Caixa d'óculos
Já há alguns anos que sabia que via mal. Quando entrei na faculdade tínhamos de fazer umas provas, incluindo à visão, que deram - à primeira vistoria - uns resultados trágicos de apenas 70% de visão no olho direito. É lógico que eu não estava assim tão cegueta e aquele teste foi feito às três pancadas. Fui mesmo ao oftalmologista que me disse que, apesar de ver pior do tal olho, não era razão para alarme e que, caso não tivesse efeitos secundários, o uso de óculos era dispensável.
Passaram-se cinco anos desde essa altura. A primeira lembrança deste meu mal veio numa aula de piano. Estava no último teclado da sala e, para olhar para uma pauta projetada no quadro, fechava os olhos mais do que qualquer asiático. "Precisas de óculos, mulher!", gozou a professora. Pouco tempo depois comecei o meu curso executivo. Na fila do meio, os powerpoints liam-se com alguma dificuldade, mas tudo o que era escrito no quadro - principalmente a vermelho e a verde - passava-me ao lado. E as legendas do Netflix, mais pequeninas que o normal? Nos dias de maior cansaço, era um esforço extra. E aí eu soube que tinha chegado a altura.
Durante este processo lembrei-me muitas vezes de uma história que vivi com a minha irmã. Certa vez, no Algarve, ao esquecer-se das suas lentes e tendo lá em casa umas compradas por uma das minhas primas - com mais dioptrias que ela -, decidiu experimentar. E, naquele momento, parece que entrou num mundo novo. "Eu vejo pó!", dizia ela, espantadíssima. Eu não cheguei a esse ponto, mas já não me lembrava do quão nítidas podiam ser as coisas. Vivia há já algum tempo num mundo esbatido.
Adaptei-me muito bem aos meus novos amiguinhos - só as primeiras três utilizações é que me deixaram um bocadinho confusa, mas resisti - e agora são-me indispensáveis na carteira, e muito mais em qualquer situação de aula. Não os uso sempre - só quando preciso ou conduzo à noite -, mas infelizmente apercebo-me que estou a ver gradualmente pior quando estou sem eles. Pelos vistos é normal, para mal dos meus pecados.
Cá em casa dizem que pareço uma professora. Eu ainda não sei se gosto ou não, mas não lhes ofereço qualquer resistência - sinto-me cegueta e um bocadinho incapaz quando não consigo ler coisas que antigamente via. Portanto é isto. Oficialmente caixa d'óculos.