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Entre Parêntesis

Tudo o que não digo em voz alta e mais umas tantas coisas.

23
Dez24

A história de um legado e os votos de um Feliz Natal

Há dias, em consulta, percebi que a minha irmã me deixou muita coisa em vida (as experiências, as memórias, o amor) mas que, na sua morte, me deixou também um propósito. Um legado. Não que alguma vez me tenha pedido alguma coisa: a morte dela não teve nada que ver com os filmes, com mensagens inspiradoras e bonitas, uma moral da história ou recadinhos para ler em fases mais tardias, com mensagens preciosas que no futuro nos guiarão a vida. A sua partida (e o caminho até lá) foi só uma experiência aterradora e incessantemente triste, pois morreu uma mulher que não queria morrer, naquilo que nos pareceu um processo eterno mas que na realidade foi um ápice. Não houve tempo para pedidos ou recados porque, na verdade, também não houve tempo para uma mentalização firme daquilo que estava acontecer. A vida engoliu-nos para um buraco negro; e nós ficamos com a cabeça à superfície mas perdemo-la a ela. Ainda hoje estamos a aprender a respirar.

Cada um está a reaprender a usar os seus pulmões gerindo o seu luto e as suas batalhas. Eu fui trabalhando em muita coisa ainda enquanto cuidava da minha irmã e consegui transformar muito daquilo que vivi com ela em coisas verdadeiramente positivas. Juro que falo a verdade quando relembro muitos momentos que seriam aparentemente maus com imensa alegria. Porque chegou uma fase em que eu já só queria colecionar sorrisos e memórias, independentemente do local onde estava ou da tarefa que estávamos a fazer; era indiferente se estávamos na quimioterapia ou no sofá... O importante era o sor(riso) dela e as nossas mãos dadas.

O que sobrou dessa forma de estar foi a vontade de continuar a recolher momentos. Já não o posso fazer com ela, mas ainda consigo fazê-lo com os outros, aqueles que importam na minha vida. A morte precoce da minha irmã mostrou-me que a fava pode sair em qualquer fatia do bolo-rei, inclusive a nossa: e eu sinto-me responsável por aproveitar os dias que me restam (independentemente se são 30 ou 25 mil). Se ela já não pode, como é que eu me posso dar ao direito de não o fazer? Como é que isso seria honrar a memória dela? Eu sinto-me responsável por viver, por saborear, por ser feliz... Porque ela já não pode sê-lo. Porque eu não sei o dia de amanhã.

E assim percebi que transformei o evento mais trágico e triste da minha vida numa missão. Que ela, sem querer, me deixou um legado. E isto tem mudado tanto, tanto a minha forma de ver a vida e de fazer as coisas; tem alterado os meus objetivos a curto e a longo prazo, mudou a forma de eu olhar para os outros, para o trabalho e para os problemas. E isto é algo porque passamos, talvez, na adolescência - o adequar das nossas prioridades e preocupações àquilo que almejamos ser, àquilo que queremos ver na sociedade e nos outros. E é algo desestruturante para mim estar a refazer todas estas narrativas agora, já adulta; do nada, olho para uma coisa qualquer à minha volta e percebo que já não me identifico com a forma como pensava há um ano, e tenho de fazer de novo todo o caminho para me posicionar de acordo com aquilo que sou hoje, depois de ter vivido o que vivi. É confuso, cansativo e transformador; requer tempo e espaço mental... mas eu sinto que não tenho alternativa senão fazê-lo. Isto também é parte do luto - albergar todas as alterações decorrentes daquela morte. Por isso é um caminho que tenho feito com a calma possível e paciência - embora, tal como uma adolescente, me irrite com muito mais facilidade com todas as pessoas que não estão alinhadas com a minha nova linha de pensamento.

O que me leva ao Natal. As festividades de 2023 ficarão eternamente encapsuladas para mim, pois foi a última vez na minha vida em que as passei com a minha família de raiz-nuclear: os meus pais e quatro irmãos. É irrepetível. E por isso valorizo-o muito mais. Se houve chatices, desentendimentos, zangas? Houve. Se olhando para trás e tendo em conta aquilo que perdi, se isso importa? Zero. Quando as circunstâncias assim obrigam nós temos facilidade em priorizar as coisas; e aquilo que outrora foi relevante deixa de o ser.

O exercício que tenho tentado fazer é determinar prioridades certas logo desde início; que não seja preciso um evento trágico para as alinharmos da forma como sempre deviam ter estado. O Natal é um poço sem fundo de chatices, de fretes, de inconvenientes, de zangas e de mal entendidos. Tudo serve de desculpa: as prendas, as famílias, a casa onde fazer a festa, o tamanho do bacalhau. Passam-nos a mensagem de que é a época mais mágica do ano quando, em adultos, passa a ser a altura mais chata de todas. Agora pensem que uma das pessoas mais importantes da vossa vida morre hoje. Têm a certeza de que se querem chatear sobre o número de prendas que cada um dá ou se vale a pena fazer finca-pé para não juntar a família dos dois lados? Acham mesmo que é isso que importa? 

Por isso, o meu desejo para este Natal é longo mas claro: que aproveitem os vossos rituais e tradições como se fosse o último Natal. Que desfrutem da família e da unidade que formam, independentemente se são três ou trinta e três. Que refaçam o protocolo as vezes que forem precisas para encontrarem consensos, meios-termos e equilíbrios; que deem o braço a torcer as vezes que forem precisas mas que dialoguem se a conclusão a que chegam não vos trouxer o mínimo de paz de espírito ou justiça. Que procurem a felicidade em locais e momentos onde nem sempre ela reina - mas onde vive, ainda que mais escondida. Porque tudo isto, sim, é amor: é aprendizagem, flexibilidade, adaptação, união e equilíbrio. 

Que esta época seja recheada de todos estes ingredientes e de menos intrigas. 

Feliz Natal.

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