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Entre Parêntesis

Tudo o que não digo em voz alta e mais umas tantas coisas.

23
Dez24

A história de um legado e os votos de um Feliz Natal

Há dias, em consulta, percebi que a minha irmã me deixou muita coisa em vida (as experiências, as memórias, o amor) mas que, na sua morte, me deixou também um propósito. Um legado. Não que alguma vez me tenha pedido alguma coisa: a morte dela não teve nada que ver com os filmes, com mensagens inspiradoras e bonitas, uma moral da história ou recadinhos para ler em fases mais tardias, com mensagens preciosas que no futuro nos guiarão a vida. A sua partida (e o caminho até lá) foi só uma experiência aterradora e incessantemente triste, pois morreu uma mulher que não queria morrer, naquilo que nos pareceu um processo eterno mas que na realidade foi um ápice. Não houve tempo para pedidos ou recados porque, na verdade, também não houve tempo para uma mentalização firme daquilo que estava acontecer. A vida engoliu-nos para um buraco negro; e nós ficamos com a cabeça à superfície mas perdemo-la a ela. Ainda hoje estamos a aprender a respirar.

Cada um está a reaprender a usar os seus pulmões gerindo o seu luto e as suas batalhas. Eu fui trabalhando em muita coisa ainda enquanto cuidava da minha irmã e consegui transformar muito daquilo que vivi com ela em coisas verdadeiramente positivas. Juro que falo a verdade quando relembro muitos momentos que seriam aparentemente maus com imensa alegria. Porque chegou uma fase em que eu já só queria colecionar sorrisos e memórias, independentemente do local onde estava ou da tarefa que estávamos a fazer; era indiferente se estávamos na quimioterapia ou no sofá... O importante era o sor(riso) dela e as nossas mãos dadas.

O que sobrou dessa forma de estar foi a vontade de continuar a recolher momentos. Já não o posso fazer com ela, mas ainda consigo fazê-lo com os outros, aqueles que importam na minha vida. A morte precoce da minha irmã mostrou-me que a fava pode sair em qualquer fatia do bolo-rei, inclusive a nossa: e eu sinto-me responsável por aproveitar os dias que me restam (independentemente se são 30 ou 25 mil). Se ela já não pode, como é que eu me posso dar ao direito de não o fazer? Como é que isso seria honrar a memória dela? Eu sinto-me responsável por viver, por saborear, por ser feliz... Porque ela já não pode sê-lo. Porque eu não sei o dia de amanhã.

E assim percebi que transformei o evento mais trágico e triste da minha vida numa missão. Que ela, sem querer, me deixou um legado. E isto tem mudado tanto, tanto a minha forma de ver a vida e de fazer as coisas; tem alterado os meus objetivos a curto e a longo prazo, mudou a forma de eu olhar para os outros, para o trabalho e para os problemas. E isto é algo porque passamos, talvez, na adolescência - o adequar das nossas prioridades e preocupações àquilo que almejamos ser, àquilo que queremos ver na sociedade e nos outros. E é algo desestruturante para mim estar a refazer todas estas narrativas agora, já adulta; do nada, olho para uma coisa qualquer à minha volta e percebo que já não me identifico com a forma como pensava há um ano, e tenho de fazer de novo todo o caminho para me posicionar de acordo com aquilo que sou hoje, depois de ter vivido o que vivi. É confuso, cansativo e transformador; requer tempo e espaço mental... mas eu sinto que não tenho alternativa senão fazê-lo. Isto também é parte do luto - albergar todas as alterações decorrentes daquela morte. Por isso é um caminho que tenho feito com a calma possível e paciência - embora, tal como uma adolescente, me irrite com muito mais facilidade com todas as pessoas que não estão alinhadas com a minha nova linha de pensamento.

O que me leva ao Natal. As festividades de 2023 ficarão eternamente encapsuladas para mim, pois foi a última vez na minha vida em que as passei com a minha família de raiz-nuclear: os meus pais e quatro irmãos. É irrepetível. E por isso valorizo-o muito mais. Se houve chatices, desentendimentos, zangas? Houve. Se olhando para trás e tendo em conta aquilo que perdi, se isso importa? Zero. Quando as circunstâncias assim obrigam nós temos facilidade em priorizar as coisas; e aquilo que outrora foi relevante deixa de o ser.

O exercício que tenho tentado fazer é determinar prioridades certas logo desde início; que não seja preciso um evento trágico para as alinharmos da forma como sempre deviam ter estado. O Natal é um poço sem fundo de chatices, de fretes, de inconvenientes, de zangas e de mal entendidos. Tudo serve de desculpa: as prendas, as famílias, a casa onde fazer a festa, o tamanho do bacalhau. Passam-nos a mensagem de que é a época mais mágica do ano quando, em adultos, passa a ser a altura mais chata de todas. Agora pensem que uma das pessoas mais importantes da vossa vida morre hoje. Têm a certeza de que se querem chatear sobre o número de prendas que cada um dá ou se vale a pena fazer finca-pé para não juntar a família dos dois lados? Acham mesmo que é isso que importa? 

Por isso, o meu desejo para este Natal é longo mas claro: que aproveitem os vossos rituais e tradições como se fosse o último Natal. Que desfrutem da família e da unidade que formam, independentemente se são três ou trinta e três. Que refaçam o protocolo as vezes que forem precisas para encontrarem consensos, meios-termos e equilíbrios; que deem o braço a torcer as vezes que forem precisas mas que dialoguem se a conclusão a que chegam não vos trouxer o mínimo de paz de espírito ou justiça. Que procurem a felicidade em locais e momentos onde nem sempre ela reina - mas onde vive, ainda que mais escondida. Porque tudo isto, sim, é amor: é aprendizagem, flexibilidade, adaptação, união e equilíbrio. 

Que esta época seja recheada de todos estes ingredientes e de menos intrigas. 

Feliz Natal.

22
Nov24

Um mês de saudade

Faz hoje um mês da morte da minha irmã. E eu tenho saudades.

O tempo sana muita coisa, mas as saudades não são uma delas. A falta da presença física constata-se nas pequenas coisas, nos detalhes. O luto vem em ondas - tanto o mar está calmo como, do nada, de um pormenor se faz um tsunami. 

Vejo o luto dos outros e, de facto, cada um tem o seu processo. A mim não me dá para os porquês e não ponho em causa as decisões tomadas durante aqueles oito meses; também não tenho remorsos do que fiz ou deixei de fazer com a minha irmã, tanto antes como depois de ela saber que estava doente. Estou serena com as decisões dela e com as minhas. Mas a mim, o que me pesa, são as memórias.

Há pouca coisa na minha vida que não se ligue à minha irmã, porque as minhas raízes cresceram em conjunto com as dela; é indiferente aquilo que eventualmente nos distanciava nos últimos anos, porque o que nos unia era um iceberg invisível e gigante que vem de tudo aquilo que ela me transmitiu e que fez de mim a Carolina que sou hoje. O monte de gelo que está por cima do iceberg, mais sujeito às intempéries da vida, podia ir variando... mas nunca, nunca o iceberg diminuiu de tamanho. E tudo o que fiz por ela e com ela neste ano foi tudo, tudo vindo de uma fístula profunda que se chama, simplesmente, de amor. Todo o iceberg é tecido por milhões de laços de amor, que são no fundo memórias e ensinamentos que ela me transmitiu e que agora vêm à superfície, por um canal que não se fechou e que vai trazendo ao de cima coisas que estavam lá escondidas há muito tempo. 

Ultimamente sou assolada por canções que ela me cantava ("Era uma vez um cavalo que vivia num lindo carrossel, Tinha as orelhas furadas e a cabeça era feita de papel" ou a "De olhos vermelhos, e pelo branquinho, aos saltos bem altos, eu sou um coelhinho", com a qual me cruzei hoje) e a dor que isto causa é de uma dimensão que desconhecia. São coisas tão pequenas e aleatórias que são totalmente arrebatadoras. Todos os dias, vindo de um gatilho que até agora não era disparado, lá vêm uma ou duas memórias novas, que me atingem como tiros: porque não a posso ver, não lhe posso tocar, não a posso ouvir a cantar aquela canção da minha infância. A dureza da finitude, da incapacidade de realizar todos os pequenos atos, é por vezes incapacitante. E mais do que injustiça, tristeza ou zanga com a vida... o que me resta é uma saudade do tamanho desse iceberg que nos une. 

 

Passado um mês, acho que faz sentido deixar aqui o texto que lhe escrevi e li no seu funeral. Gosto daquela ideia de cerimónia americana que vemos nos filmes, em que se tenta celebrar a vida em vez de a chorar. Tentei que aquele momento fosse uma ode à sua vida, sobre quem ela foi e aquilo que representa para mim, e não um reflexo da tristeza com que a sua doença e consequente partida nos deixou. Ao contrário do meu costume, tentei pontuar o discurso com algumas piadas e com uma leveza que a situação não refletia. Quando me perguntam como é que consegui ler isto sem uma única lágrima, eu digo que não sei. Mas sei que foi por ela: porque ela merecia um funeral que a celebrasse, que fosse lembrado, que fosse único. Tal como ela.

Antes de mais queria agradecer a presença de todos vós neste momento tão difícil para mim e para a minha família, assim como todo o apoio que nos foi dado ao longo desta jornada; agradecer também ao Sr. Padre por me disponibilizar este espaço para dedicar à minha irmã umas últimas palavras.

A Joana era uma mulher simpática, de sorriso fácil e um coração gigante. Era bondosa, intuitiva e generosa. Era linda - por dentro e por fora - e, para quem realmente a conhece, um ser especial. Também era teimosa, ciumenta e tantas outras coisas que normalmente não se mencionam nestas altura da vida; no entanto, o que importa é dizer que a balança era aqui muito desequilibrada, e pendia largamente para o lado positivo. A Joana era boa pessoa. E a verdade é que, dependendo do contexto em que a conheceram e das fases da vida em tiveram oportunidade de privar com ela, todos vós terão uma noção diferente daquilo que era a Joana, as suas qualidades e defeitos. Mas eu tenho uma noção privilegiada - porque a Joana não era a Joana para mim. Era a minha irmã. E sei que falo também pelo Zé e pelo João, dizendo que era uma irmã extraordinária, mas ela era a minha única irmã, tendo sido, desde sempre, muito mais que isso.

Acho que poderia resumir tudo isto com uma história breve: das muitas e tantas vezes que a chamei - para me limpar o rabo, para me ajudar a fazer os trabalhos de casa, para me chegar alguma coisa, para jogarmos um jogo, para tirar uma carraça a um cão ou simplesmente para a ter ao meu lado - o substantivo mana começou a ficar gasto. E, sem querer, lá me fugia a boca para a verdade: em vez de mana, saía-me um "mãena", uma mistura entre mãe e mana. O que, por si só, já explica bem a nossa relação.

Pelos dezasseis anos que nos distanciavam mas, acima de tudo, pela dedicação e o amor infinitos que me deu, a minha irmã foi a minha segunda mãe. Não me carregou no ventre, mas eu e ela teremos para sempre uma série de cordões umbilicais que jamais poderão ser cortados. Nem a morte tem esse poder. A minha irmã foi o primeiro amor da minha vida; foi a primeira e a única pessoa a quem eu pedi em casamento, porque na minha cabeça de criança era o que fazia sentido. Se o casamento é a união de duas pessoas que se amam, porque é que eu não podia casar com a minha pessoa preferida, aquela que eu amava com todo o meu coração? Foi ela que me explicou - como fez com tantas outras coisas da vida, umas mais difíceis que outras - que os irmãos não se podiam casar, que as coisas não funcionavam assim. Foi a tampa mais dura da minha vida.

Acho que é por causa da minha irmã que adoro animais - não só porque adormeci durante sete anos ao lado dela a ver o National Geographic mas porque foi ela que, por via do exemplo, me mostrou o que era a amar os nossos animais de estimação. Foi a minha irmã que me ensinou a apertar os cordões, ainda que de uma maneira que, ainda hoje, toda a gente goza comigo, pois eu era incapaz de dar o nó clássico como as pessoas normais. Era a minha irmã que me acompanhava aos médicos, os seres de quem tinha mais medo na vida, e me confortava enquanto agarrava as minhas mãos suadas. Era a minha irmã quem me penteava todos os dias de manhã e me fazia os dois puxinhos que tanto caracterizaram a minha infância. Foi com a minha irmã que dei os primeiros passos. Era a minha irmã que passava os níveis mais difíceis dos jogos de Playstation por mim, porque eu ficava frustrada e nunca conseguia. E ficaríamos por aqui horas se vos continuasse a dizer tudo o que ela fez por mim ao longo dos 29 anos que partilhámos.

Fiz questão de lhe dedicar estas últimas palavras porque, até há bem pouco tempo, achava que escrever era o meu maior talento. Mas entretanto descobri que cuidar da minha irmã foi não só a tarefa mais árdua da minha vida mas também aquela para a qual senti que estava genuína e instintivamente talhada. Nunca gostei de cuidar fisicamente dos outros, mas senti que ajudá-la a atravessar esta sua era uma tarefa minha. E tudo me saía tão naturalmente que houve alturas em que pensei que o destino existe mesmo, que esta tragédia estava escrita e que esta era hora de retribuir todo o amor e dedicação que ela me havia dado, principalmente nos primeiros anos da minha vida. E agora que a luta acabou, agora que ela não está mais aqui, volto para aquela que passou a ser a segunda coisa que tenho mais jeito para fazer: usar as palavras. E espero que ela as ouça.

Primeiro dizendo que sei que estás bem, meu amor. Finalmente em paz. Mas, acima de tudo, bem acompanhada, pelos avós que sempre e tanto te amaram e mimaram. Tenho a certeza que a D. Odete te recebeu com as tuas omeletes preferidas.

Segundo, relembrar que uma pessoa só morre quando a última pessoa que se lembra dela morre também. A minha irmã deixa uma herança enorme: não só os seus dois maravilhosos filhos mas também um conjunto gigante de memórias que lhe permitirá viver durante muitos anos no coração de muita gente. E, no que depender de mim, essas memórias serão tantas e tão cheias de amor que ela se tornará eterna.

Obrigada.

 

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(Uma foto representativa da verdade do meu discurso: eu no pote, ela ao meu lado. Sempre. Para sempre.)

17
Nov24

Uma joaninha sempre comigo

Foi relativamente cedo no processo de doença da minha irmã que lhe criei uma bucket-list. Só tomou a forma de lista no último par de meses da sua vida, mas a verdade é que na minha cabeça existia há muito tempo. Era uma bucket-list dela mas que consistia em coisas para fazer comigo, mesmo que ela não exprimisse que as queria fazer. Pronto, ok, na prática era a minha bucket-list - mas isso agora são pormenores que não interessam nada.

Continha das coisas mais mundanas - desde arranjar as sobrancelhas - até às mais especiais, como fazermos uma tatuagem em conjunto. Cumprimos várias e fomos muito felizes. Fizemos karaoke no banho e no carro, enquanto ouvíamos a playlist que fiz para ela no Spotify, recheada de músicas dos tempos em que ela me fazia ouvir Jamiroquai, Manu Chao e Craig Davis enquanto tirava o próximo CD da sua malinha; fomos fazer compras várias vezes e trouxemos as mãos cheias de sacos; fomos às festas da cidade, jogamos matraquilhos e comemos aqueles geladinhos cremosos, ideais para quem não pode comer grandes sólidos; arranjei-lhe as unhas e descobri que, apesar de não ter o dom da manicure ou pedicure, o amor faz com que nos safemos em qualquer tarefa; arranjamos as sobrancelhas uma à outra e foi tão divertido que os músculos da barriga dela expulsaram um catéter que lá tinha espetado, de tanto rirmos e sorrirmos - seguiu-se um banho de soro até descobrirmos onde havia uma fuga. Fizemos um escape game, festejamos aniversários e até fiz uma pizza party eleitoral onde ela provou as nossas pizzas caseiras; fiz-lhe uma festa surpresa depois do seu internamento mais longo, com o tema "a Joaninha está de volta ao seu jardim", com pequenos insetos vermelhos de madeira colados em tudo o que era palito e espacinho, rodeados de balões verdes de vários tons, qual jardim tropical. A verdade é que a festa não correu tão bem como eu gostaria nem resultou na alegria exponencial que desejava proporcionar à minha irmã - mas não me arrependo nem um pouco de a ter feito. Fomos comer um gelado à beira-mar, na minha nova gelataria favorita; e, durante vários dias, ela tentou-me ensinar o básico do tricô: um conhecimento que não ficou muito bem consolidado, mas com que tenho material para trabalhar e melhorar nos próximos anos.

Por realizar ficaram alguns lanches com amigos, ver em conjunto a nova temporada da Emily in Paris e fazer uma tatuagem. Esta última era algo especial e com simbolismo, mas ela tinha medo de comprometer o seu estado de saúde, já tão débil; e muito embora tivéssemos luz verde da médica para avançar, a minha irmã tinha receio e não sabia bem o que fazer. Já tinha decidido, logo no início do processo, que faria uma tatuagem caso se curasse; quando lhe disse que, independentemente de tudo, eu ia fazer uma, ela disse que para ela já não fazia sentido, pois não ia ficar curada. Respondi-lhe que aquilo que ela estava a fazer requeria muito mais coragem do que uma cura: viver e lutar contra um cancro incurável exige uma coragem e dureza que não é para todos. E isso merecia ser celebrado.

A verdade é que não houve tempo. Quando partilhei com ela a minha ideia de desenho - e após ter chorado um bocadinho com a ideia do que eu queria fazer - ela reiterava que continuava sem saber ao certo o que queria colocar na pele. Respondi algo que não viria a ser verdade: que ela tinha tempo para pensar. Não teve.

Mas na bucket list continuavam coisas por riscar - e se não houve tempo para as fazer com ela, decidi rapidamente que as ia fazer por ela. E assim, nem duas semanas depois de nos ter deixado, lá estava eu, de braço estendido em cima de uma maca, a fazer a joaninha que tinha prometido. A minha sobrinha veio comigo e fez a sua primeira tatuagem também... E foi especial. Porque não o fiz com a minha irmã mas consegui fazê-lo de uma maneira única, com a pessoa que mais herdou dela; porque é algo que partilhei com a minha sobrinha e que não vou esquecer; e porque ficará eternamente marcado na minha pele que a Joana(Inha) está sempre comigo.

Se era estritamente necessário marcar de forma tão visível a dimensão e o impacto que a minha irmã teve na minha vida? Não, claro que não era - se eu o sei, é o suficiente. Mas era importante para mim... porque a parte física dela apagou-se deste mundo e custa-me não a ter ao meu alcance. Sei que tenho fotos, vídeos e, claro, a memória - mas queria ter um sitio rápido e imediato para onde olhar e pensar: é ela, comigo, aqui.

E por isso, agora sim, metafórica e rigorosamente, tenho uma joaninha sempre comigo. Não só cravada na alma e na memória... mas na pele, para sempre, até ao fim dos meus dias. Não sei se sou eu que sou muito dorida, mas de cada vez que a agulha entrava na pele eu fazia um esgar de dor - e em todos esses momentos eu lembrei-me dela, de tudo o que ela sofreu, de todas as vezes que teve de ser picada... e das tão poucas vezes que se queixou. O mínimo que eu podia fazer era aceitar a dor e olhar para o resultado que se desenhava na minha pele. Agora, onde eu estiver, ela está - e caramba, fofinha, como é bonita a República Dominicana. 

 

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26
Out24

O fim de uma luta, o término de uma vida e o início de outra

A minha irmã morreu na terça-feira.

Foram oito meses de luta. Talvez, lendo isto, pensem: "caramba, foi tão rápido". Mas a verdade é que passou muito, muito lentamente. Sei que os relógios me vão contrariar, mas ninguém me tira da cabeça que alguns dos dias que vivi tiveram cerca de 129 horas. Eram intermináveis. Aquele pesadelo nunca mais terminava. A notícia boa nunca vinha, o alento nunca chegava. Os momentos maus foram imensos, incontáveis, indescritíveis, de uma dor que não consigo pôr em palavras. Mas, caramba, como desfrutei dos bons! Como vivi com ela! Como fiz dos momentos mais pequeninos as joias mais preciosas..!

E foi isso que me permitiu usufruir de uma tranquilidade que nunca achei possível aquando da sua morte. A minha irmã morreu em casa e eu soube que ela ia morrer. Eram três da manhã quando acordei repentinamente e o meu corpo se ergueu como se tivesse uma mola nos pés, sabendo claramente ao que ia. Quando fui até ao seu quarto percebi que ela já não estava no mesmo plano que eu. E é com muito orgulho que digo que, ainda que com ajuda dos meus irmãos, fui eu que decidi todos os pormenores das cerimónias que iriam celebrar a sua vida - e que bonito que foi! Porque mesmo na tristeza profunda, na dor e no luto pode haver beleza. A minha irmã estava linda e em paz da última vez que a vi, com o sorriso que lhe era tão característico. 

E da mesma forma que cuidei da minha irmã sem "se's" ou "mas" - ignorando opiniões alheias e não perdendo tempo naquilo que era ou não suposto ser o meu papel - foi assim que encarei os últimos dias do corpo dela em terra. Sei que as flores dos funerais são normalmente brancas, mas posicionei estrategicamente todos ramos coloridos que lhe haviam traziado em cima e à frente do caixão. Quis ir para as cerimónias fúnebres com roupas de cor (era, provavelmente, a única pessoa da igreja com um vestido vermelho às flores - um ultraje!, terá pensado a beata e outros tantos, mas não é isso que alguma vez me tirará o sono à noite). Quis ler no seu funeral uma homenagem, porque não queria que aquele fosse um momento igual aos outros. A minha irmã era, para mim, sinónimo de cor e sol; de algo especial e marcante. E eu tentei fazer com que estes últimos momentos fossem um reflexo disso. Não fazia sentido ir de preto quando aquilo que ela me ensinou foi a ver o arco-íris todo; não fazia sentido chorar quando ela me proporcionou dos momentos mais felizes da minha vida.  

Muitos acharão que a minha forma de estar durante aqueles dois dias eram uma capa, uma defesa. Sei que pensam que o meu sorriso era um muro que acabaria por desabar em casa ou nos dias seguintes. Mas saibam que foi tudo genuíno - o que não implica que, quando eu me aperceber que não posso ligar à minha irmã para contar um evento da minha vida ou que quando vir o seu lugar da mesa vago aquando de uma celebração ou aniversário, não irei desabar. Mas a minha postura leve e pouco chorosa daqueles dias foi o espelho da paz de espírito que vai na minha alma; a paz de quem acredita que fez tudo, tudo, tudo o que podia ter feito. E a serenidade de saber que tinha de a deixar ir. Porque esse talvez seja o supremo ato de amor - largar a mão, pôr a nossa vontade de parte e dizer: vai. 

Não fazia sentido eu não partilhar isto aqui no blog - primeiro por respeito às pessoas que têm acompanhado os parcos desenvolvimentos que aqui deixei e que clara e facilmente perceberam que algo muito destruturante se estava a passar na minha vida, mas também por respeito à história deste que acaba por ser o livro aberto da minha vida. Há treze anos que aqui escrevo, que partilho alegrias e depressões, e sentia-me na obrigação de aqui registar a maior tristeza desta minha jornada de vinte e nove anos: a minha irmã morreu. A Joana. A minha, e eterna, mana.

Esta luta - sem dúvida a maior da minha vida - acabou, o que não significa que isso se reflita no fim de um capítulo aqui no blog. O poder e o impacto do cancro e da partida da minha irmã foram cravados a ferro quente na minha alma e isso não são feridas que se possam ignorar. Há ainda um texto importante, já meio escrito, que quero partilhar... mas eventualmente, ao longo do caminho, surgirão outros, onde certamente a saudade será o ponto central. Talvez, também, seja pertinente explicar a forma como cheguei até aqui - é provável que soe a cliché, mas posso tentar descrever a maneira como percorri o caminho de forma a ir fazendo um luto pacífico, usufruindo do percurso e não me focando simplesmente na crueldade deste destino. Quiçá partilhe o elogio fúnebre que lhe escrevi. E que, pelo meio, volte ao meu registo habitual (ainda há o roteiro de uma viagem à Islândia para terminar). 

Quinta-feira, depois de todas as cerimónias oficiais, ainda fomos enterrar as suas cinzas. No entanto, foi o primeiro dia depois de todas "obrigações" e protocolos habituais que um evento destes acarreta. E, mal acordei, surgiu logo na minha cabeça uma música de que nem sequer gosto particularmente mas que não me deixou o cérebro em paz: Sérgio Godinho não parecia cansar-se de me cantar ao ouvido de que "hoje é o primeiro dia do resto da tua vida". Uma vida que eu não queria estar a viver mas que vou ter de aprender a navegar.

Porque a verdade é que uma vida se perdeu no dia 22 de Outubro de 2024, mas eu não quero que a minha se perca também no meio do luto e de uma dor sem fim. Sei que não é isso que a minha irmã quereria para mim. Por isso, quero viver por mim e por ela. Quero saborear, ainda que sinta que estou a comer uma goma ácida. Só o futuro o dirá, mas é possível que fique para sempre com um amargo de boca. Que isso, no entanto, não me impeça de testar novos sabores, de comer a minha comida preferida e de sempre, sempre, sempre ir comendo. Vivendo. Seguindo. Lutando. Agora com a garantia de que ela está comigo. Sempre. Para sempre. Porque a morte, sendo o sinónimo de tudo o temos de mais temível e terrível nesta vida, leva muita coisa mas não tem a capacidade de quebrar um amor destes.

 

"Em fim de uma escolha faz-se um desafioEnfrenta-se a vida de fio a pavioNavega-se sem mar sem vela ou navioBebe-se a coragem até dum copo vazioE vem-nos à memória uma frase batida

Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida"
 
 

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Joana Gonçalves Lemos, o primeiro amor da minha vida

27/01/1979  //  22/10/2024

13
Out24

O que o cancro nos ensina

A Carolina de 28 anos via o cancro como uma doença dos outros. Era uma coisa distante, que eu sabia que existia, que imaginava ser difícil, mas que (ainda) não me tocara. Partilhava a pena, a esperança, a vontade de que as coisas fossem diferentes e que aquelas pessoas não tivessem que passar por tanto... mas não sabia nada. Até ao dia em que aconteceu. Até ao dia em que aprendi que na gíria médica não se diz cancro, mas que os nomes são mais pomposos, difíceis e específicos para quem entende da matéria, que podem ir de neoplasia a melanoma (entre tantos outros que não me lembro ou prefiro esquecer), mas que para nós, leigos, querem todos dizer aquela palavrinha curta mas que tem claramente forma de monstro. Até os meios de comunicação social lhe fogem, chamando-lhe "doença prolongada". Mas, quando ele aparece, não há volta senão enfrentarmos aquelas seis letras. Cancro. 

Ontem, num scroll do instagram, apareceu-me um trecho de uma entrevista do Manuel Luís Goucha a uma convidada que tinha vencido esta doença e que dizia que não tinha aprendido nada com ela. Na secção de comentários batiam-se palmas àquela afirmação e apregoavam alto contra a romantização de tudo o que envolve o cancro.

Não tenho o direito de me opor à opinião de alguém que viveu aquilo na pele. Mas posso falar como cuidadora de primeira linha de não um, mas dois casos, que foram diagnosticados no espaço de três meses. E aquilo que tenho para vos dizer é o seguinte: eu aprendi muito. Aprendo, todos os dias. E mais importante do que aprender coisas práticas - a gíria, os exames, o nome dos medicamentos, os corredores do hospital, a fazer pensos, a colocar catéteres ou manusear sistemas de soro - foram os ensinamentos de base. Foram mudanças nas minhas crenças de vida. Sei que isto vai soar muito cliché, mas é a mais pura das verdades: foi a forma como vivo - porque tenho um relógio a bater o seu tic-tac constantemente no meu ouvido e que me obriga a aproveitar as pequenas coisas da pessoa de quem cuido. Nunca uma ida a um shopping soube tão bem, nunca um banho com música e karaoke foi tão nostálgico e feliz, nunca um sorriso foi tão valorizado. Sei que este não é um sentimento que vá durar para sempre; que no futuro - um futuro que, desculpem, eu não quero imaginar - a minha vida voltará a normalizar e os banhos voltarão a ser a rotina obrigatória e rápida que eram antes e que a ida a um shopping uma mera tarefa a riscar da lista. Eu sei que esta sensação de finitude não dura para sempre. Mas até a finitude levar quem eu amo, eu sinto-a na pele. E obrigo-me a viver e a aproveitar cada coisa pequena, e a valorizá-la como um diamante.

Mas, para além disso, acho que há um ensinamento que vai mudar o rumo da minha vida e que não creio que vá esquecer. A ideia era, no futuro, fazer um texto só sobre isto, mas parece-me pertinente abordá-lo agora. O que mais se alterou, aos meus olhos, foram as pessoas. Não a forma como olham para mim ou para as debilidades daqueles que eu amo, mas a maneira como eu as olho a elas. Se há um ano dizia, com facilidade, que detestava pessoas, acho que hoje não posso dizer o mesmo. 

Descobri empatia em lugares que achava não existirem; olhares compassivos, pessoas que querem realmente ajudar. Também percebi que há dias maus para todos nós e que temos de os respeitar - mas que se calhar aquilo que vemos no trânsito, nas bancadas de futebol e na generalidade das notícias é um alter-ego que todos temos e que, em alguns lugares ou situações, toma posse de nós. Porque no fundo - ou talvez não tão lá no fundo - há muitas pessoas boas. Gentis. Amáveis. Com preocupação genuína pelo outro. Que, dentro das suas possibilidades e regras, nos ajudam. Guardo, nas minhas muitas passagens pelo Hospital de São João, muitos exemplos de gestos que, ainda hoje, me comovem: desde o segurança das urgências a ir buscar uma máscara específica para colocar na minha familiar, aos colaboradores que me davam praticamente livre passe quando eu dizia "paliativos" de cada vez que tirava senha de visita (um beijinho especial para a Anabela), aos médicos que me deram a mão e me abraçaram em momentos em que as lágrimas me corriam inevitavelmente pela cara. 

Em resumo, aquilo que vos posso dizer é o seguinte: não sei ao certo o estado em que entrarei nos 30 anos, daqui a cerca de seis meses. Hoje em dia não tenho hipótese senão viver um dia de cada vez, sempre num cansaço que roça o extremo mas que se contraria devido a uma força e energia que, não sabendo ao certo de onde vêm, terá a sua génese no amor e dedicação profundos que dediquei a esta causa e à pessoa de quem cuido. Mas sei que, comparando com a miúda de 28 anos que entrou nesta jornada às cegas - ainda que enquanto acompanhante -, aprendi muito. Vou ser - já sou - uma pessoa diferente. Mais magoada com a vida, algo amargurada quiçá, com menos fé no divino. Com mais experiência e um leque de conhecimentos muito mais vasto nos mais variados temas. Com outras crenças. E, como tal, diferente. E se isso não é uma aprendizagem, o que será?

03
Jul24

Uma familiar chata nas trincheiras do cancro

É sobejamente conhecida a minha difícil relação com os médicos. Tragam as aranhas, os ratos, o escuro, os palhaços e as bruxas: não há nada que eu tivesse mais medo, em miúda, do que indivíduos de bata branca. Na verdade não é medo: é pânico. Era irracional, profundo; uma dor que ultrapassava a parte física e que transpunha a alma. Era inimaginável, sufocante. De tal forma que só a ideia de entrar num hospital me deixava nauseada e era incapaz de fazer a distinção entre o médico-profissão e o médico-pessoa. Um médico era um médico - e era sempre o vilão da minha história.

A minha racionalidade não era suficiente para ultrapassar o medo - e muito menos para ter a frieza de perceber que os médicos são sempre a nossa salvação nos momentos de maior aperto. Em alturas em que a nossa saúde parece de aço e a atenção aos males dos outros não é o nosso forte, não imaginamos que nalgum dia - mais cedo ou mais tarde, a verdade é essa - as vidas dos nossos entes queridos vão estar nas mãos daqueles que outrora receamos. Vá... detestámos. Pronto, está bem, eu digo a verdade: odiámos.

Agora, seis meses depois do desabar do mundo da minha família, passei mais tempo em hospitais do que achei que passaria durante a vida inteira. São tempos de aprendizagem profunda: sobre a importância de aproveitar a vida, sobre fé e esperança, sobre os médicos e a medicina, sobre as pessoas, sobre a bondade, sobre a tolerância à dor que cresce a cada dia que passa, sobre  medicamentos - as suas maravilhas e as suas consequências. Nunca quis ser médica nem enfermeira nem nada que tivesse que ver com saúde - longe de mim ter alguma coisa que ver com aquele mundo que tanto detestava! Mas hoje em dia dou por mim a querer muito ser médica - quero perceber o que me dizem, o que receitam, o que escrevem. Quero ajudar, quero fazer parte da cura. Quero saber explicar aos outros, quero entender os olhares, quero perceber a gravidade dos problemas - sem pena, sem paninhos quentes, sem positividades tóxicas. Gostava de saber fazer diagnósticos em vez de simplesmente acreditar nos diagnósticos dos outros. Gostava de não ser refém dos conhecimentos de alguém.

Por isso ouço. Ouço como se estivesse na aula mais importante da minha vida. Retenho tudo o que me dizem. Decoro o nome estranho do cancro, da proteína que indica uma boa receptividade à imunoterapia, do medicamento difícil de pronunciar, a lista de todos os sintomas de alerta, os exames que são mesmo necessários ou só aqueles que fazem parte do protocolo. Era mais feliz há seis meses, quando nunca tinha ouvido falar de uma PET, do PDL-1 ou do pembrolizumab; mas hoje trago no currículo a bagagem pesada que dois cancros na nossa família nuclear nos fazem carregar. Sei muito mais. Não sou médica - nem iria a tempo de ajudar quem amo se hoje fosse tirar o curso. Por isso agarro-me ao que tenho: ao que ouço, ao que leio, ao que me explicam. E também à lógica, à racionalidade e ao sentido crítico. Faço muitas perguntas. Sugiro coisas. Exijo que me expliquem. Sou chata. Sou persistente. E luto, todos os dias, pela vida de quem me rodeia.

Mas a verdade é que sinto que, de alguma forma, este meu espírito combativo e absorvente de informação não é bem recebido por grande parte da comunidade médica. Acho que se espera dos pacientes e seus familiares a submissão de alguém cuja vida está nas mãos dos sujeitos de bata branca; não é suposto perguntarmos, mas sim acreditarmos; não é suposto queixarmo-nos, mas sim agradecermos; não é suposto falarmos, só ouvirmos.

Sei que sou uma mulher nova, muitas vezes perante médicos com tantos anos de carreira como aqueles que eu conto de vida - mas por muito empenhados que os médicos estejam, não há nenhum que queira mais a cura do que eu. Não há ninguém com mais foco nem desejo nem dor. Se as minhas pessoas não estão capazes de perguntar, eu pergunto. Se não são capazes de contestar, eu contesto. Se não são capazes de decidir, eu decido. Defendê-las-ei até ao fim, sem me preocupar com egos alheios, machismos exacerbados ou faltas de paciência por parte de familiares chatos. Não aceito "porque sim"'s como resposta; não quero saber o que dizem ou acham de mim depois de sair do consultório, se reviram os olhos, se me acham insolente, insistente ou com a mania. Porque foi esta minha forma de estar que me fez atalhar caminho quando, dois meses depois de um primeiro diagnóstico, apareceu outro que fez tremer os meus alicerces como um terramoto de 9.5 na escala de Richter; foi isso que me deu clareza sobre o que tínhamos pela frente e descanso por não ter de aprender todos aqueles termos pela primeira vez. Eu quero saber, quero ajudar, quero fazer parte da cura. Batalho com o coração, com a cabeça, com a alma; com amor, com inteligência e com instinto. E se um dia disserem que não consegui, pelo menos não poderão dizer que não tentei. Dei tudo. Dou tudo, todos os dias, para que sejamos, até velhinhos, dezasseis à mesa. 

04
Abr24

Quero sair da montanha russa

Estou viva. Estamos todos vivos - e é assim que planeio que estejamos por muitos mais anos. 

De todas as parecenças que não me importaria de ter com a família real, está é a última que colocaria na lista: dois casos de cancro em dois meses, dentro do meu núcleo familiar.

Sem sabermos, em Dezembro, entramos numa montanha russa que ainda não teve fim - e a luz não aparece sequer ao fundo do túnel. Sempre que achamos que o pior loop já passou, vem outra descida abrupta que nos leva o estômago para uma outra parte do corpo onde este não devia estar. A pior parte? É que nem sempre temos cinto de segurança. Já perdi a conta às vezes em que senti que estava a sair da cadeira, a perna já meia de fora e o rabo a escorregar - ou, num cenário ainda mais negro, que estávamos mesmo todos a descarrilar. Não chegamos ainda à parte do vale, em que podemos respirar de alívio porque acabou, sabendo que estamos prestes a sair daquele suplício, daquele banco desconfortável, daqueles sustos consecutivos. Eu já não peço para sair da montanha, porque sei que nalgum dos casos não vamos ter alternativa - só desejo que o caminho esteja limpo e com a manutenção em dia, que a montanha russa seja daqueles de nível baixinho e sem grande adrenalina. Já estou farta de paragens abruptas a olhar para o abismo; não quero ficar de cabeça para o ar nem com o cinto mal posto. Não podendo sair deste parque de diversões do mal, que a viagem seja no equipamento mais calmo.

Porque a verdade é que uma parte de nós parte-se neste processo e eu acredito que não a recuperamos. É como as Horcroxes do Voldemort: pedacinhos da nossa alma que, neste caso, repartimos sem querer e que ficam algures, em alguém ou presos a momentos-chave onde não temos sequer força ou vontade de regressar. Não há nada neste processe que nos acrescente - só nos retira. Não contam os conhecimentos que adquirimos ao longo do processo, a resiliência que construímos ou a força que percebemos que temos. Pondo na balança, não há forma de sairmos a ganhar, porque a memoria não se apaga, a alma não se reconstrói e a dor dificilmente se transforma em alegria. É um caminho de uma só via em que a balança está viciada.

Podia dizer que, com isto tudo, ganhamos perspectiva. Que percebemos que a vida é para ser vivida - e rapidamente, porque porra!, ela muda num estalar de dedos. Mas para além desta filosofia de vida colidir com tantas perspetivas mais cautelosas e conservadoras (com as quais, ainda por cima, eu me identifico), a questão maior que eu coloco é: como é que se vive e se aprecia a vida quando os nossos estão num sofrimento atroz? Como é que se enche a alma com coisas boas quando esta está partida, furada, em alguns dias feita em cacos? Como é que se criam objetivos quando a estrutura base da nossa vida está constantemente a ser abanada, qual sismo intenso e cheio de réplicas? A conciliação da urgência de viver com a inevitabilidade de sofrer é muito dura. Mais uma das coisas duríssimas com que temos de lidar quando entramos neste caminho com as pessoas que amamos.

Enfim. Quem me dera que chegasse ao fim, esta montanha russa. Quem me dera aprender a gozar a paisagem, ainda que a carruagem siga a grande velocidade. Aliás, mais: quem me dera que pudéssemos todos sair e incendiar o parque todo. No final de contas, sempre disse que não gostava de parques de diversões.

06
Fev23

Uma ode ao meu irmão mais velho (e aos outros também, mas este em particular)

A família sempre teve um papel preponderante na minha vida. Com uma personalidade e vida que não se coadunavam com grandes amizades, era muitas vezes o sangue  que ditava quem me era mais próximo. Na verdade, tudo se proporcionava nesse sentido: eu, muito adulta para a minha idade, escutava as conversas à mesa (e tentava entrar nelas) como gente grande - acabando por me distanciar dos outros miúdos, com brincadeiras pouco sérias e levianas; sempre estive rodeada por muita gente, tendo um núcleo familiar alargado, com irmãos e respetivos namorados com quem sempre me dei lindamente; e, indo para além da família direta, tinha uma relação estreita com tios e primos. Para além de tudo mais, sempre tive uma veia solitária, por isso a minha família era praticamente tudo o que me bastava para ser feliz. Este círculo invadia até a escola, pois duas das minhas primas estudaram comigo, na mesma turma, até à adolescência. Sempre juntas, tínhamos uma base que nos unia e que, principalmente entre os dez e os treze anos, chamavam à atenção dos que estavam à nossa volta, tanto crianças como adultos. Recordo quatro pontos em particular:

1) Não éramos só as "três primas" - na verdade chegamos a ser seis primos na mesma escola. E quem ainda tem a memória fresca do liceu recordar-se-á bem do charme que é estar no fim da cadeia alimentar (vulgo: sétimo ano) e ver a malta do 12º (o topo da pirâmide), apontar e dizer: "aquele é meu primo". Na loucura, até podíamos passar e dizer um olá - e só isso já bastava para sermos um bocadinho fixes e, claro, termos uma proteção extra no que aos problemas-de-recreio diz respeito. Isto com um primo. Agora imaginem seis. Éramos quase a família real.

2) Outra curiosidade é que todos tínhamos o mesmo encarregado de educação - e todos éramos impreterivelmente chamados à atenção de cada vez que escrevíamos o nome dele nas nossas fichas pessoas. Não porque estivéssemos errados, mas porque a pessoa em causa tem duas vezes "Santos" no nome - uma feliz coincidência causada por um "casamento homónimo", mas que levanta sempre questões.

3) Outra das ações de charme que lançávamos era termos uma "música de família". Foi uma coisa inventada há muitos anos pelo meu avô materno, que normalmente entoamos nos aniversários como forma de união. Foi passando de geração em geração e, de tanto ouvirmos, a música vai ficando no ouvido. Tem uma letra inventada - com uma espécie nova linguagem, cheia de onomatopeias estranhas - e que sempre causou muita curiosidade. "Como é que conseguem decorar isso tudo?", perguntavam-nos vezes sem conta. Nem nós sabíamos - mas gostávamos de a mostrar aos outros, e toda a gente ficava pasmada como cantávamos, todas, a letra indecifrável de forma tão coordenada;

4) Por fim, espantávamos toda a gente com os números da família (grandes e sempre em crescendo) e com as nossas reuniões familiares - primeiro porque éramos trinta e tal no Natal e depois porque nos juntávamos muitas vezes, algumas sob pretextos que já na altura não eram muito comuns, como a matança do porco ou a desfolhada do milho. Mas era para mim que vinha o destaque quando entrávamos mais em detalhe sobre o nosso núcleo familiar. Somos quatro irmãos (algo que na minha geração já não é assim tão normal) e eu sou a mais nova. Muito mais nova. E a jóia da coroa era quando, já sabendo o contexto dos meus colegas, lhes dizia que tinha um irmão que era mais velho que os seus pais. 

E é sobre este último tópico que venho falar hoje.

Quando nasci, o meu irmão tinha 22 anos. Os outros dois, apesar de mais novos, já eram também graúdos: 15 e 16 anos. Mas o meu irmão mais velho podia ser, efetivamente, ser meu pai. 

Em muitas famílias - nas que têm sorte - há normalmente duas camadas de pais: os que são efetivamente pais e os "pais-pais", os avós. É uma dupla camada de apoio, de ajuda à educação e, claro, uma duplicação do mimo. Eu, infelizmente, não tive isto: os meus avós maternos faleceram cedo e os paternos, embora ainda tenham durado até praticamente aos meus vinte anos, tinham um gap geracional que não permitia grandes proximidades ou brincadeiras. No entanto, e por um golpe de sorte incrível, eu tive, ainda assim, esta duplicidade parental - os meus irmãos. Eram eles que cuidavam de mim quando os meus pais não estavam ou não podiam - e faziam-no com uma responsabilidade e um carinho sem igual, muito por culpa de eu ter sido uma irmã tão tardia. Do ponto de vista meramente biológico, eu podia ser filha de qualquer um deles - e eles trataram-me e amaram-me como tal. 

Podia achar-se que a diferença de idades nos acabaria por separar, mas a verdade é que isso nunca aconteceu. Até todos eles terem filhos, fingiam comigo: um levava-me ao cinema aos fins-de-semana, outra fazia os trabalhos de casa comigo enquanto eu chorava baba e ranho, outro dava-me bolas de futebol autografadas pelos jogadores do Porto e uma trotinete elétrica na altura em que ainda não eram comuns ou estavam na moda. Era mimada e educada por eles como se fosse, efetivamente, deles. E isso é uma dívida que eu terei sempre para com eles - e para com os meus pais, por me terem proporcionado tal sorte.

Teria palavras simpáticas e de amor profundo para com os três, mas hoje dedico-as ao mais velho em particular. Porque hoje é um dia importante, pois festeja o seu 50º aniversário. E isso significa que está na terra, há meio século, uma pessoa deveras especial.

Este era o irmão que, em conjunto com a sua namorada (hoje mulher, hoje minha irmã por osmose), me levava ao cinema com os meus primos; foi o que me levou ao meu restaurante favorito (e caro) quando os meus pais foram jantar fora com uns amigos; foi quem me permitiu ir com ele escolher o enxoval do seu primeiro filho mais velho, como se eu tivesse sequer de opinar; foi o que sempre me levou a sério e me deixou até, em muito tenra idade, embrulhar as loiças de sua casa quando se mudou. Também foi aquele que me disse vezes sem conta para não pôr os pés nos assentos quando entrasse no seu Opel (caso contrário teria de o aspirar), que me disse repetidamente que juntaria prontamente leite no iogurte sólido para que este virasse iogurte líquido quando o que eu pedia era um iogurte líquido (de compra!!!). Foi também ele que perpetuou, durante anos, uma espécie de bullying devido à forma como comia bananas e entrava nos automóveis.  (Todas estas últimas eu estou disposta a esquecer.) No passado, foi tudo isto.

Hoje, é a primeira pessoa a quem ligo quando tenho um problema no carro. Ou em casa. Ou na fábrica (quer seja em questão de finanças, recursos humanos ou tecnologia). Hoje é a pessoa que me aquece o estômago quando a alma está mais triste e é um dos meus companheiros semanais de padel. É o meu braço direito no trabalho, a todas as horas e aflições. É um conselheiro e um amigo sem igual.

O Zé Paulo é a pessoa mais consensual que eu conheço - de todas as pessoas que já conheci em toda a vida. Ainda estou para descobrir alguém que não goste dele - porque será algo digno de verdadeira análise. É o indivíduo mais requisitado de todos os tempos (porque não sou a única a ligar-lhe quando tenho um problema no carro, no frigorífico ou no computador) e tem uma paciência e uma disponibilidade sem igual para todas estas solicitações. É ponderado e calmo. Tem um grupo de amigos que me inspirada e mete inveja (daquela boa, se é que existe, não é Bambi?). E, no meio disto tudo, sempre arranjou tempo para as suas verdadeiras paixões - a mulher e os filhos, os carrinhos e os aviões e agora a mota.

É uma inspiração - e, muitas vezes, a minha força. É uma das minhas pessoas. Uma das que amo, das poucas que verdadeiramente adoro. Que, ao contrário do que possa parecer, não tenho nem palavras para descrever.

Parabéns, Zé. Sonho contar mais 50 na tua companhia. És a nossa sorte grande. 

 

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25
Jan21

Uma história com princípio, meio e sim! #2

Família, família - convites à parte?

Lembram-se de ter dito que a minha cabeça ficou assombrada com problemas no momento em que me apercebi que ele me ia pedir em casamento? O maior tinha um nome: C-O-N-V-I-D-A-D-O-S.

Não fui a muitos casamentos na minha vida; se tudo correr bem, o meu será o quarto. O primeiro foi o do meu irmão, em que fui uma menina das alianças muito mal humorada; o segundo foi o de uma prima do Miguel e o terceiro, já em época covid, foi de uma antiga colega de escola - a primeira a casar! No primeiro houve claramente coisas de que não gostei, tendo em conta a minha cara de mal-disposta em 99% das fotografias - mas, devido à minha tenra idade à época, não me lembro ao certo do que foi (sei que não ia com a cara do fotógrafo, mas também não sei o porquê). No segundo e no terceiro, já crescida e com a possibilidade bem presente de um dia poder vir eu a casar, estive muito atenta aos detalhes e fiz um esquema de tudo o que gostei e não gostei em cada um deles - e as coisas que me desagradaram estão a ter uma importância imensa na preparação do meu casamento, na medida em que quero fazer precisamente o contrário! Acho que muitas vezes, mais importante do que saber aquilo que queremos, é saber o que não queremos - e nisso, apesar da minha parca experiência, eu estou muito bem preparada.

A questão dos convidados não é nova, pois na verdade sempre achei estranha a ideia de se convidarem pessoas que mal se conhece para um dia que supostamente é tão importante quanto íntimo. Mas foi no casamento da prima do meu namorado que me caiu a ficha. No momento da saída da igreja, em que toda a gente cumprimenta e abraça os noivos, eu dei por mim a dar beijinhos a dois completos desconhecidos e a desejar-lhes as maiores felicidades. Sim, eu era a recente namorada de um primo - mas o primo, o Miguel, não a conhecia muito melhor que eu. E se aquele momento para mim foi estranho, eu imagino para os noivos: com gente a toda a volta, uma confusão do catano, e pessoas que nunca viram na vida a darem-lhes os parabéns e desejos de muitos anos felizes. Se na altura do copo de água, na voltinha pelas mesas, ainda se consegue falar com as pessoas com mais calma e fazer crescer mentalmente árvores genealógicas  ("ah, esta é a namorada do meu primo, que é filho da irmã do meu irmão"), no momento da saída da igreja imagino que seja só o caos total e completo.

E, nessa altura, eu decidi: não queria desconhecidos na minha festa. E ao querer isso eu sabia que ia ter de bater o pé a muitos argumentos e, eventualmente, criar guerras familiares.

 

"Mas se são os pais que pagam o casamento, eles também têm direito a convidar as pessoas de quem eles gostam".

 

"O casamento pode ser vosso, mas também é o casamento de um filho/a; não é um momento só vosso, é deles também".

 

"Nós temos de convidar a pessoa X porque ela também nos convidou para o casamento do filho deles."

 

A todos estes argumentos eu tive resposta pronta na língua. A única coisa com a qual não sabia (nem podia) argumentar é a questão da igualdade de direitos. E esta é mais profunda do que parece. O que eu verdadeiramente queria para o meu casamento é que as pessoas que são importantes para mim e para o Miguel estivessem presentes. Mas logo aí começam a surgir problemas: primeiro há pessoas que se incluem no grupo de quem faria convidar mas que, por uma razão ou por outra, um de nós não teve oportunidade de conhecer - o que já "invalidaria" a sua presença, caso não quiséssemos abrir exceções; segundo, existiriam pessoas dentro da própria família que podia não fazer sentido convidar, uma vez que a relação não é a mesma com todos. E aí vem outro argumento:

"Mas não podes convidar um primo e não convidar outro! Isso não é justo. E ela/e vai ficar chateado - e a tia/o também..."

Mas ainda só estamos a ver as coisas pela rama... O problema central é bem maior e está na diferença de relação que eu e o Miguel temos com as nossas famílias não-nucleares. Do meu lado juntamo-nos no Natal, no Ano Novo, nos aniversários, no São João, no São Martinho e em todos os eventos que achemos pertinentes ao longo do ano (desfolhadas, campismo a e etc). São mesas sempre cheias, com barulho e animação consecutiva, às vezes mais do que uma vez por mês (em alturas não-pandémicas, entenda-se); do lado dele... nada. Há pouca ou nenhuma relação com outros núcleos familiares: tios, primos e derivados. E se o meu critério fosse para a frente, iria resultar na minha família presente em peso e a família do Miguel reduzida a meia dúzia de pessoas. E isso até para mim me parece injusto. No pior dos casos considero-o mesmo egoísta.

Como se tudo isto não bastasse, há ainda outro critério que piora as coisas: quando falo em "pessoas desconhecidas", não seriam oito ou dez. Nenhuma das nossas famílias é pequena (excluindo a do meu pai) e, convidando toda a gente - família nuclear, irmãos de pais e mães, e seus respetivos cônjuges e filhos, que eventualmente também já podem trazer parceiros e até filhos - a ideia que eu tinha é que teria de alugar um descampado, de tanta gente que seria.

A minha convicção era tal que cheguei a considerar mesmo a hipótese oposta: não convidar ninguém a não ser o núcleo familiar. Mas aí ficariam de fora pessoas que também são importantes.

Portanto tinha uma escolha a fazer: ou prescindia de pessoas que queria presentes ou cedia e convidava outras que nunca vi na vida. Foi por isso essencial elaborar uma lista - que foi das primeiras coisas que fizemos mal começamos a pensar em como e quando é que organizaríamos o casamento. Fizemos aquilo que chamamos o "pior cenário possível". Ou seja: se convidássemos todaaaaaa a família e todaaaaaa a gente aceitasse (aqui também já incluímos amigos), quantos seríamos? A resposta, para mim que esperava um número astronómico, foi apaziguadora: 170.

E foi aqui que fiz a primeira grande cedência no meu casamento: sem o argumento dos números - porque não queria um casamento com 300 pessoas - e tendo em conta que não seria justo ter um casamento praticamente só com a minha família, aceitei convidar toda a gente. Mesmo quem não conheço. Acima de tudo por ao amor e respeito ao Miguel e à sua família direta. Porque o casamento é isto: cedências, amor e respeito. E começa ainda antes da festa.

 

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Nota: a rubrica "Uma história com princípio, meio e sim!" tem como objetivo ir relatando acontecimentos e decisões que vão acontecendo ao longo do tempo de preparação para o casamento. A ideia não é contar as coisas à posteriori (a não ser detalhes mais específicos do própria dia, assim como fornecedores e coisas do género) - é mesmo captar os meus sentimentos e pensamentos à medida que os vou tendo, mesmo quando ainda não há decisões tomadas ou concreta. Neste caso específico a lista de convidados já está elaborada mas os convites ainda estão no forno. Mas o processo para lá chegar já teve muito trabalho envolvido... como se percebeu ;)

23
Ago20

Ontem um mocho piou

Nos últimos anos tenho desenvolvido uma certa aversão à expressão "empregada de limpeza". Penso que, acima de tudo, se deve ao facto de ser um trabalho muito "mal-amado" por todos, visto como uma profissão de baixo nível. Em resultado disso, muitos acham-se no direito de mal-tratar este tipo de profissionais, proporcionando-lhes condições de trabalho vergonhosas e tratando-os abaixo de cão.

Eu, pelo contrário, considero-a uma profissão tão digna como ser engenheiro ou arquiteto - e não me choca que uma empregada de limpeza receba tanto ou mais que alguém que tirou um curso destes. Tudo depende do mercado, da oferta e da procura (diria que hoje em dia há muito mais bons engenheiros do que boas empregadas e, como tal, penso que o salário deve refletir essa falta de oferta e, ainda por cima, a crescente procura) e, como em tudo, da dedicação e do amor à camisola que cada um tem no seu trabalho. Mas uma empregada (principalmente a tempo inteiro) tem ainda uma condicionante extra, importantíssima: o seu trabalho é no seio de uma família. Para mim, a partir do momento em que alguém é contratado para esse cargo, tem um passe de entrada como membro daquele núcleo e deve ser tratado como tal. A partir daí, normalmente, advém um carinho e uma amizade especiais, típico de alguém que convive connosco diariamente, que nos conhece, que cuida, que sofre com as tristezas e que festeja connosco as alegrias.

Tenho a sorte de sempre ter tido empregadas a trabalhar lá em casa (como disse, evito dizer "empregada", mas infelizmente não há grandes alternativas) - e guardo, de todas, boas memórias. Mas, acima de tudo, há uma que me ficou guardada na memória - e no coração - depois de lá ter trabalhado durante dezoito anos.

Chamava-se Joaquina. Faleceu ontem. 

A D. Joaquina ensinou-me a ler as horas, depois de me ter oferecido o meu primeiro relógio analógico, todo decorado com cãezinhos. Confiou em mim quando lhe pedi a minha "pi" (vulgo: chupeta) uma última vez, no dia do meu sexto aniversário - o mesmo em que prometi a pés juntos, aos meus pais, que deixaria esse vício. Foi ela quem me ensinou a andar de autocarro e deu comigo a primeira voltinha, dizendo-me onde entrar e onde sair. Ofereceu-me a única Barbie que guardo com carinho e a única pulseira de ouro que perdi - e ainda bem, porque é sinal de que a usei, ao contrário das outras que continuam religiosamente guardadas. 

A D. Joaquina subornava-me com amêndoas de chocolate que guardava no bolso da bata, enquanto me pedia para ir com ela passar a ferro para a lavandaria. Fazia os melhores panados do mundo - e também pataniscas. Adorava os bolos de aniversário lá de casa e farturas frias, que eu trazia de propósito para ela na altura das festas da cidade. Sabia as datas de aniversário de todos nós de cor - e era a primeira a ligar-nos, lá pelas 7:30h da manhã. Fazia contas de cabeça mais rápido do que eu as fazia na máquina de calcular, muito embora tenha passado muito pouco tempo na escola. Acreditava que que, quando um mocho cantava de dia, alguém ia morrer - e eu ainda hoje não gosto de ouvir esse pássaro piar.

Há mais de uma década que deixou de trabalhar, depois de lhe ter sido diagnosticada uma doença que não se coadunava com o trabalho árduo e diário que é cuidar de uma casa grande como a minha. Foi lá várias vezes visitar-nos - e, nos últimos anos, fui eu ter com ela, quando as suas pernas já não conseguiam vir até nós. Em quase todas as visitas trazia-me panados na carteira, para que não me esquecesse de que eram os melhores do mundo.

Numa das últimas vezes que estive com ela contei-lhe que tinha namorado ("finalmente", disse-me ela) - e não vou esquecer o seu ar de felicidade por saber que agora tinha alguém para cuidar de mim. Nos últimos tempos falava-lhe, em média, uma vez por mês; e, em cada despedida, ela mandava "um beijo para o teu Miguel" - nome que nunca esqueceu, apesar de nunca o ter conhecido. 

A D. Joaquina foi uma lutadora a vida toda - e, nos últimos anos, eu achei mesmo que ela tinha algo de imortal, tal a magnitude de tudo aquilo que conseguiu ultrapassar. Mas, no fundo, sabia que algum dia ia ceder às provações que lhe eram constantemente colocadas no caminho.

Ontem recebi a notícia ao final da tarde, depois de um almoço em que falei dela. No dia anterior tinha dito ao meu namorado que, um dia em que casássemos, queria que a D. Joaquina estivesse presente. E, algures num almoço da semana passada, sei que o seu nome também veio à baila. Não creio que seja coincidência. 

Ontem, algures, um mocho piou. E não me levou uma empregada de limpeza. Levou-me família. 

 

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