Aprender a aceitar as inevitabilidades da vida
Eu sei que foi no dia em que fotografei o ouriço-cacheiro. Lembro-me bem de acordar, ver aquela bolinha de picos no jardim interior e de me agachar com dores para o fotografar. Publiquei no facebook. E todos os anos ele lá me relembra daquela foto que tirei, horas antes de ir para o hospital e ser lancetada, num quisto na zona do sacro-ilíaco (que é como quem diz cóccix ou rabo). Era só o início de uma fase que terminaria cerca de três meses depois, quando fui operada. Foi uma fase muito má para mim; diria que, como um todo, e juntando a dor física e psicológica, foi a mais dura que enfrentei em toda a minha vida. O pânico dos médicos; a recuperação difícil; ter de aceitar que eu não podia cuidar de mim própria e que tinha de depender dos outros para me ajudarem a recuperar; ter de enfrentar o pudor de expôr partes do corpo que dispensava mostrar às pessoas de uma forma geral.
Falo disto como se fosse uma coisa do outro mundo, como se tivesse sido uma doença gravíssima - que, graças a Deus, não foi! - mas já se sabe que as nossas dores superam sempre as dos outros. E a partir daí ganhei um medo para juntar a todos os outros que já tinha: que aquilo me voltasse a acontecer. É sabido que nestes casos há muitas reincidências e o meu pânico era quase diário, sempre que a mínima coisa me doía; aliás, eu chegava a não acreditar nas minhas próprias dores, por saber que a minha cabeça poderia estar a inventar coisas onde elas não existiam.
Pois que domingo, confrontada com mais dores que o normal, o medo voltou a abater-se sobre mim. Chorei quando percebi que provavelmente tenho outro quisto e perguntei aquela coisa que todos nos perguntamos neste momento: "porquê a mim, o quê que eu fiz?". E depois caí na real. Caramba, e o que fizeram todos os outros? Tanta gente que conheço, com coisas quinhentas vezes piores que estas, que vivem a vida e a seguem como se nada fosse. Aceitando. Percebendo que às vezes não há nada a fazer para além disso mesmo: aceitar. Que não somos escolhidos para ter isto ou aquilo, que as coisas simplesmente acontecem e só temos de fazer aquilo que tem de ser feito.
Por isso cá ando. Lá fui para o hospital, drenar o que tinha de ser drenado, e esperar que tudo não passe de um susto e o que o bisturi não tenha de voltar a entrar em contacto com a minha carne tão cedo. Comportei-me como uma senhora; uma senhora com cara de poucos amigos, nada feliz, com um ansiolítico a correr nas veias - mas uma senhora. No meio do terror que foi para mim aterrar naquele que era um dos meus piores pesadelos, estou muito orgulhosa por ter conseguido manter a compostura, longe dos ataques de pânico que normalmente me assolam (devido à iatrofobia - fobia dos médicos) em momentos deste género, em que a minha racionalidade é totalmente posta de lado e dá lugar a um alguém que não consegue agir, pensar ou respirar para além do medo. E, acima de tudo, por num momento de dor ter sido capaz de aceitar que estas coisas acontecem e que no caso não há nada que possa fazer para as evitar. E aqui a impotência junta-se a um encolher de ombros pouco convencido, que culmina numa coisa a que muitos chamam de destino. Inevitabilidades da vida, incontroláveis por nós, por muito que mexamos os fios desta nossa marioneta.
É respirar, ter calma e esperar pelo melhor. Se o melhor não vier, que venha a coragem para compensar.