as frases bonitas e filosofias que surgem no facebook por estes dias. É irrealista para mim não me preocupar com o dia de amanhã, devendo apenas viver o momento - fazer isso é dizer-me para ir contra a minha própria natureza; é pôr mais um peso em cima de mim, porque não consigo não me preocupar, mas porque sei que não devo (e este ciclo vicioso acaba eventualmente por ser maligno); é ser egoísta, tendo em conta que estou numa posição em que as minhas decisões e ações têm consequências sobre os outros e sobre a sua qualidade de vida. Não me podem pedir para não me preocupar quando sei que a tesouraria vai má e eu tenho salários para pagar no final do mês; não me podem pedir para não me preocupar quando há reclamações para resolver. Também por isso não vale a pena dizerem-me para aproveitar o dia quando há dias em que eu sei que o tempo vai estar negro e há problemas graves para enfrentar. De que serve colocar uma pressão extra sobre nós mesmos quando nós já vivemos num ambiente de stress constante? A ideia, para mim, é exatamente o oposta: descomplicar e não empilhar filosofias que não podemos implementar. Dar ouvidos a este tipo de coisas quando temos plena noção de que não as conseguimos cumprir seria o mesmo que ir à igreja todos os domingos e não ser crente: é inútil e desnecessário.

Hoje em dia, penso que muito por culpa das redes sociais, temos uma tendência e uma necessidade de mostrar ao outros que está tudo bem. Apagamos os dias maus do histórico e fingimos que não aconteceu. Há quase vergonha em demonstrar que, às vezes, não se está bem. Ser infeliz ou mal sucedido não é fixe. Não mostramos quando vamos a um tasco em vez de um restaurante fancy, quando a comida sai torrada e não com um belíssimo aspeto, quando temos olheiras e o cabelo por lavar em vez de uma mela maquilhagem e um sorriso pepso-dente.

E, assim, esquecemo-nos de uma parte essencial da vida. Sim, vai haver dias maus. Sim, vai haver preocupações. E sim: no meu caso, não há forma de eu não estar sempre de olho no futuro - porque é assim que eu sou e não vale a pena contrariar. É aceitar e dar a volta ao texto.

Relativizar é uma alternativa - hoje, por exemplo, é fácil percebermos que temos uma vida óptima quando comparamos o sofrimento que aquela família está a enfrentar. Mas esta técnica nem sempre funciona, porque muitas vezes não nos lembramos realmente do quão poderosas podem ser outras dores (nomeadamente a dos outros). No dia-a-dia, as nossas dores são sempre as piores.

E por isso o que eu faço, tal como na minha vida, é dividir o tempo em slots diferenciados, quase como numa agenda. Há uns dias - num daqueles mesmo pesados e complicados - o meu namorado chegou aqui a casa com um ramo de flores, dizendo-me que um dia mau não tem de acabar mal. E esse é o segredo. É aceitar o que foi mau mas, num slot de tempo diferente, tentar virar a moeda. Fazer por ver o outro lado. No meu caso, é saber que por muito mau que o dia seja, de noite poderei deitar-me no peito do Miguel e senti-lo a meu lado; é saber que tenho o abraço da minha mãe pela manhã; é comer um chocolate, embrulhar uma prenda de Natal, sentar-me no sofá e olhar para a minha árvore, brincar com os meus cães, ir à feira. É tornar preciosos os momentos de que gosto, que me fazem feliz, e apreciá-los um de cada vez - tendo consciência do priviégio que é estar a vivê-los. Esse é mais um dos exercícios que, a par de expressar o meu amor pelos outros, ponho em prática diariamente.

O resto? Para mim, são balelas. O resto vem, resolve-se, trata-se, dá-se a volta. E que bom é poder fazê-lo: é sinónimo de que estamos vivos e prontos para a luta. O problema é mesmo o dia em que não estivermos.

23
Ago20

Ontem um mocho piou

Nos últimos anos tenho desenvolvido uma certa aversão à expressão "empregada de limpeza". Penso que, acima de tudo, se deve ao facto de ser um trabalho muito "mal-amado" por todos, visto como uma profissão de baixo nível. Em resultado disso, muitos acham-se no direito de mal-tratar este tipo de profissionais, proporcionando-lhes condições de trabalho vergonhosas e tratando-os abaixo de cão.

Eu, pelo contrário, considero-a uma profissão tão digna como ser engenheiro ou arquiteto - e não me choca que uma empregada de limpeza receba tanto ou mais que alguém que tirou um curso destes. Tudo depende do mercado, da oferta e da procura (diria que hoje em dia há muito mais bons engenheiros do que boas empregadas e, como tal, penso que o salário deve refletir essa falta de oferta e, ainda por cima, a crescente procura) e, como em tudo, da dedicação e do amor à camisola que cada um tem no seu trabalho. Mas uma empregada (principalmente a tempo inteiro) tem ainda uma condicionante extra, importantíssima: o seu trabalho é no seio de uma família. Para mim, a partir do momento em que alguém é contratado para esse cargo, tem um passe de entrada como membro daquele núcleo e deve ser tratado como tal. A partir daí, normalmente, advém um carinho e uma amizade especiais, típico de alguém que convive connosco diariamente, que nos conhece, que cuida, que sofre com as tristezas e que festeja connosco as alegrias.

Tenho a sorte de sempre ter tido empregadas a trabalhar lá em casa (como disse, evito dizer "empregada", mas infelizmente não há grandes alternativas) - e guardo, de todas, boas memórias. Mas, acima de tudo, há uma que me ficou guardada na memória - e no coração - depois de lá ter trabalhado durante dezoito anos.

Chamava-se Joaquina. Faleceu ontem. 

A D. Joaquina ensinou-me a ler as horas, depois de me ter oferecido o meu primeiro relógio analógico, todo decorado com cãezinhos. Confiou em mim quando lhe pedi a minha "pi" (vulgo: chupeta) uma última vez, no dia do meu sexto aniversário - o mesmo em que prometi a pés juntos, aos meus pais, que deixaria esse vício. Foi ela quem me ensinou a andar de autocarro e deu comigo a primeira voltinha, dizendo-me onde entrar e onde sair. Ofereceu-me a única Barbie que guardo com carinho e a única pulseira de ouro que perdi - e ainda bem, porque é sinal de que a usei, ao contrário das outras que continuam religiosamente guardadas. 

A D. Joaquina subornava-me com amêndoas de chocolate que guardava no bolso da bata, enquanto me pedia para ir com ela passar a ferro para a lavandaria. Fazia os melhores panados do mundo - e também pataniscas. Adorava os bolos de aniversário lá de casa e farturas frias, que eu trazia de propósito para ela na altura das festas da cidade. Sabia as datas de aniversário de todos nós de cor - e era a primeira a ligar-nos, lá pelas 7:30h da manhã. Fazia contas de cabeça mais rápido do que eu as fazia na máquina de calcular, muito embora tenha passado muito pouco tempo na escola. Acreditava que que, quando um mocho cantava de dia, alguém ia morrer - e eu ainda hoje não gosto de ouvir esse pássaro piar.

Há mais de uma década que deixou de trabalhar, depois de lhe ter sido diagnosticada uma doença que não se coadunava com o trabalho árduo e diário que é cuidar de uma casa grande como a minha. Foi lá várias vezes visitar-nos - e, nos últimos anos, fui eu ter com ela, quando as suas pernas já não conseguiam vir até nós. Em quase todas as visitas trazia-me panados na carteira, para que não me esquecesse de que eram os melhores do mundo.

Numa das últimas vezes que estive com ela contei-lhe que tinha namorado ("finalmente", disse-me ela) - e não vou esquecer o seu ar de felicidade por saber que agora tinha alguém para cuidar de mim. Nos últimos tempos falava-lhe, em média, uma vez por mês; e, em cada despedida, ela mandava "um beijo para o teu Miguel" - nome que nunca esqueceu, apesar de nunca o ter conhecido. 

A D. Joaquina foi uma lutadora a vida toda - e, nos últimos anos, eu achei mesmo que ela tinha algo de imortal, tal a magnitude de tudo aquilo que conseguiu ultrapassar. Mas, no fundo, sabia que algum dia ia ceder às provações que lhe eram constantemente colocadas no caminho.

Ontem recebi a notícia ao final da tarde, depois de um almoço em que falei dela. No dia anterior tinha dito ao meu namorado que, um dia em que casássemos, queria que a D. Joaquina estivesse presente. E, algures num almoço da semana passada, sei que o seu nome também veio à baila. Não creio que seja coincidência. 

Ontem, algures, um mocho piou. E não me levou uma empregada de limpeza. Levou-me família. 

 

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21
Fev15

Paz de espírito

Desde miúda que vou a cemitérios sem qualquer tipo de medos ou receios. Ia com a minha mãe, pôr flores no jazigo dos meus avós, que nunca me lembro de conhecer, embora ambos me tenham dado colo, sensivelmente, no meu primeiro ano de vida. No fundo, apesar de ter pisado já vários cemitérios, nunca fui visitar ninguém que me dissesse algo. Até hoje.

Quase dois meses depois da sua morte, fui visitar a minha avó. Queria relembrar o sítio onde ela está, a par dos seus pais, e deixar-lhe umas flores, para que soubesse que me lembro dela. Todos os dias - talvez mais do que me lembrava quando ainda cá estava em vida.

Não tendo eu nenhuma crença específica no que diz respeito à morte, deixo-me ficar pelas possibilidades; não sei o espírito de quem parte fica em terra, se olham por nós, se sabem do que se passa... Não sei nada. Nem quero saber, porque se não descobrimos até agora é porque talvez não devamos saber o que se passa depois de morrermos. Eu quero apenas certificar-me que, se houver alguma coisa do outro lado, ela possa saber que está presente em mim. E no meu quarto, onde coloquei a foto dela de que mais gosto, onde parece uma modelo, na flor dos seus vinte anos. E também na minha memória e, claro, no meu coração.

Os cemitérios são capazes de ser dos poucos sítios da terra que, embora sempre com gente, se mantêm constantemente calmos - e essa calma contagia-se, pelo menos a mim. Ar livre, árvores imponentes, arranjos bonitos por toda a parte, sem telemóveis e redes sociais à mistura. Apenas uma paz palpável, a par da paz de espírito que nos deixa cá dentro. 

01
Fev15

As substituições da vida

Não sou religiosa, a não ser quando me convém. Não acredito em nada de específico, a não ser em coincidências.

No dia 28 de Janeiro fez precisamente um mês de que a minha avó morreu. Passou num abrir e piscar de olhos, como quem não quer a coisa, em dias de estudo ideais para quem quer esquecer coisas tristes. Os exames são péssimos, mas têm essa coisa boa: distraem-nos, dão-nos um objetivo. Assim foi até à passada sexta-feira, quando os exames acabaram - e aí lembrei-me, de tudo e mais alguma coisa. Já me lembrava da minha avó todas as noites, quando fechava os olhos e ela passava da minha memória para os meus olhos. Agora, sem exames, lembro-me muito mais, e tenho saudades. E alguns remorços. E lembro-me de coisas, pormenores escondidos lá atrás na memória.

Por outro lado...

No dia 28 de Janeiro nasceu o meu sobrinho mais novo. O primeiro que me nasce quando tenho de facto alguma idade de ser tia, quando já sou maior de idade e um bocadinho mais de consciência daquilo que é ser tia de alguém. Quando o fui pela primeira vez, tinha apenas 10 anos. Agora, 9 anos depois (quase 10, como raio é que é possível?), vejo tudo de forma diferente. E gosto mais de bebés do que antes - e sinto-me mais confortável em pegar-lhes, vesti-los, vira-los, mima-los como gosto tanto de fazer.

O mesmo dia: apenas um mês separa a morte e a vida. Começo a acreditar que, de alguma forma, as pessoas se substituem. Todos sabemos que uns vão e outros vêm, mas se calhar a vida encarrega-se de nos dar e tirar de forma mais ao menos equitativa e justa (nas vezes em que o faz, que há sempre tragédias). Já não é a primeira vez que acontece, e eu sentia que, de alguma forma, a minha avó ia dar o seu lugar no mundo a este pequerrucho. Ou então não, e é apenas mais uma das milhentas coincidências de que a vida é feita. E eu nessas acredito perfeitamente. 

29
Dez14

Para fechar este triste capítulo

Foi a primeira pessoa próxima que me morreu. Uma situação que se arrastava desde Agosto, numa degradação galopante e aflitiva, que nos desgastou a todos como nunca pensei. Como uma borracha que, de tanto afagar o papel, chega ao fim. A diferença é que a borracha não sofre, não chora, não se chateia, não se irrita, não fica impaciente, não tem de lidar com a dor. A borracha, por ser precisamente uma borracha, não sabe que o fim se aproxima. Mas nós sabíamos. 

Penso simplesmente no alívio que sinto e que partilho com aqueles que estavam a sofrer o mesmo que eu. E aqui inclui-se a minha avó. Não sou uma pessoa religiosa, não sei se a sua alma está no céu ou se há mais para além disto. Mas sei uma coisa: é difícil estar pior do que estava em terra. E talvez em breve estas últimas imagens terríveis se esvaiam da minha memória e o sentimento de culpa se apodere de mim, devido ao alívio que senti quando soube que partiu - porque sou uma novata disto das mortes e tudo mexe comigo de formas que não sei descrever. Mas a única solução para isto é ir vivendo, lidando e respirando. Porque tudo passa. E porque sei que nada fiz de errado e que a vontade de não ver sofrer quem amamos se sobrepõem, às vezes, à própria vida.

Foram 90 anos de uma vida muito bem vivida, muito viajada e, daquilo que conheço, muito feliz. A mim deu-me 19 anos de carinho, com muitos mimos para a sua neta caçula. Guardo no coração aqueles momentos em que me passava pequenas prendas por debaixo da mesa para o meu avô não ver e quando me estendia a mão para a apertar, mesmo já no fim de vida. Do seu sorriso, do seu cabelo sempre tão bem arranjado e do hábito de pintar os lábios sempre depois das refeições, de uma cor bem viva, algo que herdei. E da preocupação constante, ora com os meus exames, ora com os tubarões que andavam no mar algarvio e que, andando lá eu, me poderiam morder. 

Acaba-se assim mais um ciclo. Penso que a minha avó teria gostado de ver a sua família junta, tanto na capela como no seu funeral, a que tantas pessoas assistiram. Pessoas que, conhecendo-a mal ou bem, só queriam o melhor para ela e sabiam da garra de que era feita. Serviu esta ocasião para eu conhecer primos que mal sabia que existiam e trocar palavras com todas as pessoas e conhecer um bocadinho melhor uma família que nem sabia que tinha, mas que gostei muito de conhecer.

Resta-me agradecer a todos os que, por aqui, via facebook ou mensagem me enviaram as condolências e se preocuparam em me dizer algumas palavras de conforto. E à minha família (à que conheço, tão bem!), que apareceu em peso para me dar abraços tão apertados, e que mesmo nestes dois dias super gelados me aqueceram - literalmente - como nunca.

Acabo estes dois dias de perda com o coração cheio, de consciência limpa e com a certeza de que, mesmo não presente fisicamente, a minha avó me influenciará até ao resto dos meus dias, por tudo aquilo que tão bem implantou em mim.

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