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Entre Parêntesis

Tudo o que não digo em voz alta e mais umas tantas coisas.

04
Abr24

Quero sair da montanha russa

Estou viva. Estamos todos vivos - e é assim que planeio que estejamos por muitos mais anos. 

De todas as parecenças que não me importaria de ter com a família real, está é a última que colocaria na lista: dois casos de cancro em dois meses, dentro do meu núcleo familiar.

Sem sabermos, em Dezembro, entramos numa montanha russa que ainda não teve fim - e a luz não aparece sequer ao fundo do túnel. Sempre que achamos que o pior loop já passou, vem outra descida abrupta que nos leva o estômago para uma outra parte do corpo onde este não devia estar. A pior parte? É que nem sempre temos cinto de segurança. Já perdi a conta às vezes em que senti que estava a sair da cadeira, a perna já meia de fora e o rabo a escorregar - ou, num cenário ainda mais negro, que estávamos mesmo todos a descarrilar. Não chegamos ainda à parte do vale, em que podemos respirar de alívio porque acabou, sabendo que estamos prestes a sair daquele suplício, daquele banco desconfortável, daqueles sustos consecutivos. Eu já não peço para sair da montanha, porque sei que nalgum dos casos não vamos ter alternativa - só desejo que o caminho esteja limpo e com a manutenção em dia, que a montanha russa seja daqueles de nível baixinho e sem grande adrenalina. Já estou farta de paragens abruptas a olhar para o abismo; não quero ficar de cabeça para o ar nem com o cinto mal posto. Não podendo sair deste parque de diversões do mal, que a viagem seja no equipamento mais calmo.

Porque a verdade é que uma parte de nós parte-se neste processo e eu acredito que não a recuperamos. É como as Horcroxes do Voldemort: pedacinhos da nossa alma que, neste caso, repartimos sem querer e que ficam algures, em alguém ou presos a momentos-chave onde não temos sequer força ou vontade de regressar. Não há nada neste processe que nos acrescente - só nos retira. Não contam os conhecimentos que adquirimos ao longo do processo, a resiliência que construímos ou a força que percebemos que temos. Pondo na balança, não há forma de sairmos a ganhar, porque a memoria não se apaga, a alma não se reconstrói e a dor dificilmente se transforma em alegria. É um caminho de uma só via em que a balança está viciada.

Podia dizer que, com isto tudo, ganhamos perspectiva. Que percebemos que a vida é para ser vivida - e rapidamente, porque porra!, ela muda num estalar de dedos. Mas para além desta filosofia de vida colidir com tantas perspetivas mais cautelosas e conservadoras (com as quais, ainda por cima, eu me identifico), a questão maior que eu coloco é: como é que se vive e se aprecia a vida quando os nossos estão num sofrimento atroz? Como é que se enche a alma com coisas boas quando esta está partida, furada, em alguns dias feita em cacos? Como é que se criam objetivos quando a estrutura base da nossa vida está constantemente a ser abanada, qual sismo intenso e cheio de réplicas? A conciliação da urgência de viver com a inevitabilidade de sofrer é muito dura. Mais uma das coisas duríssimas com que temos de lidar quando entramos neste caminho com as pessoas que amamos.

Enfim. Quem me dera que chegasse ao fim, esta montanha russa. Quem me dera aprender a gozar a paisagem, ainda que a carruagem siga a grande velocidade. Aliás, mais: quem me dera que pudéssemos todos sair e incendiar o parque todo. No final de contas, sempre disse que não gostava de parques de diversões.

06
Fev23

Uma ode ao meu irmão mais velho (e aos outros também, mas este em particular)

A família sempre teve um papel preponderante na minha vida. Com uma personalidade e vida que não se coadunavam com grandes amizades, era muitas vezes o sangue  que ditava quem me era mais próximo. Na verdade, tudo se proporcionava nesse sentido: eu, muito adulta para a minha idade, escutava as conversas à mesa (e tentava entrar nelas) como gente grande - acabando por me distanciar dos outros miúdos, com brincadeiras pouco sérias e levianas; sempre estive rodeada por muita gente, tendo um núcleo familiar alargado, com irmãos e respetivos namorados com quem sempre me dei lindamente; e, indo para além da família direta, tinha uma relação estreita com tios e primos. Para além de tudo mais, sempre tive uma veia solitária, por isso a minha família era praticamente tudo o que me bastava para ser feliz. Este círculo invadia até a escola, pois duas das minhas primas estudaram comigo, na mesma turma, até à adolescência. Sempre juntas, tínhamos uma base que nos unia e que, principalmente entre os dez e os treze anos, chamavam à atenção dos que estavam à nossa volta, tanto crianças como adultos. Recordo quatro pontos em particular:

1) Não éramos só as "três primas" - na verdade chegamos a ser seis primos na mesma escola. E quem ainda tem a memória fresca do liceu recordar-se-á bem do charme que é estar no fim da cadeia alimentar (vulgo: sétimo ano) e ver a malta do 12º (o topo da pirâmide), apontar e dizer: "aquele é meu primo". Na loucura, até podíamos passar e dizer um olá - e só isso já bastava para sermos um bocadinho fixes e, claro, termos uma proteção extra no que aos problemas-de-recreio diz respeito. Isto com um primo. Agora imaginem seis. Éramos quase a família real.

2) Outra curiosidade é que todos tínhamos o mesmo encarregado de educação - e todos éramos impreterivelmente chamados à atenção de cada vez que escrevíamos o nome dele nas nossas fichas pessoas. Não porque estivéssemos errados, mas porque a pessoa em causa tem duas vezes "Santos" no nome - uma feliz coincidência causada por um "casamento homónimo", mas que levanta sempre questões.

3) Outra das ações de charme que lançávamos era termos uma "música de família". Foi uma coisa inventada há muitos anos pelo meu avô materno, que normalmente entoamos nos aniversários como forma de união. Foi passando de geração em geração e, de tanto ouvirmos, a música vai ficando no ouvido. Tem uma letra inventada - com uma espécie nova linguagem, cheia de onomatopeias estranhas - e que sempre causou muita curiosidade. "Como é que conseguem decorar isso tudo?", perguntavam-nos vezes sem conta. Nem nós sabíamos - mas gostávamos de a mostrar aos outros, e toda a gente ficava pasmada como cantávamos, todas, a letra indecifrável de forma tão coordenada;

4) Por fim, espantávamos toda a gente com os números da família (grandes e sempre em crescendo) e com as nossas reuniões familiares - primeiro porque éramos trinta e tal no Natal e depois porque nos juntávamos muitas vezes, algumas sob pretextos que já na altura não eram muito comuns, como a matança do porco ou a desfolhada do milho. Mas era para mim que vinha o destaque quando entrávamos mais em detalhe sobre o nosso núcleo familiar. Somos quatro irmãos (algo que na minha geração já não é assim tão normal) e eu sou a mais nova. Muito mais nova. E a jóia da coroa era quando, já sabendo o contexto dos meus colegas, lhes dizia que tinha um irmão que era mais velho que os seus pais. 

E é sobre este último tópico que venho falar hoje.

Quando nasci, o meu irmão tinha 22 anos. Os outros dois, apesar de mais novos, já eram também graúdos: 15 e 16 anos. Mas o meu irmão mais velho podia ser, efetivamente, ser meu pai. 

Em muitas famílias - nas que têm sorte - há normalmente duas camadas de pais: os que são efetivamente pais e os "pais-pais", os avós. É uma dupla camada de apoio, de ajuda à educação e, claro, uma duplicação do mimo. Eu, infelizmente, não tive isto: os meus avós maternos faleceram cedo e os paternos, embora ainda tenham durado até praticamente aos meus vinte anos, tinham um gap geracional que não permitia grandes proximidades ou brincadeiras. No entanto, e por um golpe de sorte incrível, eu tive, ainda assim, esta duplicidade parental - os meus irmãos. Eram eles que cuidavam de mim quando os meus pais não estavam ou não podiam - e faziam-no com uma responsabilidade e um carinho sem igual, muito por culpa de eu ter sido uma irmã tão tardia. Do ponto de vista meramente biológico, eu podia ser filha de qualquer um deles - e eles trataram-me e amaram-me como tal. 

Podia achar-se que a diferença de idades nos acabaria por separar, mas a verdade é que isso nunca aconteceu. Até todos eles terem filhos, fingiam comigo: um levava-me ao cinema aos fins-de-semana, outra fazia os trabalhos de casa comigo enquanto eu chorava baba e ranho, outro dava-me bolas de futebol autografadas pelos jogadores do Porto e uma trotinete elétrica na altura em que ainda não eram comuns ou estavam na moda. Era mimada e educada por eles como se fosse, efetivamente, deles. E isso é uma dívida que eu terei sempre para com eles - e para com os meus pais, por me terem proporcionado tal sorte.

Teria palavras simpáticas e de amor profundo para com os três, mas hoje dedico-as ao mais velho em particular. Porque hoje é um dia importante, pois festeja o seu 50º aniversário. E isso significa que está na terra, há meio século, uma pessoa deveras especial.

Este era o irmão que, em conjunto com a sua namorada (hoje mulher, hoje minha irmã por osmose), me levava ao cinema com os meus primos; foi o que me levou ao meu restaurante favorito (e caro) quando os meus pais foram jantar fora com uns amigos; foi quem me permitiu ir com ele escolher o enxoval do seu primeiro filho mais velho, como se eu tivesse sequer de opinar; foi o que sempre me levou a sério e me deixou até, em muito tenra idade, embrulhar as loiças de sua casa quando se mudou. Também foi aquele que me disse vezes sem conta para não pôr os pés nos assentos quando entrasse no seu Opel (caso contrário teria de o aspirar), que me disse repetidamente que juntaria prontamente leite no iogurte sólido para que este virasse iogurte líquido quando o que eu pedia era um iogurte líquido (de compra!!!). Foi também ele que perpetuou, durante anos, uma espécie de bullying devido à forma como comia bananas e entrava nos automóveis.  (Todas estas últimas eu estou disposta a esquecer.) No passado, foi tudo isto.

Hoje, é a primeira pessoa a quem ligo quando tenho um problema no carro. Ou em casa. Ou na fábrica (quer seja em questão de finanças, recursos humanos ou tecnologia). Hoje é a pessoa que me aquece o estômago quando a alma está mais triste e é um dos meus companheiros semanais de padel. É o meu braço direito no trabalho, a todas as horas e aflições. É um conselheiro e um amigo sem igual.

O Zé Paulo é a pessoa mais consensual que eu conheço - de todas as pessoas que já conheci em toda a vida. Ainda estou para descobrir alguém que não goste dele - porque será algo digno de verdadeira análise. É o indivíduo mais requisitado de todos os tempos (porque não sou a única a ligar-lhe quando tenho um problema no carro, no frigorífico ou no computador) e tem uma paciência e uma disponibilidade sem igual para todas estas solicitações. É ponderado e calmo. Tem um grupo de amigos que me inspirada e mete inveja (daquela boa, se é que existe, não é Bambi?). E, no meio disto tudo, sempre arranjou tempo para as suas verdadeiras paixões - a mulher e os filhos, os carrinhos e os aviões e agora a mota.

É uma inspiração - e, muitas vezes, a minha força. É uma das minhas pessoas. Uma das que amo, das poucas que verdadeiramente adoro. Que, ao contrário do que possa parecer, não tenho nem palavras para descrever.

Parabéns, Zé. Sonho contar mais 50 na tua companhia. És a nossa sorte grande. 

 

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25
Jan21

Uma história com princípio, meio e sim! #2

Família, família - convites à parte?

Lembram-se de ter dito que a minha cabeça ficou assombrada com problemas no momento em que me apercebi que ele me ia pedir em casamento? O maior tinha um nome: C-O-N-V-I-D-A-D-O-S.

Não fui a muitos casamentos na minha vida; se tudo correr bem, o meu será o quarto. O primeiro foi o do meu irmão, em que fui uma menina das alianças muito mal humorada; o segundo foi o de uma prima do Miguel e o terceiro, já em época covid, foi de uma antiga colega de escola - a primeira a casar! No primeiro houve claramente coisas de que não gostei, tendo em conta a minha cara de mal-disposta em 99% das fotografias - mas, devido à minha tenra idade à época, não me lembro ao certo do que foi (sei que não ia com a cara do fotógrafo, mas também não sei o porquê). No segundo e no terceiro, já crescida e com a possibilidade bem presente de um dia poder vir eu a casar, estive muito atenta aos detalhes e fiz um esquema de tudo o que gostei e não gostei em cada um deles - e as coisas que me desagradaram estão a ter uma importância imensa na preparação do meu casamento, na medida em que quero fazer precisamente o contrário! Acho que muitas vezes, mais importante do que saber aquilo que queremos, é saber o que não queremos - e nisso, apesar da minha parca experiência, eu estou muito bem preparada.

A questão dos convidados não é nova, pois na verdade sempre achei estranha a ideia de se convidarem pessoas que mal se conhece para um dia que supostamente é tão importante quanto íntimo. Mas foi no casamento da prima do meu namorado que me caiu a ficha. No momento da saída da igreja, em que toda a gente cumprimenta e abraça os noivos, eu dei por mim a dar beijinhos a dois completos desconhecidos e a desejar-lhes as maiores felicidades. Sim, eu era a recente namorada de um primo - mas o primo, o Miguel, não a conhecia muito melhor que eu. E se aquele momento para mim foi estranho, eu imagino para os noivos: com gente a toda a volta, uma confusão do catano, e pessoas que nunca viram na vida a darem-lhes os parabéns e desejos de muitos anos felizes. Se na altura do copo de água, na voltinha pelas mesas, ainda se consegue falar com as pessoas com mais calma e fazer crescer mentalmente árvores genealógicas  ("ah, esta é a namorada do meu primo, que é filho da irmã do meu irmão"), no momento da saída da igreja imagino que seja só o caos total e completo.

E, nessa altura, eu decidi: não queria desconhecidos na minha festa. E ao querer isso eu sabia que ia ter de bater o pé a muitos argumentos e, eventualmente, criar guerras familiares.

 

"Mas se são os pais que pagam o casamento, eles também têm direito a convidar as pessoas de quem eles gostam".

 

"O casamento pode ser vosso, mas também é o casamento de um filho/a; não é um momento só vosso, é deles também".

 

"Nós temos de convidar a pessoa X porque ela também nos convidou para o casamento do filho deles."

 

A todos estes argumentos eu tive resposta pronta na língua. A única coisa com a qual não sabia (nem podia) argumentar é a questão da igualdade de direitos. E esta é mais profunda do que parece. O que eu verdadeiramente queria para o meu casamento é que as pessoas que são importantes para mim e para o Miguel estivessem presentes. Mas logo aí começam a surgir problemas: primeiro há pessoas que se incluem no grupo de quem faria convidar mas que, por uma razão ou por outra, um de nós não teve oportunidade de conhecer - o que já "invalidaria" a sua presença, caso não quiséssemos abrir exceções; segundo, existiriam pessoas dentro da própria família que podia não fazer sentido convidar, uma vez que a relação não é a mesma com todos. E aí vem outro argumento:

"Mas não podes convidar um primo e não convidar outro! Isso não é justo. E ela/e vai ficar chateado - e a tia/o também..."

Mas ainda só estamos a ver as coisas pela rama... O problema central é bem maior e está na diferença de relação que eu e o Miguel temos com as nossas famílias não-nucleares. Do meu lado juntamo-nos no Natal, no Ano Novo, nos aniversários, no São João, no São Martinho e em todos os eventos que achemos pertinentes ao longo do ano (desfolhadas, campismo a e etc). São mesas sempre cheias, com barulho e animação consecutiva, às vezes mais do que uma vez por mês (em alturas não-pandémicas, entenda-se); do lado dele... nada. Há pouca ou nenhuma relação com outros núcleos familiares: tios, primos e derivados. E se o meu critério fosse para a frente, iria resultar na minha família presente em peso e a família do Miguel reduzida a meia dúzia de pessoas. E isso até para mim me parece injusto. No pior dos casos considero-o mesmo egoísta.

Como se tudo isto não bastasse, há ainda outro critério que piora as coisas: quando falo em "pessoas desconhecidas", não seriam oito ou dez. Nenhuma das nossas famílias é pequena (excluindo a do meu pai) e, convidando toda a gente - família nuclear, irmãos de pais e mães, e seus respetivos cônjuges e filhos, que eventualmente também já podem trazer parceiros e até filhos - a ideia que eu tinha é que teria de alugar um descampado, de tanta gente que seria.

A minha convicção era tal que cheguei a considerar mesmo a hipótese oposta: não convidar ninguém a não ser o núcleo familiar. Mas aí ficariam de fora pessoas que também são importantes.

Portanto tinha uma escolha a fazer: ou prescindia de pessoas que queria presentes ou cedia e convidava outras que nunca vi na vida. Foi por isso essencial elaborar uma lista - que foi das primeiras coisas que fizemos mal começamos a pensar em como e quando é que organizaríamos o casamento. Fizemos aquilo que chamamos o "pior cenário possível". Ou seja: se convidássemos todaaaaaa a família e todaaaaaa a gente aceitasse (aqui também já incluímos amigos), quantos seríamos? A resposta, para mim que esperava um número astronómico, foi apaziguadora: 170.

E foi aqui que fiz a primeira grande cedência no meu casamento: sem o argumento dos números - porque não queria um casamento com 300 pessoas - e tendo em conta que não seria justo ter um casamento praticamente só com a minha família, aceitei convidar toda a gente. Mesmo quem não conheço. Acima de tudo por ao amor e respeito ao Miguel e à sua família direta. Porque o casamento é isto: cedências, amor e respeito. E começa ainda antes da festa.

 

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Nota: a rubrica "Uma história com princípio, meio e sim!" tem como objetivo ir relatando acontecimentos e decisões que vão acontecendo ao longo do tempo de preparação para o casamento. A ideia não é contar as coisas à posteriori (a não ser detalhes mais específicos do própria dia, assim como fornecedores e coisas do género) - é mesmo captar os meus sentimentos e pensamentos à medida que os vou tendo, mesmo quando ainda não há decisões tomadas ou concreta. Neste caso específico a lista de convidados já está elaborada mas os convites ainda estão no forno. Mas o processo para lá chegar já teve muito trabalho envolvido... como se percebeu ;)

23
Ago20

Ontem um mocho piou

Nos últimos anos tenho desenvolvido uma certa aversão à expressão "empregada de limpeza". Penso que, acima de tudo, se deve ao facto de ser um trabalho muito "mal-amado" por todos, visto como uma profissão de baixo nível. Em resultado disso, muitos acham-se no direito de mal-tratar este tipo de profissionais, proporcionando-lhes condições de trabalho vergonhosas e tratando-os abaixo de cão.

Eu, pelo contrário, considero-a uma profissão tão digna como ser engenheiro ou arquiteto - e não me choca que uma empregada de limpeza receba tanto ou mais que alguém que tirou um curso destes. Tudo depende do mercado, da oferta e da procura (diria que hoje em dia há muito mais bons engenheiros do que boas empregadas e, como tal, penso que o salário deve refletir essa falta de oferta e, ainda por cima, a crescente procura) e, como em tudo, da dedicação e do amor à camisola que cada um tem no seu trabalho. Mas uma empregada (principalmente a tempo inteiro) tem ainda uma condicionante extra, importantíssima: o seu trabalho é no seio de uma família. Para mim, a partir do momento em que alguém é contratado para esse cargo, tem um passe de entrada como membro daquele núcleo e deve ser tratado como tal. A partir daí, normalmente, advém um carinho e uma amizade especiais, típico de alguém que convive connosco diariamente, que nos conhece, que cuida, que sofre com as tristezas e que festeja connosco as alegrias.

Tenho a sorte de sempre ter tido empregadas a trabalhar lá em casa (como disse, evito dizer "empregada", mas infelizmente não há grandes alternativas) - e guardo, de todas, boas memórias. Mas, acima de tudo, há uma que me ficou guardada na memória - e no coração - depois de lá ter trabalhado durante dezoito anos.

Chamava-se Joaquina. Faleceu ontem. 

A D. Joaquina ensinou-me a ler as horas, depois de me ter oferecido o meu primeiro relógio analógico, todo decorado com cãezinhos. Confiou em mim quando lhe pedi a minha "pi" (vulgo: chupeta) uma última vez, no dia do meu sexto aniversário - o mesmo em que prometi a pés juntos, aos meus pais, que deixaria esse vício. Foi ela quem me ensinou a andar de autocarro e deu comigo a primeira voltinha, dizendo-me onde entrar e onde sair. Ofereceu-me a única Barbie que guardo com carinho e a única pulseira de ouro que perdi - e ainda bem, porque é sinal de que a usei, ao contrário das outras que continuam religiosamente guardadas. 

A D. Joaquina subornava-me com amêndoas de chocolate que guardava no bolso da bata, enquanto me pedia para ir com ela passar a ferro para a lavandaria. Fazia os melhores panados do mundo - e também pataniscas. Adorava os bolos de aniversário lá de casa e farturas frias, que eu trazia de propósito para ela na altura das festas da cidade. Sabia as datas de aniversário de todos nós de cor - e era a primeira a ligar-nos, lá pelas 7:30h da manhã. Fazia contas de cabeça mais rápido do que eu as fazia na máquina de calcular, muito embora tenha passado muito pouco tempo na escola. Acreditava que que, quando um mocho cantava de dia, alguém ia morrer - e eu ainda hoje não gosto de ouvir esse pássaro piar.

Há mais de uma década que deixou de trabalhar, depois de lhe ter sido diagnosticada uma doença que não se coadunava com o trabalho árduo e diário que é cuidar de uma casa grande como a minha. Foi lá várias vezes visitar-nos - e, nos últimos anos, fui eu ter com ela, quando as suas pernas já não conseguiam vir até nós. Em quase todas as visitas trazia-me panados na carteira, para que não me esquecesse de que eram os melhores do mundo.

Numa das últimas vezes que estive com ela contei-lhe que tinha namorado ("finalmente", disse-me ela) - e não vou esquecer o seu ar de felicidade por saber que agora tinha alguém para cuidar de mim. Nos últimos tempos falava-lhe, em média, uma vez por mês; e, em cada despedida, ela mandava "um beijo para o teu Miguel" - nome que nunca esqueceu, apesar de nunca o ter conhecido. 

A D. Joaquina foi uma lutadora a vida toda - e, nos últimos anos, eu achei mesmo que ela tinha algo de imortal, tal a magnitude de tudo aquilo que conseguiu ultrapassar. Mas, no fundo, sabia que algum dia ia ceder às provações que lhe eram constantemente colocadas no caminho.

Ontem recebi a notícia ao final da tarde, depois de um almoço em que falei dela. No dia anterior tinha dito ao meu namorado que, um dia em que casássemos, queria que a D. Joaquina estivesse presente. E, algures num almoço da semana passada, sei que o seu nome também veio à baila. Não creio que seja coincidência. 

Ontem, algures, um mocho piou. E não me levou uma empregada de limpeza. Levou-me família. 

 

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06
Jun20

Ter ou não ter filhos: eis a questão

Devem ser muito poucos os temas que considero serem centrais na minha vida e que eu, durante estes nove anos, não tenha abordado no blog. Mas há um que, se a memória não me atraiçoa, eu fui desviando sempre: os filhos. Fi-lo porque não queria deixar aqui registada uma opinião (ou um conjunto de pensamentos) de que, no futuro, me pudesse vir a arrepender. Mas os anos passaram-se e nada mudou. E esta é uma questão que sempre tomou uma certa (des)proporção na minha vida precisamente por eu ter uma postura disruptiva em relação à maioria dos que me rodeiam.

Eu nunca quis ter filhos.

Não me lembro de, em nenhuma fase da minha vida, os querer ter tido - nem mesmo quando não sabia o que isso implicava (e falo desde a sua concepção, passando pelo nascimento e terminando na educação de uma criança). Recordo-me de brincar (poucas vezes) com nenucos, com as minhas primas, e de não lhes chamar filhos. Eu não queria filhos. Nunca quis. Ainda hoje não faço questão de os ter.

"Isso passa-te".

"Nunca digas nunca".

"Com a idade vais ver que queres."

Quem está nos meus calcanhares sabe que são estas as frases que preenchem a nossa vida, no que a este tema diz respeito. Sobre isto todos se tornam leitores da sina: todas as pessoas sabem o nosso futuro, como se não existissem excepções à regra. Como se não houvesse, de facto, pessoas que não queiram pôr crianças no mundo.

A sensação é de incompreensão total. 

Tudo isto piora quando se está numa relação estável e, a olho nu, todas as condições estão reunidas para que o casal possa finalmente procriar. São chamados os "três estágios de perguntas-de-tias" - sendo que, hoje em dia, o segundo se vai saltando com alguma frequência. Quando se está solteiro a pergunta é sempre a mesma: "então e namorados, nada?". Já quando se arranja namorado todas as atenções se viram para o nosso anelar - "estamos à espera de casório!!!". Se a segunda fase for ultrapassada (por questões religiosas, monetárias ou, simplesmente, por teimosia dos visados), chegamos ao terceiro estágio: "então e bebés?!?!?!". 

Se a pressão é enorme para todos os que estão nesta fase, pior é para aqueles que têm um desejo diferente da maioria e que ousam dize-lo em público. "Eu não quero ter filhos". A frase é seguida por olhares reprovadores ao longo de toda a mesa, de julgamentos mentais e, acima de tudo, de desprezo para com os "pobres coitados que ainda não sabem o que querem e que, com a mania que vão mudar o mundo, ainda o dizem em voz alta". Afirmar que não se quer ter filhos é ainda hoje visto como uma afronta àquilo que é o propósito da vida. É uma coisa de adolescente revolucionário. De quem ainda não cresceu o suficiente para não sentir o chamamento. 

O problema é quando a idade passa e nós mantemos as nossas convicções. É o meu caso. Fui esperta o suficiente para adotar um discurso que, ainda que honesto, fosse flexível o suficiente para um dia mudar de ideias: sempre disse que, apesar de não ter o desejo de ter filhos, a possibilidade ficaria em aberto se encontrasse alguém que quisesse dar continuidade à família. Como via a minha vida como um caminho solitário, solteira, nunca foi uma preocupação - mas, entretanto, encontrei a pessoa ideal para mim. De tudo o que fomos falando - e isto aconteceu logo numa fase inicial -, este sempre foi o nosso único ponto de discórdia. Ele, um autêntico encantador de crianças, gostava de ter filhos. Eu fui sempre clara no meu desejo "anti-natura" e quis que ele soubesse que isto era um problema - e se ele fizesse questão de ter herdeiros, então eu preferia que cada um seguisse a sua vida. A decisão é hoje óbvia: estamos juntos. Como sempre disse - e não menti - a possibilidade está em aberto. Mas transformou-se num monstro que me persegue de cada vez que alguém me vem com o terceiro estágio do discurso-das-tias ou até pelo simples facto de ver o meu namorado a interagir de forma carinhosa com uma criança.

Sinto-me culpada. Culpada por, eventualmente, o privar de uma coisa que ele deseja. Culpada por ser assim, "diferente"; por pensar tanto no assunto, por racionalizar uma coisa que a grande parte das pessoas olha de um ponto de vista emocional. Eu não quero ter filhos porque não me agrada a ideia de uma gravidez - não gosto sequer de pensar na mudança de corpo e na bomba atómica hormonal em que ele se transforma. Detesto a ideia do parto. É-me totalmente estranha a romantização da amamentação. Porque dispenso a privação de sono, a privação de momentos só para mim, a privação de momentos a dois. Porque não me atrai a ideia de ter alguém ao dependuro durante todo o dia, dependente de mim a 100%; porque não gosto de pensar que não posso ir de férias para o outro lado do mundo porque não vou pôr a criança num avião durante 21 horas. Porque, ao contrário de muitos, para poder fazer tudo isto de que me vou privar, não quero deixar um filho - uma decisão minha, uma responsabilidade minha, um dever meu - à mercê de outros (ainda que família) que não têm de levar com uma criança aos berros e limpar cocós só porque me apetece ir passear. Porque não gosto do risco de pôr um ser no mundo que, por muito boas intenções que eu tenha e boa educação que lhe dê, pode vir a ser um traste. Porque nem sequer gosto particularmente de crianças. Porque me agonia a ideia de viver para alguém, dedicar-lhe a minha vida, e passado vinte e poucos anos ele me dizer que quer ir de erasmus para ter novas experiências e conhecer novas pessoas.

Percebem a ideia?

Não há nada na ideia de ter um filho que me agrade. Posso listar uma série de razões pelas quais gostava de ter crianças - mas nenhuma delas me envolve a mim. É sempre a pensar nos outros - na alegria e no prazer que lhes daria ao ver crescer a família. E, para mim, acima de tudo... ver nascer um pai. 

Muito para além dos medos físicos que possa ter (sim, estamos a falar do parto) o maior tem que ver com a parte psicológica. Há outros que nem sequer se colocam: não tenho medo de não amar o meu filho, de não conseguir cuidar dele e educa-lo; não tenho medo do acréscimo de responsabilidade. Tenho a certeza de que o faria bem. Mas tenho um pavor colossal de que o papel de mãe faça de mim uma pessoa infeliz. Tenho a certeza absoluta que há muitas mulheres com filhos que não são felizes naquele papel - mas também sei que a maioria não consegue ser racional o suficiente para o perceber ou pelo menos entender a razão do problema. Também sei que, quem o sente, não o diz - afinal que tipo de mãe é que diz uma coisa dessas? Que ingratidão é essa, ter o privilégio de deitar um ser ao mundo e não usufruir de tal coisa? Quem é esse "ser horrendo" que admite que era mais feliz antes de ter filhos? Quem é que consegue ser tão racional ao ponto de amar um filho até às entranhas mas saber que ele não veio alterar a sua vida para melhor? É um paradoxo gigante para o qual não estamos preparados. É um julgamento pessoal demasiado pesado para se conseguir lidar - e muito menos aceitar. E é uma dor que acresce às outras, numa pessoa que já se encontra só por si dorida e frágil na posição que se encontra.

Cheguei à idade que sempre achei que seria a ideal para procriar: porque o corpo recupera bem, porque sou nova e tenho mais capacidade para lidar com a falta de sono e os problemas normais que surgem quando se tem um bebé. Fui uma filha tardia, ambos os meus pais com mais de 40 anos na altura, e sempre disse a mim mesma que, se um dia me tornasse mãe, não gostava de os ter assim tão tarde - tão simplesmente porque sinto na pele as consequências de ter pais mais velhos e detesto a ideia de os poder perder ainda em tenra idade. Costumo dizer que, comparado com os meus irmãos, terei eternamente menos anos de convivência com os meus pais - tudo porque eles me levam um belos anos de avanço; eles ficarão inevitavelmente com mais memórias, porque passaram com eles mais anos de vida. E eu não quero que, para os meus filhos, isso seja uma questão.

Tenho tentado procurar respostas com base na experiência dos outros - mas são poucas as pessoas que me interessa ouvir. Apesar de pertinentes, não é importante para mim ouvir histórias de mulheres que sempre quiseram ter filhos, porque sei que nunca me compreenderão. Mas conhecer algumas pessoas que têm filosofias e medos parecidos com os meus é-me essencial. Independentemente de terem cedido à pressão da sociedade e do relógio biológico, acabando por ter filhos, ou tendo-se mantido convictas na sua crença: o que me importa é a capacidade de análise, a racionalização e, claro, a honestidade. Perceber qual a sua percepção dos resultados: abdicar de tudo aquilo que idealizavam como a vossa vida ideal em prol de um filho compensou? Os medos que existiam eram justificados? Ou, depois de se passar de "prazo de validade" há remorsos em não ter filhos? 

No fundo eu não quero ser mãe: mas gostava muito, muito, muito de querer ser. Gostava de ser quem não sou. E, talvez por isso, vivo diariamente assombrada por uma pergunta: devo correr o risco? Porque nesta decisão em particular não há volta atrás; não há botão de delete, não há um papel que se assine e que acabe com aquela responsabilidade. Estou dentro de uma panela de pressão com todos os ingredientes que, na minha cabeça, defini serem os ideias para ter filhos: tenho uma vida estável, um namorado com desejos de ter uma família e estou na idade que acho ser a perfeita para ter crianças. Mas, ao contrário das previsões do resto do mundo, eu não mudei. Continuo com as mesmas ideias que tinha - ainda que gostasse muito de dar esse presente a todos os que me rodeiam. E isso pesa-me na consciência. Na cabeça. No coração. E na alma. É uma dor enorme, uma dúvida com a qual me debato todos os dias - e que sei que nunca terá uma resposta certa. E, por pouca matemática que saibamos, é certo que as contas que não dão um resultado exato são sempre as que nos dão mais dores de cabeça a resolver.

20
Mar20

25 anos em tempo de Corona

Sempre levei muito a sério o provérbio do "não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti".

Eu detesto festas de anos. Sempre detestei. Já é assim desde miúda, mas nessa altura as razões prendiam-se com o medo que tinha dos escorregas nos parques de diversões escolhidos para festejar a data e porque abominava aqueles bicos de pato com queijo e fiambre que antecediam ao soprar das velas, num bolo de pastelaria igualmente abominável. Agora que penso, passaram os anos e eu não mudei assim tanto: não ando em escorregas e não vou a parques de diversões; detesto bicos de pato e ainda por cima não como queijo; e continuo a achar que um bolo de pastelaria não é digno o suficiente para festejar uma data tão importante. Se é bolo de anos, é para ser em bom - nem que seja feito pelo próprio aniversariante (que é, na maior parte das vezes, o meu caso).

Pois que hoje completo 25 anos de vida. E, dado ser um quarto de século, ia abrir uma exceção: fazer uma festa. Queríamos que não fosse o simples "soprar das velas"; íamos convidar a toda a minha família e até, na loucura, alguns amigos - algo que sempre evitei, porque me faz confusão a mistura de núcleos que não têm nada em comum entre si a não ser conhecerem o aniversariante. Foi sempre isto que detestei em festas de anos; se no dia-a-dia já me sentia muitas vezes excluída e posta de parte, nestas festas a sensação agudizava-se, pois chegava a não conhecer ninguém, e via-me sozinha no meio de uma multidão. Posta de parte porque não alinhava nas brincadeiras. E à parte, porque nunca fui fã do conceito de festa, que envolve barulho e muita confusão.

Mas são 25 anos. Era ano de exceção - não só pelo número bem redondo mas também pela fase da vida que vivo. É o primeiro ano que festejo com um namorado ao lado, que retirou de mim a sensação eterna de estar só, independentemente de estar só com ele ou ter o mundo à minha volta; é o afirmar de uma nova fase, pessoal e profissional - tão importantes e tão vincadas que é impossível ignorar. Por ter toda a gente que importa à minha volta.

Por todos percebermos isso, queríamos celebrar.

Esquecemo-nos que a vida dá muitas voltas. E que raio de volta esta, que mexeu não só comigo, não só como os outros, mas com o mundo inteiro. As séries e os livros de suspense e ficção científica não podiam ter adivinhado o que se avizinhava - num dia tínhamos uma vida normal, noutro estamos presos em casa. As notícias gritam estado de emergência. Contágio à mínima coisa. Mortes. Infetados. De um dia para o outro fecha tudo, de uma noite para a outra não sabemos se continuamos a trabalhar ou se devemos ficar em casa.

Hoje faço 25 anos. Em 25 anos é a primeira vez que não estou com os meus irmãos, seus cônjuges e filhos neste dia que marca o meu nascimento. Foi a primeira vez que não pude abraçar a minha mãe mal abri a porta da cozinha. Em que não pude dar um beijo ao meu pai quando o vi a chegar. Foi a primeira vez desde que cozinho que não fiz um bolinho para que todos pudéssemos comer ao jantar, depois do cabrito assado da minha mãe (o meu prato de eleição). 

É um dia tão feliz como triste: por saber que os anos continuam a contar e que a minha vida está recheada de coisas boas, mas por outro lado por não as conseguir partilhar com quem verdadeiramente amo e faz parte de mim e desta jornada. Que estes tempos de isolamento e de diversidade sirvam para percebermos a importância de pequenas coisas que há um par de dias tínhamos como garantidas. E não falo da festa de anos.

O beijo de uma mãe.

O abraço de um pai.

O canto em uníssono dos meus irmãos a entoarem-me o "Parabéns a Você" - um momento que até hoje passava à frente sem grandes dramas -, enquanto espero para soprar as velas, sem medo de infetar o bolo. 

 

Façamo-nos valer das novas tecnologias, que nos aproximam em tempos de distância. E que este aniversário, que decerto ficará para sempre na minha memória, sirva de exemplo para perceber o que realmente importa. Bem dizem que a "velhice" traz conhecimento associado.  E um quarto de século já é alguma coisinha ;)

 

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29
Ago19

A minha caixa de correio voltou a ser feliz

(ou como reativei a minha conta no Postcrossing)

No verão a minha casa transforma-se num autêntico campo de férias, com todos os meus sobrinhos a serem depositados aqui das suas respetivas casas. Neste momento eles já são (quase) todos crescidos, entretém-se sozinhos, não é preciso andar com eles ao colo; mas, ainda assim, não deixam de nos dar preocupações assim como dores de cabeça - neste caso literais, graças ao barulho que fazem, digno de recreio de escola.

O problema nesta fase é tira-los dos eletrónicos. Mesmo tendo um terreno gigante para correr, cães para brincar, terra para lavrar e uma piscina onde mergulhar, preferem o recanto do computador ou o sofá em frente da PlayStation, com todas as tentações do Fortnite, Minecraft, Roblocs e outras coisas que não sei escrever. Pior que isso é disputarem e contarem os minutos, vendo quem joga mais que quem, numa obsessão que nos deixa a todos (graúdos) completamente loucos.

Foi numa tentativa de os arrancar deste ciclo vicioso e irritante que decidi tirar uma coisa do baú: os meus postais. Inscrevi-me no Postcrossing há mais de oito anos, tenho mais de 700 guardados religiosamente, mas a falta de tempo obrigou-me a parar. Para quem não sabe, o Postcrossing é uma atividade baseada no site com o mesmo nome, que consiste na troca de postais entre pessoas de todo o mundo. Antes que perguntem: não, as pessoas não se conhecem. Mas através de pequenos perfis ficamos a conhecer um pouco das suas vidas e dos seus gostos, que nos ajudam a perceber que postais enviar e que mensagem escrever. Por cada postal que mandamos, recebemos um. Isto de forma resumida e poupando-vos a questões mais técnicas - e a factos depressivos, como o aumento pornográfico do preço dos selos desde a altura em que comecei até agora (na ordem dos 20 cêntimos cada!!!).

Reativei a minha conta e consegui arrastar a minha sobrinha Clara para a ideia. Criámos um ritual e, de cada vez que podemos escrever mais uns postalitos, chamo-a para a minha beira. Ora escreve uma, ora escreve outra - e assim nos divertimos, entre escolher que postal enviar e decidir o que dizer. Ela já percebeu toda a dinâmica, entre selos, moradas e códigos e já escreve como gente grande. Fiquei muito feliz por conseguir fazer com que ela entrasse neste mundo analógico. Como li hoje num post da Isabel Saldanha, que cita José Saramago, “Jamais uma lágrima manchará um email". E apesar desta atividade ter pouco de sentimental - por não conhecermos as pessoas e por serem mensagens demasiado curtas, limitadas por aquele quadradinho de papel -, é engraçado perceber como simpatizamos mais com umas pessoas do que com outras apenas pelo inclinar da sua caligrafia, o cheiro do papel ou o cuidado com que escrevem o nosso nome. Nada disto é possível neste mundo das novas tecnologias.

É muito bonito transmitir-lhe isso e é, para além do mais, uma vitória: pelo menos é menos uma a passar tanto tempo nos eletrónicos ;)

Agora volto a sentir-me uma criança na noite de natal de cada vez que vou à caixa de correio - nem que seja pela expectativa de ter lá algo, para mim e para a Clara, que nos encha o coração. E que coisas boas me têm saído na rifa! Estou feliz por ter voltado.

 

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01
Ago19

O regresso

Tinha precisamente metade da minha idade quando o meu irmão emigrou. Chorei, não quis que ele fosse. Chorei o suficiente para ele adiar a ida e, no dia seguinte, partir enquanto eu ainda dormia. Deixou-me um bilhete com mil beijos, para gastar sempre que tivesse saudades. Está guardado no meu baú das recordações. Cruzei-me muitas vezes com ele enquanto arrumava a minha caixa e, de todas, o meu coração apertava-se. Lembrava-me o momento da partida. E das saudades.

A verdade é que uma pessoa se habitua à ausência. Não é algo bom de se ouvir, ou sequer de se dizer, mas é o que é; o facto daquelas pessoas não estarem presentes em momentos importantes é colmatado com as chamadas via whatsapp, com as mensagens, com os já habituais "então e novidades?". A partilha continua, mas acostumamo-nos ao delay; à falta do abraço, do beijo, das palmadinhas nas costas. Essas pequenas celebrações que nem notamos no dia a dia.

Mas se a ausência faz parte, as inevitáveis idas nunca chegam a entranhar-se. Foram muitas as visitas que o meu irmão e a sua família nos fizeram ao longo destes anos. O mês de Agosto, que hoje começa, foi sempre, por excelência, a altura mais louca nesta casa: quartos cheios, miúdos a correr por todo o lado, jantares, churrascos, festas, visitas. "O João já está cá? Podemos passar por aí?", já faziam parte das perguntas retóricas desta altura do ano. Até ao momento em que, de malas aviadas, eles voltavam a casa - e nunca, independentemente dos anos passados, esse momento deixou de doer. Nunca as ausências nos Natais deixaram de ser notadas. Nunca a vontade de voltar a partilhar com eles os aniversários e outras festividades se extinguiu. 

Este ano Agosto volta a ser sinónimo de confusão, de churrascos, de miúdos a invadir a casa... mas não é mais uma visita. É o regresso. O alterar da morada, do significado de "casa". É sinónimo de presenças em aniversários, de beijos e palmadinhas nas costas sem data marcada; de poder "ir lá a casa" sem ter apanhar um avião para lá chegar; de conseguir ligar para um número sem que o atendedor nos diga "the number you tried to call is not available". É sinónimo de vida em família.

Hoje o meu irmão regressa, deixa de ser emigrante. O bilhete com mil beijos - hoje, com umas largas dezenas a menos - deixa de ser preciso, porque o vou ter perto de mim.

Hoje voltamos a estar os quatro irmãos juntos, sem fronteiras a separar-nos.

É um sonho de há doze anos tornado realidade.

 

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06
Mai19

A filha do patrão

Nunca fui eu outra coisa. Desde bebé que percorri os corredores das fábricas - ora dentro da barriga da minha mãe, em colos alheios ou já pelo meu próprio pé. Sempre fui filha do patrão e, no alto dos meus seis anos, sabia-o bem. Andava por lá, com o narizinho levantado, por saber o estatuto que tinha. Todos sabiam quem eu era, todos sabiam o meu nome. Eu também sabia o deles. É curioso pensar em como era tão pequena mas já tão sabidola. E ainda é mais curioso ver como a minha sensação de poder por ser a filha do dono foi decrescendo à medida que os anos passaram - hoje, do alto do meu nariz só vejo os meus óculos, e sinto-me só mais uma peça naquele tabuleiro de xadrez, tão importante como as outras.

Quando me despedi do jornal para me dedicar às empresas da família, soube que ia doer. E é difícil tomarmos uma decisão sabendo que depois vamos sofrer as passas do Algarve. Porque não é fácil trabalhar com a família; não é fácil separar o pai-pai do pai-chefe; não é fácil não trazer os problemas, as zangas e as mágoas para casa; não é fácil entranharmo-nos nos sistemas criados por outras pessoas, tentarmos perceber o que vai na cabeça delas. Acima de tudo, não é fácil ter de corresponder às expectativas. E é muito difícil, às vezes, ter de bater o pé por aquilo em que acreditamos. 

Estou há cerca de nove meses nesta aventura e uma das coisas que me apercebi é que um dos processos mais complicados é aceitarmos que não somos necessariamente um prolongamento dos nossos pais. Que não temos a mesma forma de pensar, de agir, de trabalhar, de organizar. E perceber que isso não é nenhum crime. 

O curso deu-me oportunidade de conhecer outras pessoas como eu e de ver como até lido bem em não ser a Carolina, mas sim a "filha do papá" e "neta do avozinho". Não me importo de ser a "menina"; de não ser doutora, engenheira, dona ou senhora (ainda bem!). E é engraçado como em conversa com outras pessoas (mesmo fora do curso, que vou encontrando e que percebo que se estão ou estiveram na mesma situação que eu, dentro de empresas familiares) as situações se repetem. "Parece que estás a descrever a minha realidade", dizem. Porque não é propriamente uma coisa da área de negócio, não depende do tipo de pai ou do tipo de filho. É algo genérico. E é sempre difícil.

Mas já se sabe que as nossas dores são sempre superiores às dos outros. Os que não são filhos do patrão insurgem-se, muitas vezes indignados, pela vida facilitada que temos à partida. E eu percebo. Quando me perguntam, em jeito de provocação, "queres trocar?!", eu digo sempre que não. Porque eu sei que os outros não sabem que também é duro ser somente a filha de alguém, eventualmente não valer pelo seu valor próprio. Não sabem que a comparação das atitudes, ações e forma de estar se torna num bicho de sete cabeças nem que as expectativas criadas pelos nossos pais-patrões e todos à nossa volta se converte num autêntico bicho-papão. Não sabem o que custa não poder dizer que está mal, não sermos livres de nos sentirmos revoltados por isto ou aquilo, por estarmos a ser alvo de uma injustiça qualquer - porque quem manda não é só quem manda, mas também quem sempre nos ama e sempre amou, e os sentimentos confundem-se.

Eu não queria trocar, porque pode não ser fácil... mas a verdade é que eu não sei ser outra coisa senão a filha do patrão.

18
Mar19

A palavra de segurança

Se as vossas mentes são perversas e, ao lerem este título, se lembraram imediatamente das 50 Sombras de Grey e das boas práticas do sadomasoquismo, é bom que tirem já o cavalinho da chuva. Não venho falar dessas palavras de segurança... pelo menos, não nesse contexto (ninguém nos diz que a mesma palavra não pode ter várias funções, não é verdade?).

Lembro-me de ver num vídeo de um casal a fazer um balanço do seu casamento e um dos truques que diziam utilizar para uma boa harmonia dentro de casa era ter uma palavra de segurança. Para quê? Para avisar o outro que a probabilidade de aparvalhar, de se irritar ou se passar à mínima coisa é grande, ainda que o outro não tenha qualquer culpa no cartório. Porque, admitamos, a nossa tendência é sempre essa: atirar para cima dos outros – em particular aqueles que nos são mais próximos, que amamos e que nos aturam todos os dias – as frustrações e irritações do dia-a-dia. Às vezes basta uma frase mal dita, uma interpretação mal feita (que acontece quase sempre, porque as alterações de humor têm muito disso) ou algo dito com uma certa entoação para fazer estalar o vidro e impulsionar alguma discussão. E isto acontece porque, por um lado, quem está irritado não tem tolerância perante o outro e o outro não sabe que tem de ter cuidado com o que diz e com o que faz porque o companheiro está, nesse dia, feita uma autêntica florzinha de cheiro.

Acho que isto acontece com todos nós, independentemente do nosso trabalho ou da nossa personalidade; acontece a quem manda porque tem muitas responsabilidades, acontece a quem é mandado porque o chefe não sabe mandar, acontece a quem não faz nada porque os maus dias são umas espécie de lotaria que pode acontecer a qualquer um, desde que se acorde de manhã.

Há dias assim, nem sempre tudo corre como queremos e lidar com as frustrações é só uma das milhões de coisas que temos de aprender a lidar durante a nossa vida. Há quem faça esta gestão melhor, outros pior, mas parece-me que ter uma forma de avisar os outros que aquele não está a ser um bom dia devia estar em qualquer manual de boas práticas de “como viver em harmonia debaixo do mesmo teto”. Poupavam-se muitas discussões, muitos mal-entendidos, e muitas falhas de percepção – assim como um enorme desgaste emocional, uma vez que não é fácil ter de, diariamente, perceber o estado de humor das pessoas com quem vivemos e ter de as tratar com pézinhos de lã antes de conseguirmos fazer o nosso diagnóstico.

Por isso mais vale evitar chatices e, nesses dias, chegar a casa e gritar “banana!”. Ou “Stupeffy!”, para os fãs de Harry Potter. “Darth Vader”, já que mexe com o lado negro da força, também me parece uma expressão adequada para avisar os outros que constituímos um perigo para a paz caseira. Ou, por exemplo, “rede de pesca”, para quem quem gosta de coisas mais marítimas. Ou simplesmente “dia mau” - embora menos imaginativo, cumpre bem a função. E todos sabemos que há, simplesmente, dias assim.

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