Contra as raposas velhas: remar, remar!
Aprendi que devo falar com muito pudor sobre o meu trabalho. Sou sempre muito contida nas apreciações e opiniões que teço, não vá ofender o mais próximo. Não me apetece comprar guerras. Sei que, aos olhos da maioria, estou numa posição de favorecimento constante - e não vai ser o meu discurso que vai mudar (ou, simplesmente, suavizar - o que já não era mau) as teorias de Marx e companhia, que ainda hoje agudizam o gap que existe entre patrões e trabalhadores. Tenho pena que, quase a um quarto do século XXI, isto ainda venha à baila num país desenvolvido - mas não me iludo e sei que provavelmente este paradigma nunca se vai alterar. Teria muito para dizer - mas, para isso, teria que ouvir também, e nesta fase que atravesso não tenho energia para tanto.
O facto de não escrever sobre o meu trabalho faz com que, na maioria dos dias, não escreva de todo - porque muito do que me apoquenta, muitas das minhas reflexões, giram à volta deste mundo. Quer eu queira, quer não, é na fábrica que passo a maior parte do meu dia - e é lá que nascem os meus maiores problemas. Cedo defini balizas sobre o que escrever ou não - e pus um risco bem visível sobre este tema depois de ter escrito um post que achei inofensivo (e instrutivo) sobre a construção de currículos mas que, na área dos comentários, deu pano para mangas.
Hoje, no entanto, quebro a regra para poder desabafar. Não sobre um problema do ponto de vista de um patrão ou de um emprego - mas sim sobre uma questão geral que assola a indústria onde trabalho (a têxtil) e, infelizmente, a sociedade em geral.
A mentira. Aliás, permitam-me o vernáculo: a merda da mentira! A falta de transparência. A ganância. A falta de vontade de deixar tudo claro; a premeditação, o costume, o tão habitual que é o normal. E, no fim de linha, a incapacidade de percebermos que temos de romper ciclos para passar para o próximo nível.
Cresci a ouvir os clientes ligarem em repeat mode para os comerciais para saberem os prazos de entrega de um determinado produto. "É já amanhã", diziam eles, sabendo que só passado quatro dias é que entregavam a mercadoria. Mesmo na altura, do alto dos meus sete ou oito anos, percebi que não o faziam por mal - mas a pressão do cliente era tanta que se rendiam à evidência de que do outro lado só se iriam calar quando lhes dissessem o que queriam ouvir.
Vejo diariamente jogadas sujas, que repudio sempre. Pedir cotações de algo e perceber, por comparação, que alguém me está a dar um preço inflacionado para ver se cola - mas, quando confrontados, "falam com a administração" e conseguem um valor significativamente mais baixo; ou então, pura e simplesmente, mandar o rececionista dizer que "estamos numa reunião até ao final da tarde" quando passamos o dia todo ao computador no nosso escritório.
Isto são só o exemplos próximos, do meu dia-a-dia, com que sempre lidei. Há tantos outros que me poderia lembrar se quisesse. Têm todos um elo comum: a falta de honestidade. E o problema aqui é que, em qualquer fase que apanhemos o comboio, somos obrigados a adequarmo-nos àquilo que está instituído - e isso, normalmente, implica mentir também.
Eu sou nova, ocupo uma posição de poder dentro de uma instituição (que é pequena, mas o tamanho não importa) e, como tal, sinto a responsabilidade moral de fazer parte da mudança - uma mudança transversal, que passa por ações e por mentalidades, por um estreitamento do gap patrão-funcionário e cliente-fornecedor. E por isso, quando assumi que era isto que queria fazer da vida, decidi partir a roda. Enquanto patroa, não quero ficar-me pelo escritório e não conhecer o chão de fábrica. Não quero que me tratem por doutora ou engenheira (que, na verdade, não sou), mas pelo nome que me deram quando nasci. Não quero reger pelo medo, mas pelo respeito e pelo exemplo. Quero condições dignas para todos, quero equilíbrio, quero abertura para se darem opiniões e reportarem problemas. Quero a verdade - mesmo que isso tenha consequências.
Defini que o rigor nos prazos e a transparência tinham que ser o nosso mote. Se o cliente quer uma malha para dia 24 e eu só a posso entregar dia 26, então o negócio não acontece. Se o cliente liga a perguntar se eu estou e se eu estiver, de facto, disponível, eu atendo - e não mando alguém mentir por mim. Se a malha vai com uma quantidade de defeitos maior que o aceitável, a crise antecipa-se: fala-se ao cliente, explica-se a situação, propõem-se solução e não se espera simplesmente que eles não notem.
Os conservadores apontar-me-ão o dedo e dirão que, no meio deste jogo, sou eu quem sai a perder, porque os outros não jogam no mesmo tabuleiro que eu, muito menos com as mesmas regras. Mas como é que queremos que algo mude se não formos os primeiros a acreditar na mudança? O facto de eu me reger por determinados valores não quer dizer que esteja delirante, a viver num mundo irrealista: sei com que linhas é que o meu negócio se cose. Pretendo é mudá-las. E acho que a única forma de o fazer é dando o exemplo, mostrando que é possível ser-se honesto e transparente - mesmo que, em primeira instância, possa parecer que o prejuízo chega primeiro que o ganho. Como na agricultura, penso que temos de ter paciência - plantar para depois colher.
Não sei se esta é uma guerra que se possa ganhar - a inércia das raposas velhas é tão grande e forte (e, infelizmente, já com grandes heranças) que é difícil deixar de sentir que estou sempre a remar contra a maré. Sinto alguma mudança no ar - acho que as pessoas mais novas, por perceberem os erros do passado, estão a tentar fazer diferente, mas infelizmente a ganância não é uma característica que se extinga - mas sei que, a acontecer, será algo para demorar décadas. Isso não me demove, porque eu não sei trabalhar de outra forma - e se algum dia me adequar aos (maus) padrões de normalidade, dêem-me por favor uma palmada bem dada nas costas e digam-me que já não vale a pena continuar.
Para mim, o propósito de um negócio não é só fazer dinheiro. É empregar, é criar e distribuir riqueza, é trazer algo de novo - mesmo que esse "novo" seja uma mudança de mentalidade. Eu dirijo uma fábrica velha - velha nas máquinas, velha na infraestrutura, velha nos anos e com muitas pessoas já "entradotas". Mas espero seriamente que não me faltem as forças para, daqui a uns anos, perceberem que apesar de uma carcaça velha, somos feitos de uma fibra moderna e fresca e não de uma carne rija como a das raposas velhas.