Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Entre Parêntesis

Tudo o que não digo em voz alta e mais umas tantas coisas.

31
Mai23

Desistir não é para fracos

Há uns dias a minha cunhada, com a melhor das intenções, disse-me: "mas tu não és de desistir, vais ver que vais conseguir!". Na altura encolhi os ombros e torci o nariz, retorquindo: "não é bem assim, mas...". Não me quis alongar na explicação - a ocasião não era propícia e o tempo era escasso. Mas a verdade é que aquela frase me voltou a trazer uma reflexão que eu já tinha tido há uns largos meses, a propósito de um outro assunto. Mas se da primeira vez guardei as reflexões para mim, achei que à segunda tinha de ser de vez. Hoje venho escrever-vos sobre desistir. Desculpa, Ana, por estar a usar o teu positivismo e força para um propósito completamente diferente - mas dar-nos um mote para pensar a fundo sobre os assuntos também é algo de que nos devemos orgulhar. ;)

Vamos, por isso, pôr as cartas em cima da mesa: eu não acho que desistir seja necessariamente uma coisa má. A palavra está conotada muito negativamente, como se fosse sempre uma derrota; como se tivéssemos de atingir um limite (in)visível em que de facto já não há mais nenhum percurso, atalho ou caminho de cabras por percorrer; como se não acreditássemos à partida nas nossas capacidades. Mas e se for, na verdade, uma assunção muito consciente das nossas limitações? E se fôr uma desistência consciente, para bem de nós próprios e da nossa saúde mental? 

Faz-me aflição de que só nos deixem desistir quando chegamos ao fundo do poço - quando, se calhar, a meio do caminho já sabíamos que não iríamos ter forças para escalar as paredes pelas quais estávamos a descer. Faz-me confusão que, perante a crença de que um negócio não tenha pernas para andar, não seja permitido a um empresário fechar uma empresa mesmo que esta tenha liquidez financeira e que seja, ainda, economicamente viável. Faz-me uma impressão imensa ouvir os PT's a gritarem aos seus alunos para não desistirem, que só falta mais um minuto de prancha, porque de certeza absoluta que aguentam uma vez que os limites estão só nas suas cabeças. 

Se é verdade que às vezes temos força para ultrapassar aquilo que achamos que são as nossas limitações, outras também há em que desistir é mesmo a opção certa. Qual é a linha que separa? Qual é o limite do positivismo tóxico e da esperança que se transforma em fé desmedida? Acho que só cada um de nós, no seu interior, consegue descobrir. E nunca é linear - vai haver situações em que de facto seríamos capazes de ir mais além e noutras em que teremos de perceber e respeitar os nossos limites.

De um ponto de vista externo, eu sou capaz de detetar algumas situações em que a linha é ultrapassada: lembro-me de ver, nos últimos jogos olímpicos, o vencedor de um triatlo a atirar-se para lá da meta e a vomitar-se todo, caindo praticamente desmaiado logo após a fita ter sido traçada - para mim, aí, foi ultrapassado o limite do razoável. Recordo-me de ver na televisão milhares de trabalhadores da fileira têxtil a reclamarem por salários em atraso de empresas que abriram falência - e eu sei que se as decisões tivessem sido tomadas antes, com a frieza e antecedência devida, muito daquilo podia ter sido evitado. Porque "desistir" faz parte deste caminho que é a vida, da mesma forma que "começar", "recomeçar" e "tentar" também. Porquê atribuir-lhes conotações tão diferentes? Se não desistíssemos de nada não havia ciclos fechados e outros tantos não poderiam ser criados ou recomeçados.

A conversa com a minha cunhada vinha a propósito de uma fase complicada que atravesso ao nível de trabalho. Como desistir está, de facto, no meu vocabulário, esta foi uma opção que equacionei - mas que, depois de ponderar, pus de parte. Enquanto fizer sentido para mim, continuarei neste papel em que me imiscui e que acarreta responsabilidades que nem sempre são fáceis de gerir, muito menos em períodos de crise. Mas, curiosamente, aquele comentário bateu mais forte pois veio dois dias após uma desistência pública que me custou particularmente: no último recital de piano, das dezenas em que já participei, foi a primeira vez em que desisti de tocar a peça. Desisti a meio. Já a tinha recomeçado, depois dos atropelos iniciais (normais, devido ao nervosismo que uma apresentação pública destas implica); mas na segunda vez, após perceber que me estava a perder completamente, parei de tocar e soltei o pedal. As cordas do piano pararam de vibrar e só se ouviu silêncio. Respirei fundo de forma a ganhar coragem para defrontar a pequena plateia que ali estava, saí por detrás da pauta e expliquei que já tinha experiência suficiente para perceber que aquele não era o dia certo para tocar aquela peça, que não me ia sair. Provavelmente teria sido mais fácil continuar a tocar, melhor ou pior, e chegar ao fim - mas eu não queria apresentar algo que não era o reflexo do meu estudo e do meu esforço. Eu toco bem - e não queria tocar mal só para dizer que não desisti. Fi-lo com dor, esforço e uma ponderação de micro-segundos - mas foi a decisão certa a tomar. O meu sistema nervoso é uma limitação real, que me afeta não só naquela situação mas em tantas outras na minha vida, e eu sabia que não era por tentar dez vezes que a situação iria melhorar. 

Por muito que não gostemos de admitir, nós temos limites. Adoramos esticar a corda, celebramos de cada vez que os ultrapassamos... mas tendemos a esquecer a dor do estiramento, de todas as vezes que correu mal por não (n)os termos respeitado. Porque aquilo que fica na memória acerca do campeão de triatlo é a medalha que trouxe ao peito e não as (prováveis) inúmeras vezes que acabou a vomitar nos treinos. Mas será que esta balança está equilibrada? Será que vale tudo?

A primeira vez que quis escrever este texto foi a propósito de uma aventura no Gerês, da última vez que lá fui acampar com o meu irmão e companhia. Numa das nossas saídas decidimos ir à barragem e alugar uma mota de água; eu pus-me logo de parte, disse que preferia ver de longe, que dispensava andar. Eu tenho um problema claro com a falta de controlo - e, neste caso, embora até pudesse ser eu a conduzir a mota, não me sinto segura em aparelhos que acho por si só inseguros e que atingem velocidades que, na minha cabeça, são desproporcionais e arriscadas. (O facto de ter ficado traumatizada com veículos aquáticos motorizados, na minha viagem aos Açores, não ajuda à causa). Nunca tinha experimentado a mota, mas não era algo que compensasse sequer o risco de tentar. Mas a verdade é que me chatearam tanto para eu ir dar uma volta de três minutos que eu cedi e fui ao pendura, agarrada ao Miguel.

A verdade é que, quase um ano depois, me recordo de pouco: lembro-me de o agarrar como se a minha vida dependesse disso, de ir quase sempre de olhos fechados e a gritar-lhe aos ouvidos para ele abrandar (sendo a resposta dele: "mas eu não posso ir mais devagar...!", o que era provavelmente verdade). A volta foi muito curta, mas quando saí da mota as pernas não se aguentavam sozinhas. Tremia por todos os lados, sentia o desmaio ao virar da esquina e um mal-estar generalizado. E, lá no fundo, ainda a parte física não tinha sequer estabilizado, e já se começava a cozinhar uma sensação profunda de fúria para comigo mesma: porque raio é que eu fui? Porque é que, por pressão externa, cedi a algo que sabia que não ia ser positivo para mim? Porque é que estraguei as próximas horas - que se passaram com todas as consequências de uma descarga de adrenalina e uma quebra de tensão - se já sabia que não ia gostar? Para fazer a vontade aos outros? Para dizer que fui?

Na altura, como faço sempre, "escrevi" vários trechos mentalmente sobre este tópico - mas nunca os passei para aqui. Mas hoje achei que seria pertinente. Porque a desistência está altamente relacionada com os nossos limites - tanto os que imaginamos como aqueles que realmente temos. E não há problema em conhecermos os nossos limites, respeitá-los, aceitá-los e impormo-nos em prol deles. Não há problema se os conhecermos de raiz e não subirmos, pura e simplesmente, para cima da mota de água - assim como não há problema em perceber as coisas a meio do caminho, descobrirmos limites que até então desconhecíamos, e desistir a meio de um projeto se acharmos que ele não tem viabilidade futura. 

Para mim, a capacidade de erguermos a cabeça e de assumirmos que desistimos é tão legítima e poderosa como a de continuarmos a andar em frente, indiferentes ao medo, às más línguas e a contextos infelizes. Os dois caminhos são válidos, ambos têm valor. Só nós é que podemos ver qual é a linha que separa - e só nós, em cada um dos nossos trilhos individuais, é que temos o poder de deixar de atribuir de forma literal uma desistência a uma derrota. Porque não são sinónimos. Porque uma desistência pode valer mais do que muitas medalhas; pode valer mais do que uma salva de palmas. Na verdade, pode valer-nos muita saúde mental e qualidade de vida - tal e qual como ir à luta. 

5 comentários

Comentar post

Pesquisar

Mais sobre mim

foto do autor

Redes Sociais

Deixem like no facebook:


E sigam o instagram em @carolinagongui

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Leituras

2024 Reading Challenge

2024 Reading Challenge
Carolina has read 0 books toward her goal of 25 books.
hide


Estou a ler:

O Segredo do Meu Marido
tagged: eboook and currently-reading
A Hipótese do Amor
tagged: currently-reading
I'm Glad My Mom Died
tagged: currently-reading
Spare
tagged: currently-reading

goodreads.com

Arquivo

    1. 2024
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2023
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2022
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2021
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2020
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2019
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2018
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2017
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2016
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2015
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2014
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2013
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2012
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2011
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D