Este trabalho não é para mim
Durante este ano de trabalho nunca acordei e pensei "este é o trabalho perfeito para mim". Apesar disso, considero que foi um ano do caraças, onde aprendi até à ponta dos cabelos - e, confiem, eles estão enormes! - e em que foram muitos raros os dias em que não me apetecia ir trabalhar, conviver com os meus colegas e fazer as tarefas que, com o tempo e o hábito, me foram sendo destinadas. No meio dos dias atarefados, de todas as novidades - o salário, o IRS, os recibos, o médico do trabalho, as viagens, o chefe, os colegas, o patrão, as quezílias, as histórias, as férias, as folgas e as faltas -, sempre tive dias de recaídas, em que me perguntava "porquê que aceitei isto?" ou ia mais a fundo e questionava o raio do curso que tirei. Comunicação. Eu, de facto, precisava de um curso intensivo de comunicação com os outros: mas não era para o exercer exaustivamente para o resto da vida!
Este trabalho não é para mim. Eu não nasci para ser jornalista, porque isso implica ir muitas vezes contra aquilo que eu sou. E isso faz-me sofrer. Sofro porque não quero falar com as pessoas, ligar às pessoas, chatear as pessoas. Mas depois também sofro porque tenho prazos de entrega, porque tenho de mostrar trabalho, porque as coisas têm de sair feitas - e bem feitas - independentemente dos dramas pessoais de cada um. E eu não sou de falar, mas também não sou de falhar. E dentro de mim vive-se constantemente este confronto de titãs, entre o não-quero-fazer e o tens-de-fazer.
E sim, na vida vamos ter eventualmente de ultrapassar estas questões - quer em termos profissionais como pessoais. Mas eu estou a faze-lo todos os dias, e isso desgasta-me. Todos os dias estas metades de mim lutam, de espadachim em punho, até o tens-de-fazer ganhar, já com a ponta afiada apontada à garganta do não-quero-fazer. Ele, já sem ar, com as lágrimas nos olhos, o nó na garganta e o desespero no âmago lá faz o que tem a fazer, a muito custo. E quem vê de fora diz que os resultados são bons, que as conversas fluem, que eu sou simpática e natural - nem desconfiando que parte de mim está com uma lâmina encostada à jugular.
Quando alguém me diz "tem de falar com", o meu coração pára por um milissegundo. Lá vamos nós: mais uma moedinha, mais uma voltinha. Principalmente nas férias o "ter de falar com" é ainda pior: eu sei que estou a ligar para pessoas que estão de férias sobre matérias relacionadas com o seu trabalho - e isso chateia-me, porque eu não quero falar de trabalho quando tenho os meus dias de descanso. Eu tenho esta mente "antiquada": não gosto de ligar para ninguém depois das 22h a menos que seja uma emergência, evito ligar à hora das refeições porque para mim são horas sagradas, assim como tento não ligar fora das horas de expediente. Sei que hoje em dia isso significa muito pouco, mas eu tenho esses valores enraizados em mim e de cada vez que clico no botão verde para ligar a alguém, sabendo que essa pessoa está no seu tempo de folga, para mim é matar-me um bocadinho. É ir contra aquilo que acredito. É fazer aos outros aquilo que não gosto que me façam a mim - e eu sempre levei este ditado muito a sério.
Este trabalho não é para mim. Eu não tenho língua de perguntador, eu tenho pânico de falar com os outros ao telemóvel, eu detesto a sensação de estar a chatear alguém, eu evito contactos físicos a todo o custo. Lutei durante muitos meses com o termo "jornalista"; no meu cartão não tem qualquer identificação do meu trabalho, quando me apresentava era simplesmente como colaboradora do jornal. Mas o bloco na mão, os meus textos e as perguntas tiram a dúvida à maioria. Começaram a apresentar-me como jornalista, a identificar-me como jornalista e eu, há um par de meses, tive de me render. "Olá, o meu nome é Carolina Guimarães e sou jornalista", digo, enquanto me dói a alma. Faço-o porque facilita a vida aos outros, não porque sinta que seja verdade. Eu, na realidade, sou tudo menos jornalista. Sou apenas uma miúda que gosta de escrever e que tem pânico de não cumprir com a sua palavra e com aquilo que é para ela mais sagrado: o trabalho. Ainda que este não seja para ela. Porque o tempo é um pau de dois bicos: habitua-nos a fazer coisas que inicialmente tínhamos mais dificuldades (e eu já melhorei muito!), mas também nos dá mais certezas sobre aquilo para o qual fomos ou não feitos para fazer ou ser. E eu sei que este trabalho não é para mim - embora o continue a fazer, eu própria de espada na mão, lutando contra as minhas duas metades.