Pré-saudades agudas
Fui tia muito nova. Com dez anos ninguém consegue exercer tal cargo na sua plenitude e, talvez por isso, nunca fui tia: fui sempre Tili, o nome por que todos os meus sobrinhos me chamam. Nunca eles me chamaram "Tia Carolina" - o primeiro deu-me o diminutivo e ficou, até hoje, ao ponto de eles não saberem o meu nome verdadeiro.
Só há um que ainda nada me chama - porque ainda não fala e, provavelmente, nem me reconhece apesar das muitas horas que passo com ele. O David é o bebé mais sorridente do mundo - sorri para homens, mulheres, meninos e meninas, de cabelo curto ou longo, preto ou loiro, com barba ou sem pêlo à vista: sorri para quem vê e isso, desde o primeiro minuto, derreteu o meu coração. O David não chora - nos três meses que esteve aqui, ouvi-o a berrar mais seriamente uma vez, e a muito custo, porque chorar, ao contrário dos outros bebés, não é algo que ele pareça saber fazer. O David come tudo, abre a boca a tudo e não faz cara feia a nada. O David só não gosta de dormir, mas até para isso é pacífico: dez voltas no carrinho e ele sucumbe ao sono. O David é o meu sobrinho mais nenuco, mais redondo e simétrico, literalmente tirado de capa de revista.
A forma como sentimos as coisas depende muito da fase da vida que estamos a passar e eu sei que esta paixão que ganhou o meu coração também se deve ao facto de me ter agarrado a este bebé, com unhas e dentes, para me salvar deste verão desgraçado. Os meus dias mais felizes foram aqueles em que acordei, fui para a cozinha e já lá estava ele, a sorrir para mim mal passava a linha da porta. Foi quando passei meia hora com ele, só nós dois, a refinar o único método de locomoção que ele conhece: rebolar pela cama fora. Foi quando lhe dei os iogurtes da manhã e da tarde e não sujámos nem um bocadinho da babete. Foi quando fomos juntos para a piscina e ele se marimbou para a água mais fresca que o normal e deu às pernocas gordas. Foi até quando me apercebi que ele tinha um cocó gigante até às costas e tive de o limpar - com muito custo - e o enfiar no lavatório para me certificar que não ficava com vestígios colados ao rabo - e foi, claro, quando lhe ia enfiar a fralda e ele, sem aviso prévio, fez xixi sem avisar e com a fralda de fora.
Hoje tenho mais dez anos no lombo do que quando fui tia pela primeira vez e tenho a plena noção de que este foi o sobrinho por quem mais me perdi de amores até agora. Por andar triste e ele me alegrar todos os segundos que passa comigo, por ser mais velha e adorar recém-nascidos, por ele ser o bebé mais simpático e sossegado que conheci até hoje e me dar esperanças na classe das "crianças-que-afinal-não-são-birrentas". Não tem nada mais do que os outros, mas é simplesmente especial. Talvez por ser o único que nasceu comigo com idade para ser tia - ou por me ter apaixonado por aqueles bochechas e aquele sorriso desdentado como nunca aconteceu com outro bebé.
Amanhã o David vai embora - ele, o meu irmão, a minha cunhada e o meu sobrinho - e eu sinto que uma fatia grossa do meu coração vai com eles. Nas últimas "partidas" tenho conseguido conter-me mas sei que amanhã vai doer mais do que o costume - que o nó na garganta vai doer mais, que as lágrimas vão correr sem lhes dar ordem. A minha luz destes três meses vai embora e eu nem sei onde me meter.