O dia da perda de um amigo de quatro patas
O adeus ao Tomé
Há dias que não nascem para sermos felizes. Às vezes sabemo-lo como dado adquirido, outros sentimo-lo, noutros estamos simplesmente às escuras e, durante o decorrer daquelas 24 horas, damos de caras com qualquer coisa que nos faz querer não nos termos levantado na cama nessa manhã. Mas os dias são para se viver - mesmo os tristes.
E hoje é um deles.
Hoje disse adeus ao guardião mais antigo de minha casa. O Tomé faria 11 anos em Novembro, estando connosco há mais de uma década. Nasceu com um problema na anca e os quase 70kg que carregava todos os dias (não por ser gordo, mas por ser enorme) não ajudaram a que tivesse uma vivência fácil nos últimos tempos. Chega uma fase em que é difícil balançar o nosso sofrimento, por o vermos assim, com o sofrimento deles; eles não falam, não conseguem exteriorizar de forma precisa a dor que sentem, e nós deixamo-nos levar por uma pontinha de egoísmo que nos diz que "amanhã ele estará melhor", tentando adiar o inadiável mais um só dia - e fazendo o melhor possível, puxando por ele, cuidando dele e festejando as suas vitórias como se fossem as nossas. Até ao dia.
O dia foi ontem - o da decisão. O dia foi hoje - o da perda. Decidir a morte de um cão é mau; mas pior é vê-lo a perder a vida em frente aos nossos olhos. É uma dor que temos por garantida no dia em que um cachorro vem para nossa casa, mas para o qual nunca estamos preparados - muito menos se temos de decidir por eles a hora de partir.
Guardo do Tomé o seu instinto de proteção - tão grande como a sua teimosia. Não me esqueço das primeiras vezes que fui tomar café à noite e ele me esperava religiosamente no portão, só indo dormir para o seu posto quando eu chegava a casa. E acho que recordarei sempre, pelo menos enquanto todos à volta da mesa nos rirmos, das vezes em que ele foi confundido com um animal selvagem - quando uns estafetas vieram fazer uma entrega mas não passaram do portão, alegando que "não era legal ter leões em casa"; das vezes em que fugiu, assustando as pessoas de cada vez que irrompia pelas suas casas adentro, deixando-as - e muito confusas - perante o enorme intruso que tinham à sua frente. Já para não falar da altura em que o tosquiamos e enganamos toda a gente, dizendo que tínhamos adotado um cão que estava perdido na rua - e os outros, para além de acreditarem, ainda acrescentavam: "coitadinho, é tão feiinho, mas tem um ar tão feliz!".
O Tomé não era o rei da selva, mas era o rei lá de casa. Amuava quando íamos de férias, não nos dirigindo sequer o olhar, e era subtilmente comprado pelo meu pai depois deste lhe oferecer uma bandeja de costelinhas, prontas para ele destroçar com os seus caninos de quase-leão. Se isso não é de rei, o que será?
É muito fácil que, nestes momentos de dor imensa, tenhamos a tendência de só olhar para o presente (e até perspectivar o futuro). Muita gente diz não querer passar por isto outra vez, recusando-se a voltar a ter um animal de estimação - mas olhando para a balança, o que valeu mais? Os dez anos de alegrias, de peripécias e mimos ou este momento? Para mim compensa sempre a vida e os momentos que partilhamos com cada um deles, mesmo que a dor da despedida seja imensa.
O Tomé partiu hoje mas fará sempre parte da nossa história e da nossa casa. O seu rugido e andar característicos de leão, as suas patas gigantes, o seu carinho e lealdade, os seus olhos doces e focinho gigante deixarão saudades por entre aqueles muros e as paredes do nosso coração. Que agora viva sem dor e corra livremente pelos jardins fora, como fazia dantes.
Tomé
24 de Novembro de 2009 - 8 de Julho de 2020