Relativizar
Fez na terça-feira um ano que fui operada. Acho que, mal abri a pestana, foi a primeira coisa de que me lembrei. Não há dúvidas que o tempo cura tudo, mas as dores físicas vão-se muito mais rápido da nossa memória do que as dores da alma. Estas últimas custam mesmo a passar - e um ano está longe de ser o suficiente para curar tudo o que há para curar em relação a esses quinze dias da minha vida, que pareceram meses enquanto os vivia. Comparado com outras coisas é simplesmente irrelevante, mas para mim aquela terça-feira foi das mais críticas da minha vida - acho que ainda choro de cada vez que falo do facto de ter entrado num bloco operatório.
Na terça-feira, tal como os restantes dias desta semana - e talvez da anterior e a antes dessa - eu estava em baixo, num daqueles ciclos viciosos em que entro e de que depois é difícil sair. Começa com uma dorzinha de alma, que se espelha logo na minha cara - tem graça como as minhas olheiras advém muito mais do meu estado de espírito do que do meu cansaço (e sim, às vezes é imediato - se recebo uma notícia negativa, poucos minutos depois estou com um semblante muito mais escuro) - e depois vai avançando para outros problemas, menores ou maiores, recolhendo dores aqui e ali. Acabo estes dias com a minha auto-estima em níveis negativos: sinto-me feia e gorda e todas essas coisas terríveis que as mulheres pensam e de que eu não sou excepção. Pelo contrário, passo a minha vida emersa neste pensamentos auto-críticos e destrutivos de que nunca consegui fugir.
Quando acordei, já cabisbaixa, lembrei-me de que há um ano estava eu a ir para o hospital, supostamente de livre e espontânea vontade, num pânico total e completo; de como não falava, de como num movimento involuntário e completamente inesperado fui todo o caminho para o bloco com as mãos juntas em posição de reza, de como deram conta que eu estava toda às manchas devido a uma urticária nervosa e de como, horas mais tarde, acordei no recobro a chorar - num misto de medo, alívio, vergonha e de tudo um pouco. E ali estava eu, um ano depois, - ainda que supostamente feia e gorda - a andar perfeitamente, a conseguir-me sentar, sem qualquer problema de saúde; com os meus pais e a minha família bem, eu com trabalho e um dia calmo e previsivelmente feliz pela frente. E ainda assim triste, com uma dar de alma no peito e o estômago pequenino, de como quem tem um problema grave pela frente.
Acho que de nada serve quando nos pedem para relativizar e pensar em todos os problemas do mundo e compara-lo com os nossos. As nossas dores serão sempre as nossas dores. Ponto. E, quer queiram quer não, vão sempre doer mais do que as dos outros - lá está, porque são nossas. Ponto. Mas, se calhar, se compararmos as nossas próprias dores, numa estratégia racional, talvez tudo seja mais realista. É claro que a memória e o tempo nos pregam partidas, tornam as coisas mais leves do que realmente foram, mas ainda assim é na nossa ferida que tocamos - e essas doem sempre mais.
É assim que eu combato as minhas crises: racionalmente. Não funciona sempre: ainda estou triste, o nó na garganta está cá, as olheiras também. Mas neste momento, para além de um âmago dorido, eu sinto-me chateada por estar assim - primeiro porque sei que há dores muito piores, porque eu própria já as experienciei, segundo porque são dias que desperdiço a não ser feliz e terceiro porque estou farta de não viver a vida como eu a sei viver. As tristezas não se podem simplesmente atirar para o lixo, não se esquecem. Mas superam-se - e, no meu caso, relativizar ajuda. Se há um ano eu mal me mexia com dores, hoje estou mais que bem. E amanhã a única coisa que quero é estar um bocadinho ainda melhor que isso.