A lealdade, a traição e os direitos entraram numa loja (ou, neste caso, saíram da SIC e entraram na TVI)
Há um mês estava no Algarve e caiu uma bomba na sociedade portuguesa: Cristina Ferreira saía da SIC para a TVI. Na altura isso levantou-me um debate interior, na verdade já recorrente, sobre o qual decidi escrever. Até hoje. Entretanto já voltei ao trabalho e já voltei de férias - estando outra vez no Algarve, pelo que me parece a altura ideal para fechar o ciclo e publicar este texto (que nunca viu a luz do dia, de tanto lhe mexer e remexer, acrescentar e tirar - mas é desta, vamos tentar).
A lealdade no trabalho é um dos temas que domina muitas das minhas conversas no dia-a-dia: à mesa do almoço, em reuniões de trabalho, com amigos ou simplesmente conhecidos. Acima de tudo porque me divide enquanto pessoa e enquanto empresária - e eu sinto-me, ao mesmo tempo, advogada do diabo e advogada da paz. O tópico voltou a estar em cima da mesa naquele fim-de-semana em que uma bomba caiu em cima deste país, depois de há dois anos termos sido assolados por outro tremor de terra: Cristina Ferreira, até aqui desertora da TVI, voltou à casa-mãe. E eu voltei às minhas discussões interiores.
Eu percebo que cada um de nós tem o direito de ambicionar algo melhor ou diferente, independentemente do sítio onde trabalha ou até daquilo que receba - basta ter leves noções de recursos humanos para perceber que não é só o dinheiro que cai ao final do mês que conta. No entanto, como em tudo, acho que os direitos devem ser usados com conta, peso e medida, nunca olhando exclusivamente para o nosso umbigo. Há uma relação de interdependência entre a empresa e os seus trabalhadores: sem funcionários não haveria empresa, mas sem empresa também não haveria necessidade de dar emprego a ninguém. Será, penso que eternamente, uma das relações mais difíceis de gerir.
Com esta facilidade de acesso a novas oportunidades - para além de uma lista prolongada de tantas outras vantagens dos tempos modernos, entre as quais a facilidade de locomoção e o contacto constante com quem está longe apenas utilizando um telemóvel - a ideia de um trabalho para a vida foi-se desvanecendo. Mas, em muitos casos, não houve um meio termo: passou-se de ter, em 40 anos de trabalho, apenas um emprego, para algumas pessoas terem 20. São aqueles que apelido de "salta-pocinhas" - os que passam a vida a saltar de posição e de empresa, ora porque ambicionam mais, ora porque não gostam do local onde estão naquele momento. E esses, confesso, fazem-me confusão.
Primeiro porque, do ponto de vista pessoal, não me revejo neste papel: detesto grandes mudanças de rotinas e é-me difícil imaginar que, a cada ano, tenha de me adaptar a um novo local, a um novo trabalho, a novos colegas, novas chefias, etc. Por outro lado, do ponto de vista da empresa, esta instabilidade tem de ser dura de gerir, até porque apesar de uma pessoa poder estar qualificada para um determinado emprego, existe sempre uma aprendizagem específica que tem de ser feita para aquele posto - algo que pode demorar uma semana ou meio ano, dependendo daquilo que estamos a falar (para além do poder de adaptação das pessoas em causa).
Mas é do ponto de vista de empresária têxtil que este tópico mexe comigo. Quando preciso de contratar alguém, não é como ir buscar um enfermeiro ou um jornalista ao mercado de trabalho. Primeiro porque não há formação na área - somos obrigados, internamente, a formar uma pessoa do princípio ao fim; e depois porque, devido ao nível de especialização, não é um trabalho em que exista em "modo default". Um jornalista, independentemente do sítio onde trabalhe, sabe que há questões que vai ter de fazer sempre, que vai ter de escrever, que vai ter de ligar e ouvir as partes; um enfermeiro, quer trabalhe em geriatria, ortopedia ou pediatria, tem de saber dar injeções, limpar um paciente e fazer pensos. Aqui não - mesmo pessoas que trabalharam uma vida no ramo podem não saber trabalhar específicamente com determinadas máquinas: e essa técnica leva anos a aprender. Isso revela-se um investimento de tempo, de dinheiro e de confiança gigante por parte da empresa (quando, nos outros casos, é um investimento da própria pessoa, que paga para tirar um curso na faculdade, por exemplo). E cai-me muito mal se essa pessoa, em que eu investi, saia da minha empresa para ir para outra (ou, pelo menos, que o faça de ânimo leve, sem razões que o justifiquem).
No caso da Cristina Ferreira, a verdade é que há muitos cursos de comunicação e qualquer pessoa poderá ser, à partida, apresentador de televisão. Mas ela distinguiu-se de tal forma que, aparentemente, a sua presença numa estação televisiva dita as vitórias e as derrotas do canal. É diferente, pois não se trata só de conhecimentos, mas também de popularidade. Mas, para mim, todas as pessoas que trabalham comigo (ou que façam o mesmo noutros sítios) são autênticas Cristinas Ferreiras - porque agregam um conhecimento e uma importância vital na estrutura onde estão inseridas. Este tipo de profissões são hoje tão raras, tão específicas, tão especiais... que uma só pessoa faz a diferença.
Num mundo idílico, isto vai contra todos os bons princípios de gestão de recursos humanos. Não é suposto haver insubstítuiveis; é sempre preciso estar preparado para a saída de alguém, tendo já dentro da empresa alguém qualificado para o efeito. Infelizmente, só no papel é que isso é possível. E eu imagino o abanão que é termos de nos adaptar, de um dia para o outro, à saída de alguém que parece ter uma importância equivalente a um orgão vital no seio da nossa empresa. Percebo bem, por isso, o azedume demonstrado pela SIC nos dias seguintes à saída da apresentadora.
Por outro lado, eu própria já me despedi quando senti que já não estava feliz num posto de trabalho e senti que tinha todo o direito a fazê-lo (porque todos temos). A maneira como o fazemos é que dita muitas vezes a forma como saímos - e, mais, diz muito sobre aquilo que somos! No meu caso fiz o que ditava a minha consciência: avisei com antecedência, de forma a termos tempo de arranjar substitutos e a ser eu própria a forma-los. (Como se tem vindo a ver nos últimos anos, a televisão e as despedidas não se coadunam, pelo que raramente se viu uma cessação de contrato que não acompanhe uma saída imediata). Mas nem sempre é assim. E é nessas situações que a "traição" e o "oportunismo" entram em linha de conta. O que faz de alguém um traidor? E que diferença faz para um indivíduo que tenha, simplesmente, os seus objetivos bem definidos? Diria que é a forma como ambas as partes conduzem o processo... Assim como o contexto. E o timing.
Cristina Ferreira foi com popa e circunstância para a SIC e anunciava-se feliz como nunca com o programa que, dizia, fora sempre o seu sonho. E, do dia para a noite, trocou tudo isso pela casa que, ainda há tempos, não lhe dava oportunidades suficientes. Lá está:o contexto. Para mim não tem nada a ver com o facto de ser mulher (como tanto se falou) - tem a ver com a coerência das atitudes, ainda que no mundo da televisão nada seja aquilo que parece ser. E se é verdade que Cristina Ferreira tem o direito de fazer aquilo que quer da sua vida - e seguir os seus sonhos, os seus instintos e fazer valer os seus direitos -, o público também tem o direito de tentar ler e perceber as suas ações. No fim, independentemente do mote e dos objetivos que conduziram a este terramoto, e muito para além daquilo que ela foi apelidada, há algumas coisas que ficam claras: Cristina Ferreira é talvez a pessoa com mais impacto desde sempre na televisão portuguesa, é uma das mulheres com mais garra e capacidade de trabalho que o público que já viu, mas não tem na lealdade o seu forte. Como todos, tem os seus defeitos e qualidades; e como todos os que gerem empresas e pessoas, têm simplesmente de aprender a lidar com isso.