O enraizar de um hábito
A primeira foto que tenho de um pós-treino no meu telefone foi tirada no dia 20 de Setembro de 2021 - faz por isso hoje, precisamente, um ano. Aqui há dias, enquanto suava a minha alma em cima da bicicleta, pensei que estaria a fazer um ano da primeira vez que tinha subido para cima daquele selim - e, quando fui vasculhar os arquivos, percebi que era hoje.
Foi o Miguel, claro está, que me instou a experimentar. Era Setembro, época de recomeços - e particularmente especial para nós, com o papo cheio das férias e de ressaca após meio ano de uma preparação de casamento particularmente stressante - e estávamos ambos algo desagradados com a nossa forma física. Ele já tinha arrancado no seu processo e eu morria um bocadinho de cada vez que o via em cima da bicicleta, a pingar como uma torneira, deixando ali todas as quilocalorias que queria matar. Eu sentia-me muito frustrada e triste porque não tinha força de vontade para aquilo, porque não queria voltar para o inferno de um ginásio mas não sabia o que havia de fazer; no passado tínhamos feito treinos estilo cardio em casa, mas passado uns meses os joelhos queixavam-se e os resultados não eram tão visíveis como o desejado, pelo que também não tinha o ímpeto necessário para começar. Continuávamos a jogar padel, já de forma mais consistente, mas muito longe de alcançar qualquer meta visível.
Ele ia insistindo comigo para subir para a bicicleta. Um dia, dois, três. Um sábado lá me deu a volta - emprestou-me uns calções de ciclismo velhinhos e cronometrou quinze minutos. Eu pedalei, sem peso e sem rumo e, com os bofes de fora, fiz o esforço de chegar até ao fim do tempo acordado. No fim, festejou comigo por eu ter pedalado durante aquele quarto de hora como se tivesse acabado de fazer um Iron Man (eu sei, tenho sorte no marido que escolhi).
Apesar das dores no rabo, não achei que aquilo fosse assim tão mau. E segunda-feira - porque nós temos a mania que os inícios devem ser sempre às segundas - comecei a minha mudança. Nos primeiros dias fiz 20 minutos, depois 25 e fixei-me na meia hora dali em diante. Inicialmente ia mexendo no peso da bicicleta de forma mais ao menor arbitrária, gerindo as dores nas pernas e a respiração. Em Dezembro o Miguel - outra vez ele, claro - ofereceu-me um smartwatch que, honestamente, fez toda a diferença nesta fase da minha vida. Criou-me metas, deu-me métricas para me guiar. Ainda hoje saio derrotada de uma semana em que não faça cinco vezes algum tipo de exercício (nem que seja uma caminhada de quinze minutos); já sei que estive demasiado parada e sentada se não cumprir com a meta dos 10 mil passos diários e que um treino teve um rendimento mais baixinho se não atingir a média das 200 calorias. Foi, mesmo, o melhor investimento que ele podia ter feito por mim, pela minha saúde e pela minha motivação. Tenho lá a minha vida ativa registada e adoro a política do envio de notificações motivacionais ("só faltam mais dois dias de treino para atingir o seu objetivo!", "mais dois mil passos e chega à sua meta diária!", "ganhou o badge não-sei-quantos por ter subido mil degraus num só dia - as suas pernas são melhores que um elevador topo de gama!") que, por muito parvo que pareça, funciona na perfeição.
No início do ano, creio eu, comecei a fazer treinos do Youtube (do canal do GCN) - assim não pedalo em vão, tenho uma sequência e um objetivo. Descobri que aquilo que melhor funciona comigo são treinos de intervalos e intensidade - e agora que já os sei quase de cor, alterno simplesmente o peso que ponho na bicicleta e aumento e diminuo a velocidade consoante aquilo que me sentir capaz naquele dia. Se no início utilizava só metade da roda do peso (180º), algures a meio deste ano passei a utilizar 270º - sempre sentada. Apesar de haver segmentos que se faziam em pé, não tinha pernas para aquilo. Até que há uns dois meses consegui - e agora já ultrapasso os 360º quando estou de pé e me obrigo a dar à perna. Estas evoluções foram vividas com muita alegria, ânimo e festejo - porque são realmente vitórias impressionantes para alguém que nunca gostou de fazer exercício e que tanto sofreu com isso ao longo dos anos. Na verdade, cada treino é tido como uma vitória - e em todos tiro uma foto para registo e mando para o Miguel, a pessoa que mais me motivou a conseguir e chegar até aqui.
Foi uma evolução feita com calma e passo a passo - não sou (nem nunca fui) de testar os limites do corpo. Se calhar até teria evoluído mais rápido se tivesse puxado a corda e provado a mim mesma que era capaz - mas também é provável que tivesse desistido rapidamente com as dores do dia seguinte e com o esforço mental que era necessário para me arrastar para a bicicleta todas as manhãs. Porque a verdade é que, nos primeiros tempos, não havia hormonas que me safassem - era penoso ir para a bicicleta, sair da bicicleta e, de uma forma geral, sobreviver ao resto do dia (e subir as escadas para o meu escritório? Parecia uma velhinha!). Continuei por pura teimosia e por querer consolidar um hábito e não por me sentir bem antes, durante ou depois do treino - acho que ainda hoje, um ano depois, as endorfinas não funcionam comigo. Agora, com o hábito enraizado, subo para a bicicleta por medo: por medo de engordar e por medo de perder um hábito que, de facto, só me trouxe saúde.
Os primeiros a notar as diferenças foram os outros - para mim, eu estava igual. Mas a minha capacidade de fazer arranques enquanto jogava padel e de conseguir chegar, finalmente!, às bolas mais perto da rede começaram a tornar mais óbvio que a minha forma física estava a melhorar - isso e umas pernas mais delgadinhas, como nunca antes tive. O emagrecimento só veio depois. Atingi o meu pico de peso em Novembro, quando já treinava - na altura estava a tentar emagrecer só com exercício e não sei até que ponto é que não fiquei mais pesada, precisamente, por estar a ganhar massa muscular. Como disse no último post, foi em pouco mais de três meses que perdi quase dez quilos - mas a verdade é que já andava a preparar o corpo e a mudar os meus hábitos nos seis meses anteriores, o que foi indispensável para aquele processo.
Não sei muito sobre a criação de hábitos mas creio que um ano já é o suficiente para dizermos que um hábito está enraizado. Mas isto é como a confiança: demora-se anos a ganhar mas segundos a perder. Passei as minhas férias aterrorizada, com medo de não conseguir voltar à cadência de treinos que tinha conquistado. A rigidez com que vivi o segundo trimestre deste ano, com uma dieta muito restritiva e a treinar seis vezes por semana, era demasiada para uma vida social minimamente ativa e para um dia-a-dia relaxado, mas a verdade é que depois do impacto inicial (que foi duríssimo) o nosso corpo se habitua; difícil é depois encontrar um meio termo. A manutenção é o segredo de qualquer dieta bem sucedida, mas é também a parte mais difícil - porque mal começamos a dar ao corpo aquilo que ele gosta (nomeadamente calorias a mais e o rabo alapado no sofá), ele não quer outra coisa. Quanto mais comemos, mais queremos comer; quanto mais dormimos, mais queremos dormir. Às vezes temos a tendência de nos "fazermos as vontades", de ouvirmos o nosso corpo - aquilo que é tantas vezes necessário em inúmeros casos - mas caímos em erro, continuando determinados ciclos que deviam ser quebrados.
Mas apesar dos meus medos, consegui voltar ao meu regime de exercício com bastante facilidade. Já voltei a planear os meus treinos no início da semana (faço sempre um plano mental, à segunda-feira, para saber os dias em que faço bicicleta tendo em conta a minha disponibilidade matinal e os dias em que vamos jogar padel) e o resto dos hábitos continuam: ponho o treino do GCN no tablet, uma série no telemóvel, ativo o treino no relógio e pedalo - tudo de manhã, se possível ainda antes das 8h. Já cheguei a treinar ao final da tarde, mas só mesmo se for estritamente necessário - a minha força anímica esvai-se durante o dia com todo o stress e problemas do trabalho, pelo que dificilmente conseguiria enraizar um hábito destes ao final da tarde, entre a obrigação de fazer tarefas domésticas e as oscilações de humor e energia que dependem do decorrer do dia. Para além disso, desde há uns meses para cá que tento fazer um ou dois treinos de braços (musculação) por semana, para complementar o cycling (e o padel), uma vez que estou a dar muito mais atenção aos braços do que às pernas.
Duzentos e tal treinos depois, cá estamos - mais magra e mais saudável (noto menos cansaço no final de tarefas que puxam pelo corpo, por exemplo) mas, acima de tudo, muito orgulhosa de mim. Eu não sou só alguém que nunca gostou de fazer desporto - sou, ainda hoje, alguém com marcas profundas ganhas na escola e ginásios alheios, que me magoaram profundamente. São cicatrizes que, levianamente, tentamos pôr para trás das costas e deixar de dar importância, mas que não deixam de ser um peso só porque as escondemos e menosprezamos. Conseguir manter um hábito destes durante um ano é uma superação muito mais mental do que física. Ter encontrado um desporto que não me mata por dentro, sem ter olhos alheios postos em mim que sirvam de ponto de referência ou comparação foi uma lufada de ar fresco que nunca antes tinha sentido e a solução para um problema que achei que não era solúvel. Que dure muitos mais anos e que eu saiba equilibrá-lo com estilo de vida saudável - e que nunca, nunca mais tenha de pôr os pés num ginásio.