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Entre Parêntesis

Tudo o que não digo em voz alta e mais umas tantas coisas.

03
Nov24

Se fosse médica queria ser paliativista

Se eu fosse médica, quereria ser paliativista.

É claro que nunca o quis ser. Não há figura que me meta mais medo na vida do que um médico. Não vos sei dizer porquê: se por um lado têm o poder de nos tratar, têm também o poder de nos infligir dor para atingirmos a cura; são transportadores de notícias que nos aliviam o coração, mas muitas vezes comunicam-nos informações que nos tiram o chão; precisam muitas vezes de nos tocar para melhorarmos, mas acham-se frequentemente donos do nosso corpo, sem qualquer pedido de autorização; são o mais próximos que nós temos de Deus, mas têm - alguns - a mania que são deuses, intocáveis, inquestionáveis e indomáveis. E esta figura ambígua sempre me causou angústia. O meu medo não era ir ao médico propriamente dito - era ouvir o seu diagnóstico, aquilo que tinham de me fazer (o maior deles: onde e o quê que tinham de cortar?), perceber onde é que tinham de me tocar para resolver o problema.  

Hoje olho para trás e desejo profundamente que os últimos dez ou onze meses sejam uma fase já encerrada da minha vida, em que as entradas e saídas de hospitais eram semanais, muitas vezes diárias. Foi a chamada terapia de choque: passei de fugir dos médicos para estar sempre a correr atrás deles. Ainda assim, a figura do "doutor" não é algo com a qual já tenha feito as pazes. Porque se por um lado vi um outro lado da medicina, por outro lado os vilões que sempre temi continuam lá: vi-os, com a minha irmã, a olharem para o doente como algo que precisa de tratamento, independentemente do quanto lhe dói ou lhe custa. Como se não fosse um ser humano como eles. E ao dia de hoje ainda não os consigo ver como aliados... talvez nunca consiga. Para mim, com toda a dose de irracionalidade que isto tem, estarão sempre do lado do mal - ainda que vistam frequente e justamente a capa de heróis.

Mas sobre os maus da fita não vale a pena escrever. Este texto tem que ver com os bons - com os médicos que hoje têm o meu eterno respeito, admiração e gratidão. Médicos que não têm a obsessão pela cura, mas que estão em permanente atenção com o doente. Como se sente, aquilo que deseja, onde dói. Foi dos exercícios de maior altruísmo que vi na vida. Porque ser médico e curar é fácil - é aquilo que todos almejam, é a parte "boa" de ter estudado medicina; mas ser médico e encarar a morte como parte do processo natural da vida é só para alguns. E esses são especiais. São paliativistas.

E por isso, estranhamente, foi nos Cuidados Palitivos que encontrei o conforto e confiança na medicina que nunca antes tinha sentido. Foi com medo que trespassei pela primeira vez aquela porta de madeira (quem não?). Racionalmente já tinha feito as pazes com o local que parece ser o mais assustador do hospital (tirando os cuidados intensivos e a unidade de queimados, talvez?), com aquele nome e com a ideia do que lá vamos encontrar. Desde o início desta jornada do cancro que tratámos os paliativos como algo normal e que faziam parte do processo. Eram paliativos: para prolongar a vida, para dar qualidade aos dias que tínhamos pela frente, mas fora do sonho da cura.

Não vou mentir: o primeiro contacto foi penoso. Ainda fora da unidade, quando a minha irmã estava hóspede noutro serviço, vivi uma das conversas mais difíceis da minha vida, num dia que é hoje um borrão na minha memória, em que recordo apenas alguns detalhes dolorosos que tornaram aquelas 24 horas num dos piores dias da minha vida. (A verdade é que, hoje em dia, tenho difículdade em fazer um ranking: foram tantos os momentos maus, de profundo desespero, que já não consigo escalá-los.) Mas ouvir duas médicas a dizerem-nos a verdade daquilo que viam, sabiam e conheciam... foi duro. Muito duro. Faz parte daquilo que é ser paliativista: ser realista, ajustar a esperança àquilo que é realmente possível. Foi um reajuste de expectativas e de longevidade difíceis de engolir - ainda hoje, já tendo a minha irmã falecido, as lágrimas afloram quando relembro esse momento. Uma das coisas que mais me marcou foi ver, pelo canto do olho, o marido de outra paciente agachado no chão, a chorar, enquanto ouvia aquilo que estavam a dizer à minha irmã: porque as cortinas escondem a imagem, mas o som não fica contido por aquela redoma de pano. Todos ouvimos, todos sofremos, todos percebemos aquilo que nos estavam a dizer: o tempo era curto.

E o grande desafio de acompanhar alguém com uma doença terminal é ter a capacidade de mudar o chip rapidamente, não deixando a pessoa afogar-se em pensamentos que a levarão para o fundo do poço; temos de pensar e agir de forma célere, encontrando o outro lado da moeda que às vezes parece ter só uma face. Eu sabia que não podia ficar muito tempo a marinar naquela depressão, até porque o relógio não corria a nosso favor. E, depois de umas horas de choro e meditação em casa, percebi: não importa a quantidade de tempo, importa a qualidade. Eu não queria saber de expectativas de tempo, não queria saber de progressões da doença, não queria saber quanto pesava a minha irmã; queria era saber se a energia dela permitia que vivêssemos um dia bom, diferente, riscando coisas da nossa bucket-list. E, ultrapassada a fase do confronto com a realidade, esta é a segunda (e derradeira) parte de ser paliativista: mostrar o que ainda há para viver, lutar e dar qualidade de vida para lá chegar. Os médicos com quem tive a oportunidade de conviver tinham uma estranha capacidade de serem radicalmente frontais e dizerem as coisas mais duras, conseguindo simultaneamente ser doces, compreensivos e empáticos. Um mix mágico e raro - tão difícil de encontrar que não sabia ser algo passível de ser misturado. E quando vivenciei tudo isto na pele pensei: "se um dia fosse médica, era isto que queria ser".

Depois do baque inicial, conseguir mudar de perspectiva deu-me uma paz que não havia tido naqueles meses de pura luta. Não se tratava de baixar os braços: pelo contrário, era combater pela continuidade de dias bons. E ter à nossa disposição médicos que lutam connosco por essa qualidade de vida, que se preocupam realmente com o doente, que o vêem como um todo... é um luxo que eu não sabia que existia. Finalmente encontrei um médico que não tem de infligir dor para curar... porque o objetivo não é a cura. É a vida. Por mais curta que possa ser.

Num dos muitos dias que passámos na unidade - um dia por acaso especial, pois o meu irmão fez um concerto para os doentes que estavam lá internados - o enfermeiro-chefe disse-nos que os Cuidados Paliativos eram a unidade com mais vida do hospital. E isto pode soar estranho, mas a verdade é que ali a vida vive-se com outra intensidade: a intensidade com que todos os momentos devem ser vividos, atribuindo-lhes o seu real valor. As pequenas coisas deixam de ser pequenas: passam a ser o bálsamo dos nossos dias. E isso sim, é viver. 

É óbvio que esta passagem pelos Cuidados Paliativos moldou a minha vida. São locais que deixam marcas. Mudou a forma como olho para a medicina e como encaro os médicos. Trouxe ao de cima o quanto eu gosto de cuidar dos outros - o que é muito estranho, porque nunca gostei de toques, mas dei por mim a levantar e deitar pessoas estranhas e a dar-lhes a mão só para terem uns minutos de conforto. Alterou a minha forma de ver e lidar com a morte - foi a primeira vez que testemunhei a passagem de alguém - mas, acima de tudo, mudou a maneira como olho a vida. Conheço agora a sua efemeridade, a sua aleatoriedade e acho que percebo alguma coisa (do alto dos meus vinte e nove anos) sobre o seu valor. 

É uma realidade que preferia não ter conhecido - mas, tendo em conta que não tive escolha, estou agradecida à vida por me ter colocado tão boas pessoas no caminho e a oportunidade de aprender tanto. Não é algo que vá esquecer, nunca. O Serviço de Cuidados Paliativos do Hospital de São João será eternamente um local associado à dor de ir perdendo a minha irmã - mas também à oportunidade de viver mais um dia com ela. Será, sempre, uma família que não esqueceremos.

 

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Este texto é dedicado a todas as pessoas que frequentam os Cuidados Paliativos: os pacientes, os familiares, os médicos, os enfermeiros, os "extras" (psicólogos, padres, nutricionistas) e os auxiliares.

É para a minha irmã, que lutou como uma heroína e de quem tenho muitas saudades.

É para a Dra. Teresa, que terá a minha gratidão eterna.

É para a Diana, para D. Conceição, para a D. Lídia, para a D. Fátima, para a D. Cremilde, para o Sr. Bernardo e para todos os que fizeram companhia à minha irmã, partilhando o seu quarto mas também um pouco de si, e que marcaram não só aquela unidade mas, acima de tudo, aqueles que cruzaram o seu caminho.

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