Adeus 2024
Todos os finais de ano faço um balanço sobre os 365 dias que passaram e uma lista daquilo que fiz, para registar para a prosperidade. E se por um lado me custa romper a tradição, por outro não acho que faça muito sentido dedicar mais palavras a um ano tão miserável como 2024. Foi, de longe, o pior ano da minha vida: e não pareceu um ano, pareceram três. A primeira parte, de Janeiro a Março, teve a minha mãe muitíssimo doente, com perspectivas de futuro atrozes e praticamente depende de terceiros para (sobre)viver; a segunda parte, de Março a Outubro, a testemunhar o declínio rapidíssimo da minha irmã, que havia de culminar na sua morte; e a terceira parte, de Outubro até ao final de ano, numa espécie de alívio sem rede, um misto de sentimentos muito difícil de descrever e ainda pior de gerir. Acho que posso compará-lo à saída de um recluso de uma prisão onde esteve a cumprir a nossa pena máxima: há alívio por finalmente sair daquele pesadelo, mas é inegável o medo que se sente do futuro por nada ser igual ao que era dantes. A realidade, como a conhecemos até então, muda completamente; as dinâmicas entre as pessoas são diferentes, o peso que carregamos às costas, fruto da experiência, é muito maior. O mundo, em si, é o mesmo... mas parece completamente alterado.
Foi tudo tão mau, tão mau que eu não consigo compreender como é que 2024 foi bom para alguém. Testemunhei, de longe, os episódios mais dramáticos, tristes e traumáticos da minha vida - daqueles em que nos beliscamos e pensamos: "isto só pode ser um pesadelo". Não foi um, não foram dois, foram dezenas: de berros, choro, dor física, dor emocional até ao pânico máximo de ver alguém a morrer à nossa frente. Vi o verdadeiro desespero nos olhos daqueles que me rodeavam vezes sem conta. Tomei, e tomamos em conjunto, decisões pesadas e atrozes que, se não tivessem sido feitas em determinados contextos (que já nem hoje consigo reproduzir), me pesariam na consciência até ao resto dos dias. Falei da morte como quem fala da máquina de lavar a roupa. Fiz de médicos, amigos. Dos irmãos, companheiros de trincheira. Da minha irmã, o foco principal da minha vida.
Só escrevo hoje, mais de uma semana passada desde o novo ano, porque a transição de 2024 para 2025 não foi fácil. Lembro-me bem dos primeiros minutos de 2024, passados com lágrimas nos olhos e medo do futuro, porque sabia do estado de saúde da minha mãe e temia que a minha vida mudasse muito; foi a primeira vez que, na virada do ano, sabia que não adiantava de muito pedir desejos, porque a única coisa que importava era manter viva quem me deu vida - e sabia que, para isso, ainda iríamos todos sofrer muito. O que eu não sabia era o quanto; o que desconhecia era que a vítima de 2024 seria outra, numa viragem da lógica da vida que custou ainda mais a superar. Sabia que 2024 ia ser difícil, mas longe de imaginar que ia ser aquilo que foi. Um pesadelo tornado realidade.
No entanto, é difícil fechar um ciclo onde sabemos que deixamos coisas valiosas que jamais vamos poder reaver. Custa saber que os anos avançam e que a minha irmã não avança com eles. Os dias vão passando e as metas vão-se ultrapassando: já foi o primeiro Natal, agora o primeiro ano novo, e ainda tantos "primeiros" estarão para vir que dói só de imaginar. Ela faria anos a 27 deste mês e eu já tremo só de imaginar.
E, por muito estranho que pareça, já tenho saudades do pior ano da minha vida, porque sei que há momentos que nunca mais poderei reviver e mãos que jamais poderei apertar. E por isso, daqui para frente, só peço uma coisa: que 2024 seja, para sempre, o pior de sempre.
Para não ficar sem cumprir a minha tradição, aqui fica a lista de 2024. A verdade é que, olhando bem, acabo por ter um catálogo ainda vasto de eventos culturais, passeios e viagens. Fiz muitas dessas coisas puxada pela ponta dos cabelos: era eu que as marcava e era eu quem me obrigava a ir, porque sabia o risco que corria se só me cingisse à dor de ver a minha irmã doente e à tarefa de cuidar dela. Procurei entreter-me, rir-me ainda que sem muita vontade, e tentar ser feliz em micro-momentos, ainda que o panorama geral fosse de caos total - e acho que foi isso que me permitiu continuar em pé após a partida da minha irmã.
Em 2024, eu:
- Adoptei oficialmente um gato na fábrica;
- Passei mais de metade dos dias do ano em hospitais, entre consultas, visitas hospitalares, recados e acompanhamentos a imunoterapia, quimioterapia e radioterapia;
- Fui ao espetáculo da Bumba na Fofinha e vi outro concerto dos Candlelight;
- Fui à Islândia e à República Dominicana;
- Passeei na Apúlia, em Aveiro, em Viana do Castelo, em Óbidos e em Lisboa;
- Vendi muita coisa na Vinted;
- Fui até ao Algarve mas quase não fui à praia - aliás, fui a um hospital também por lá, só para não ter saudades;
- Fui ao Comic-Con;
- Pensei em construir casa mas desisti da ideia;
- Dei duas ninhadas de gatinhos;
- Era para ter feito um cruzeiro, mas acabei por desmarcar;
- Aprendi a pôr catéteres;
- O Panzer tirou o rabo e a Milú foi esterilizada;
- Dei muito colinho aos três novos primos que se juntaram à família;
- Planeei um funeral e escrevi, pela primeira vez, um elogio fúnebre;
- Voltei ao terminal de cruzeiros de Matosinhos, desta vez com o Miguel;
- Fiz uma visita ao Museu do FCPorto;
- Tentei aprender a tricotar, embora sem grande sucesso;
- Fiz a árvore de Natal mais bonita que me lembro;
- Comi vários pães com chouriço e aprendi que, talvez, haja uma coisa ainda melhor: o pão com queijo em forno de lenha, uma especiaria que só há na feira medieval de Santa Maria da Feira e que para o ano talvez faça com que vá lá todos os dias....;
- Fui ver as duas primeiras etapas da volta a Espanha, que partiu de Lisboa e arredores;
- Fui muitas vezes ao cemitério;
- Não cozinhei comida decente durante vários e vários meses e fui mais vezes almoçar fora do que nos últimos cinco anos da minha vida;
- Descobri os meus gelados favoritos;
- Fiz mais uma tatuagem;
- Dei muitas vezes banho, sequei muito cabelo, vesti muitas vezes, calcei muitas vezes...;
- Fiz tranças em todo o cabelo;
- Fui três vezes a um parque de trampolins;
- Rapei o cabelo à minha irmã;
- Subi meia dúzia de vezes para a bicicleta estática lá de casa - mas o Miguel convenceu-me a andar cinco minutos na rua, ainda que eu já achasse que não sabia andar de bicicleta;
- Fiz muitos pensos, muitos curativos, dei muitas injeções e muita medicação;
- Fui picada por uma vespa;
- Fiz madeixas no cabelo, para tentar esconder as muitas brancas que tenho, mas não garanto ter adorado o resultado;
- Perdi a minha irmã. A perda, e o evento, mais colossal da minha vida.