Um ano depois
O que mais me choca na morte é a vida que vem depois. Porque continua. Como é que continua? Como é que acordamos quando um dos nossos amores maiores falece? Como é que se continua a respirar, a trabalhar, a sorrir? Como é que se vive? Como é que tudo não pára naquele momento, se a nossa terra, aparentemente, parou de girar? Como é que os telejornais não comunicam aquele terramoto das nossas vidas, como é que não é visível a destruição à nossa volta, se a dor arrebentou na escala de Richter e não há nenhuma das nossas paredes que continue intacta?
É um sentimento estranho porque, por um lado, queremos de facto que tudo pare - é isso que faz sentido. Mas, por outro, agarramo-nos à vida como uma uma tábua que flutua num mar de dor. Algo dentro de nós sabe que o sol vai nascer no dia seguinte e que temos de continuar. É um paradoxo que passa a viver dentro de nós: a vontade de parar com tudo isto, que deixou de fazer sentido; e a obrigação de viver, de saborear, de compensarmos com a nossa própria vivência a vida que o outro perdeu precocemente.
Nem sequer sei bem como amanheceu no dia seguinte à morte da minha irmã e agora dou por mim, aqui e agora, 365 amanheceres depois. Como é que se passou um ano... eu não sei. Suponho que pelo segredo mais mal guardado da vida: ela continua. Independentemente de tudo. Nunca vai ser igual, nunca vai ser completa, mas continua. E não é por nos faltar uma peça do puzzle que vamos parar de o montar. Peça por peça, continuamos.
Continuamos, ignorando o óbvio. Continuamos, apesar do número de telefone não atribuído. Apesar da ausência no Natal. Apesar da foto no cemitério. Continuamos, porque a vida não pode morrer para todos. Aprendemos a abraçar os gatilhos invisíveis que a vida põem à nossa frente e que nos lembram os maus momentos, passamos a ouvir a voz de quem partiu e seus conselhos na nossa cabeça em vez de fazermos uma chamada telefónica e aceitamos o buraco negro que passou a viver no nosso coração mas que não pode, de forma nenhuma, absorver toda a luz que nos rodeia. O luto é uma pedra pesada, cuja massa e volume não se alteram: nós é que crescemos à sua volta e nos habituamos a ele.
Passou um ano e a vida mudou. Com a morte da minha irmã acabou a instabilidade total dos dias, mas veio toda uma adaptação que ainda não está concluída. Sonho com a minha irmã dia-sim, dia-não - e penso nela todos os dias, a quase todas as horas; assim como penso na morte, na doença e no medo da vida com dor. Perdi receios, mas o trauma trouxe-me medos. Falo muito sobre ela e frequentemente sobre o que aconteceu o ano passado, mas há ainda muito por processar - talvez por isso tenha pedaços daquilo que um-dia-poderá-ser-um-livro já escrito sobre o processo de acompanhar alguém doente, sobre o luto e sobre o ponto de vista libertador de ver a morte como o último reduto. Mas o assunto é tão pesado e a tentação de o evitar é tão grande que duvido que alguém o queira sequer ler.
Lamento muito que a viagem que fizemos naqueles oito meses tenha culminado assim. Tenho pena por ela, que não merecia e que sofreu demasiado, e por nós... que vimos a desgraça a acontecer, sem nada poder fazer. Há momentos em que não acredito que ela morreu, em que uma qualquer memória triste me atinge como um murro vindo do vazio. Esses são os dias piores. Porque no meu dia-a-dia está bem presente que não posso falar com ela, mas parece simplesmente que ela foi para um destino paradisíaco qualquer e se esqueceu do telemóvel. Talvez essa seja uma boa definição de céu. Espero que assim seja, e que ela esteja num dos seus incríveis bikinis, a apanhar sol em cima de uma espreguiçadeira, como tanto gostava; que esteja numa praia com o mar calmo e clarinho - e que espere por nós, um dia.
Tenho saudades, mana. Espero que estejas orgulhosa de mim.














