A importância dos humoristas
Em particular do Ricardo Araújo Pereira e do Bruno Nogueira
Algures em tempo de campanha para as últimas eleições (parece que foi noutra vida, não é? As arruadas com centenas de pessoas que não precisavam de estar a dois metros de distância uma das outras, enquanto entregam flyers sem luvas e sem pensar quantos micro-nano-bichos alguém pode ter lá deixado após um espirro acidental e coisas do género) eu já queria ter escrito um texto sobre a importância dos humoristas. Aliás: desta nova vaga de humoristas que se consolidou nos últimos anos, que conseguem o mix difícil de não só nos fazer rir como nos chamar à atenção para a realidade. O que eu quero dizer é que há uma linha que separa o Fernando Rocha do Ricardo Araújo Pereira (RAP) e outra que separa o Salvador Martinha do Bruno Nogueira. Não quer dizer que uns sejam melhores que outros, mas são claramente diferentes. Provavelmente o que os distingue é que uns têm como objetivo fazer-nos rir; os outros querem que nos ríamos perante assuntos sérios.
Na altura, o mote do meu post era o impacto do "Gente que Não Sabe Estar", em que o RAP comentava (e gozava) a atualidade política e fazia entrevistas aos principais líderes partidários - tudo isto sempre com o seu toque de ironia e sarcasmo característicos. Pensei muitas vezes na preciosidade que ele tinha em seu poder e, por outro lado, o quão arriscado é deixar uma coisa tão importante nas mãos de um só indivíduo, que também terá a sua preferência política e poderá influenciar os outros sem que estes oiçam a outra parte. Isto porque, para mim, um programa destes tem muito mais impacto do que qualquer grande entrevista, debate ou outros formatos clássicos - e chatos - que se fazem nestas alturas. Chega às massas. As pessoas sabem que se vão rir e não vão adormecer; identificam-se com o que se diz em vez de sentirem que lhes estão a vender banha da cobra; percebem o que é dito e não se perdem no meio dos chavões lançados pelos políticos. Isto para além de conseguir fazer com que percebamos como é que são aquelas pessoas que nos querem representar, para além das suas ideias políticas. Têm sentido do humor, são boa onda, sabem rir-se de si próprias e safar-se quando as questões não são sobre o orçamento de estado? Isso importa. Hoje pouco se vota em partidos, esquerdas ou direitas; tendemos a personificar a política e é-nos essencial perceber quem são essas pessoas. E é por isso que para mim estes programas do RAP em tempos de eleições fazem mais pela política do que 99% dos outros programas e propagandas. Daí a sua importância.
Mas não só na vertente política o humor tem importância. Sempre o teve do ponto de vista do entretenimento: vai ser eternamente um escape e a forma de relaxar de muitos. Mas nesta altura de pandemia penso que foi mais que isso: foi uma tábua de salvação para a sanidade de muitos. E, neste caso, falo especificamente dos diretos feitos pelo Bruno Nogueira no seu Instagram, sob o nome "Como é que o Bicho Mexe". A "série" acabou ontem e uma amiga minha, que a acompanhava religiosamente, dizia-me: "e agora o que vou fazer à noite? Aquilo era essencial para mim! Quando o cansaço começava a bater e os pensamentos maus chegavam, por causa dos medos e da pandemia, lá vinha o direto do Bruno para eu me rir e esquecer tudo". E é verdade.
Já aqui tinha falado sobre esta ideia do BN no post em que nomeava algumas das coisas boas que surgiram graças (e durante) a pandemia. Não era espectadora habitual porque as horas do direto não eram compatíveis com o meu horário de sono - mas vi alguns momentos marcantes, como o Vhils a "construir" o Zeca Afonso na parede de sua casa no 25 de Abril, a Maria João Pires a tocar Debussy no seu piano de cauda e as homenagens que várias pessoas fizeram no dia da mãe às suas mães. E sinto que para além de uma mera forma de entretimento, estes foram episódios quase educativos, mostrando uma cultura muitas vezes não tão tocada ou popular. O Bruno deu a conhecer muita gente que estava nas margens - e mostrou algumas facetas de outras que já conhecíamos mas que se revelaram perante uma pequena câmara no conforto de sua casa, onde aparentemente ninguém os está a ver. Independentemente do número de vezes em que se disse e mencionou "cona", "caralho", "foda-se", "pila" entre outros vocábulos (até deste ponto de vista enriquecedores ao nível do vernáculo), o que BN fez foi importante. Para a cultura, para o entretenimento mas, acima de tudo, para as pessoas.
Isso viu-se ontem quando, após ter dado o mote para as pessoas que assistiam aos diretos colocarem luzes de Natal nas suas varandas, ele saiu à rua para testemunhar com os próprios olhos o impacto do programa que fez. Aliás: da companhia que fez às pessoas. O resultado foi uma mistura entre o hilariante e o emocionante, com milhares de pessoas às janelas e outras tantas na rua (eles iam dizendo ou mostrando onde estavam a passar), assim como a formação de autênticas comitivas atrás do carro adornado com luzinhas, onde ia com o Nuno Markl ao volante. Por vezes mal o conseguíamos ouvir, tal era a potência das buzinadelas e dos berros das pessoas que passavam. Foi uma espécie de procissão, vá, mas a um ritmo mais acelerado e mantendo a distância de segurança. No meio disto tudo a Georgina Rodriguez - a mais que tudo do Ronaldo - comenta, o Bruno liga e do nada dá duas de conversa com o CR7 (já deitado na sua caminha); um carro descaracterizado pela polícia coloca-se atrás deles, fazendo-os pensar que a brincadeira ia acabar, mas que queria só dar o ar da sua graça naquele último programa; o Cal Lookwood, o radialista do pólo norte que ficou famoso em Portugal graças ao Nuno Markl, também disse olá do outro lado do mundo (as maravilhas da tecnologia!); até uma ambulância que passou ligou o altifalante só para dar uma palavra de apreço. Tudo isto com 150 mil pessoas a ver - números que muitas vezes não são atingidos por programas de televisão em canal aberto.
O que aconteceu ontem foi uma demonstração de apreço como não me recordo de ver; foi o exteriorizar da importância que uma simples pessoa pode ter na vida de tantas, principalmente durante estes dois meses difíceis que todos vivemos. Não é fácil ter noção do impacto que estas coisas têm nas pessoas - no caso do RAP, que falei em cima, é impossível quantificar ou ter a certeza sobre aquilo que acho e sobre a importância que teve naquele período político - mas é certamente emocionante perceber que um número incrível de pessoas gosta e valoriza o trabalho de alguém, ao ponto de se dar ao trabalho de sair à rua ou pôr luzes de Natal na varanda em forma de agradecimento. Não sei como é que o Bruno Nogueira se aguentou ao longo daquelas duas horas loucas em que tudo aconteceu; também não sei se, durante estes dois meses, essa comunidade que se formou à volta dele percebeu como é que o bicho mexe. Aquilo que eu sei é que isto vai ficar na memória de muitos e revela bem a importância que o humor e a cultura têm na nossa vida.