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Entre Parêntesis

Tudo o que não digo em voz alta e mais umas tantas coisas.

13
Out24

O que o cancro nos ensina

A Carolina de 28 anos via o cancro como uma doença dos outros. Era uma coisa distante, que eu sabia que existia, que imaginava ser difícil, mas que (ainda) não me tocara. Partilhava a pena, a esperança, a vontade de que as coisas fossem diferentes e que aquelas pessoas não tivessem que passar por tanto... mas não sabia nada. Até ao dia em que aconteceu. Até ao dia em que aprendi que na gíria médica não se diz cancro, mas que os nomes são mais pomposos, difíceis e específicos para quem entende da matéria, que podem ir de neoplasia a melanoma (entre tantos outros que não me lembro ou prefiro esquecer), mas que para nós, leigos, querem todos dizer aquela palavrinha curta mas que tem claramente forma de monstro. Até os meios de comunicação social lhe fogem, chamando-lhe "doença prolongada". Mas, quando ele aparece, não há volta senão enfrentarmos aquelas seis letras. Cancro. 

Ontem, num scroll do instagram, apareceu-me um trecho de uma entrevista do Manuel Luís Goucha a uma convidada que tinha vencido esta doença e que dizia que não tinha aprendido nada com ela. Na secção de comentários batiam-se palmas àquela afirmação e apregoavam alto contra a romantização de tudo o que envolve o cancro.

Não tenho o direito de me opor à opinião de alguém que viveu aquilo na pele. Mas posso falar como cuidadora de primeira linha de não um, mas dois casos, que foram diagnosticados no espaço de três meses. E aquilo que tenho para vos dizer é o seguinte: eu aprendi muito. Aprendo, todos os dias. E mais importante do que aprender coisas práticas - a gíria, os exames, o nome dos medicamentos, os corredores do hospital, a fazer pensos, a colocar catéteres ou manusear sistemas de soro - foram os ensinamentos de base. Foram mudanças nas minhas crenças de vida. Sei que isto vai soar muito cliché, mas é a mais pura das verdades: foi a forma como vivo - porque tenho um relógio a bater o seu tic-tac constantemente no meu ouvido e que me obriga a aproveitar as pequenas coisas da pessoa de quem cuido. Nunca uma ida a um shopping soube tão bem, nunca um banho com música e karaoke foi tão nostálgico e feliz, nunca um sorriso foi tão valorizado. Sei que este não é um sentimento que vá durar para sempre; que no futuro - um futuro que, desculpem, eu não quero imaginar - a minha vida voltará a normalizar e os banhos voltarão a ser a rotina obrigatória e rápida que eram antes e que a ida a um shopping uma mera tarefa a riscar da lista. Eu sei que esta sensação de finitude não dura para sempre. Mas até a finitude levar quem eu amo, eu sinto-a na pele. E obrigo-me a viver e a aproveitar cada coisa pequena, e a valorizá-la como um diamante.

Mas, para além disso, acho que há um ensinamento que vai mudar o rumo da minha vida e que não creio que vá esquecer. A ideia era, no futuro, fazer um texto só sobre isto, mas parece-me pertinente abordá-lo agora. O que mais se alterou, aos meus olhos, foram as pessoas. Não a forma como olham para mim ou para as debilidades daqueles que eu amo, mas a maneira como eu as olho a elas. Se há um ano dizia, com facilidade, que detestava pessoas, acho que hoje não posso dizer o mesmo. 

Descobri empatia em lugares que achava não existirem; olhares compassivos, pessoas que querem realmente ajudar. Também percebi que há dias maus para todos nós e que temos de os respeitar - mas que se calhar aquilo que vemos no trânsito, nas bancadas de futebol e na generalidade das notícias é um alter-ego que todos temos e que, em alguns lugares ou situações, toma posse de nós. Porque no fundo - ou talvez não tão lá no fundo - há muitas pessoas boas. Gentis. Amáveis. Com preocupação genuína pelo outro. Que, dentro das suas possibilidades e regras, nos ajudam. Guardo, nas minhas muitas passagens pelo Hospital de São João, muitos exemplos de gestos que, ainda hoje, me comovem: desde o segurança das urgências a ir buscar uma máscara específica para colocar na minha familiar, aos colaboradores que me davam praticamente livre passe quando eu dizia "paliativos" de cada vez que tirava senha de visita (um beijinho especial para a Anabela), aos médicos que me deram a mão e me abraçaram em momentos em que as lágrimas me corriam inevitavelmente pela cara. 

Em resumo, aquilo que vos posso dizer é o seguinte: não sei ao certo o estado em que entrarei nos 30 anos, daqui a cerca de seis meses. Hoje em dia não tenho hipótese senão viver um dia de cada vez, sempre num cansaço que roça o extremo mas que se contraria devido a uma força e energia que, não sabendo ao certo de onde vêm, terá a sua génese no amor e dedicação profundos que dediquei a esta causa e à pessoa de quem cuido. Mas sei que, comparando com a miúda de 28 anos que entrou nesta jornada às cegas - ainda que enquanto acompanhante -, aprendi muito. Vou ser - já sou - uma pessoa diferente. Mais magoada com a vida, algo amargurada quiçá, com menos fé no divino. Com mais experiência e um leque de conhecimentos muito mais vasto nos mais variados temas. Com outras crenças. E, como tal, diferente. E se isso não é uma aprendizagem, o que será?

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