Viver em dieta é duro
No início do ano passado eu e o Miguel começamos, juntos, uma jornada para emagrecer - ambos perdemos quase uma dezena de quilos cada (ele um bocadinho mais, eu um bocadinho menos). Na altura eu já estava a tentar perder peso recorrendo à prática regular de exercício físico (falei disso aqui) mas os resultados só vieram depois um corte drástico na alimentação. E foi duríssimo. Eu chorava a pensar em croissaints, pastéis de nata e pizzas. O pior não é o não comer - é saber que não podemos comer; é mais a proibição do que a privação. As primeiras duas semanas foram um autêntico pesadelo, mas o corpo acabou por se habituar à ausência de açúcares e a um corte muito substancial nos hidratos. Quando cheguei aos 60kg senti que conseguiria conquistar o mundo; foi das sensações mais poderosas que tive, uma das maiores vitórias que já havia sentido. Perder quase dez quilos foi sinónimo de remar contra a maré, de superar vontades, desejos e compensações; foi trabalho de muita cabeça e determinação, muito suor e muitas lágrimas - tudo trabalho meu, orgulho meu, louros meus.
Mas eu sabia que a manutenção ia ser o problema. Após a dieta a nossa alimentação do dia-a-dia nunca voltou para trás; nunca regressamos ao Uber Eats e raramente cheirava a pizza lá em casa, nunca mais voltei a pôr batatas nos assados ou a fazer arroz de acompanhamento. Mas, para bem de um cardápio mais diversificado, voltei a introduzir pratos que, por si só, não são assim tão light: a lasanha, a massada de peixe, o arroz de pato e as almôndegas com massa (ainda que sempre pesada na balança, para não ultrapassar a quantidade de hidratos desejada). Pelo meio, uma metade de pão ao almoço e ocasionalmente um pedaço de sobremesa. E é lógico que, entrando o verão, houve gelados à mistura e muito mais saídas fora, onde todos os fatores pró-calóricos são mais difíceis de controlar. E, num ápice, chega o Natal. Quando vou à balança depois das festas, tinham-se passado praticamente nove meses do meu pico de forma, o meu peso tinha praticamente voltado ao anterior à dieta. Durante esse período de tempo mantive sempre o exercício físico, com uma média de quatro a cinco treinos por semana, mas mesmo assim aquilo voltava a acontecer-me.
Dei com a cabeça nas paredes. Tentei, durante os primeiros meses do ano, fazer um meio termo - reforçar o exercício e controlar a comida, mas sem cortes drásticos. Não funcionou. Tive de tomar uma decisão: ou continuava naquele caminho, que provavelmente continuaria numa linha ascendente independentemente dos meus esforços, ou punha outra vez um ponto final nesta história - e desta vez sozinha, pois o meu marido só precisa de uma dieta se o seu objetivo for desaparecer.
Foi uma decisão complicada que tive de ponderar com cuidado; tive de escolher entre encarar um corpo que não estava conforme o que eu queria e uma gestão emocional ainda mais precária do que a que já tinha. Este ano tem sido difícil e duro desde o seu início, sem dar folgas. Quando olho para trás não consigo ter capacidade de recordar muitos momentos bons. A maioria dos que tive foram construídos com cuidado e de propósito, não foram simples ocasiões da vida. Aquilo que me lembro é de ir a Viana do Castelo de manhã e de comer uma bolinha de berlim no Natário, quentinha, acabada de sair do forno; aquilo que me ficou foi o ritual que eu e o Miguel construímos para nos obrigarmos a sair de casa, da nossa bolha, e ir dar um passeio ao Porto, comer um cachorrinho no Gazela e depois uma natinha quente em Santa Catarina. No fundo, o pouco conforto que senti neste ano ríspido foi proporcionado por momentos que envolveram comida - e era disso que eu me ia privar, daquele que às vezes era o único aconchego do meu dia.
Eu não diria que tenho uma relação complicada com a comida. Há, sequer, relações boas? Normais? Eu acho que cometo os mesmos erros dos outros - se estou triste como para compensar o facto de estar assim, se há algo para festejar como porque o evento tem de ser comemorado com algo bom. A diferença é que não tenho a capacidade para abater aquilo que como, mesmo fazendo exercício diariamente. Mesmo não bebendo refrigerantes, mesmo não bebendo álcool, mesmo não comendo nada após o jantar. O meu organismo é o meu principal inimigo e é algo com que vou ter de lidar a vida inteira.
O problema aqui é que a comida é mais do que isso; não serve só para nos alimentar o corpo e, quiçá, a alma. A comida faz parte de diversos ecossistemas, nomeadamente o social. Ir a uma festa de anos e não comer uma fatia de bolo de aniversário é quase rude. Ir a um restaurante de francesinhas e pedir um bife de peru é quase ridículo - já para não falar de doloroso. Ir à praia e não comer um gelado quase faz parecer que não estamos a usufruir do pacote completo. Muitos dos nossos planos sociais, quer envolvam muitos amigos ou só o nosso marido, envolvem comida de alguma forma - e desconstruir isso é, por si só, difícil e doloroso. É mais fácil construir planos novos, limpos de açúcar e tentações, do que tentar alterar coisas que já estão enraizadas em nós como sendo dados adquiridos.
Numa fase em que os problemas de trabalho tomaram conta da minha vida quase por inteiro e com a tendência que tenho de me fechar na minha própria bolha, isto é um problema. Eu sei que preciso de sair e espairecer, mas só em casa é que eu tenho o controlo do conteúdo das prateleiras e do frigorífico, onde sei que nenhuma tentação me poderá fazer sair fora do caminho. Eu não quero ir ao Porto porque sei que não posso comer natas ou cachorrinhos. Eu não quero ir dar um passeio à praia porque sei que não tenho direito a gelado. Eu nem sequer quero ir ao restaurante, onde já antecipo a ideia de ter pessoas à minha volta a comerem sobremesas que eu não posso comer.
Estar em dieta é mais do que a simples privação de comida. É, inevitavelmente, a escassez do conforto interior que a comida nos traz - mas também o corte de muitos planos de fuga que utilizávamos para nos fazer sentir melhor, que por uma razão ou outra incluíam algum tipo de comida. É um estreitar de opções. É a necessidade de usar umas palas, como as dos cavalos, para não podermos olhar para o lado e evitar morrermos um bocadinho por dentro. Fazer dieta é saber que a relação com o espelho melhora mas que o preço a pagar é alto, porque a alma dói.
Há pouco mais de um mês decidi voltar a enveredar por este caminho porque achei que, mesmo estando mentalmente debilitada, seria o melhor para mim. É curioso ver as diferenças entre este ano e o anterior; a relação com a privação está a ser muito mais pacífica e a determinação e a capacidade de dizer que não também; o que me tem custado mais é mesmo a erradicação de determinados planos e passeios que me nutriam a alma e me faziam esparecer a cabeça. Na maioria dos fins-de-semana dou por mim a não sair para não comer - mas já dias houve em que, em prol da minha saúde mental, dei um aval para uma asneira ou outra.
O esforço tem sido recompensado e tenho vindo a emagrecer progressivamente. O plano é ter, pelo menos, mais um mês de restrições pela frente - que não vai ser fácil, tendo em conta que o Sr. de Matosinhos está aí ao virar da esquina. Sendo esta a minha romaria preferida do ano, não é algo fácil de prescindir - nem eu tenho grandes intenções disso; terá de ser troca por troca - um churro por mais 15 minutos de bicicleta.
Com calma sei que isto vai lá - mas "calma" não pode ser sinal nem de lentidão nem de facilitismos, porque já sei que ao mínimo deslize o plano pode ir por água abaixo. Sei que chegarei ao meu objetivo, mas o meu medo é sempre o mesmo: o futuro. Eu ainda não sei qual é o meu ponto médio, o equilíbrio que me permite comer algumas das coisas de que gosto, compensando com exercício, e culminar sem aumentar de peso - e, até aprender, temo muito por este yo-yo em que vivo nos últimos anos.
Quem me rodeia diz-me sempre que estou bem, que o peso não se nota, que nunca diriam que tenho o s quilos que a balança indica. Mas a verdade é uma: eu, sem me aperceber, vou aumentando. É aquilo que me é natural - e eu conheci alguém exatamente assim, com o mesmo estilo de corpo que eu, com um metabolismo que a levava a engordar com facilidade. Era a minha avó, que sempre foi gordinha desde que tenho memória, e cuja mobilidade foi sempre muito reduzida devido ao peso que tinha de carregar nas pernas. Esse não é o futuro que eu quero para mim - e sei que se chega a este estado de uma maneira mais rápida do que parece. No que toca ao peso, andar para a frente é sempre fácil; mas quando queremos engrenar a marcha-atrás... só aí é que se vê de quantos cavalos é que somos feitos. Por isso o plano é continuar a andar para a retaguarda, mas tendo sempre em vista o futuro; é saber que o sacrifício de hoje é a vitória de amanhã. Mas a verdade é uma: os minutos de sacrifício são intermináveis e o amanhã parece a anos de distância. A privação é dura. Mas eu também.
(imagem daqui)