A filha do patrão
Nunca fui eu outra coisa. Desde bebé que percorri os corredores das fábricas - ora dentro da barriga da minha mãe, em colos alheios ou já pelo meu próprio pé. Sempre fui filha do patrão e, no alto dos meus seis anos, sabia-o bem. Andava por lá, com o narizinho levantado, por saber o estatuto que tinha. Todos sabiam quem eu era, todos sabiam o meu nome. Eu também sabia o deles. É curioso pensar em como era tão pequena mas já tão sabidola. E ainda é mais curioso ver como a minha sensação de poder por ser a filha do dono foi decrescendo à medida que os anos passaram - hoje, do alto do meu nariz só vejo os meus óculos, e sinto-me só mais uma peça naquele tabuleiro de xadrez, tão importante como as outras.
Quando me despedi do jornal para me dedicar às empresas da família, soube que ia doer. E é difícil tomarmos uma decisão sabendo que depois vamos sofrer as passas do Algarve. Porque não é fácil trabalhar com a família; não é fácil separar o pai-pai do pai-chefe; não é fácil não trazer os problemas, as zangas e as mágoas para casa; não é fácil entranharmo-nos nos sistemas criados por outras pessoas, tentarmos perceber o que vai na cabeça delas. Acima de tudo, não é fácil ter de corresponder às expectativas. E é muito difícil, às vezes, ter de bater o pé por aquilo em que acreditamos.
Estou há cerca de nove meses nesta aventura e uma das coisas que me apercebi é que um dos processos mais complicados é aceitarmos que não somos necessariamente um prolongamento dos nossos pais. Que não temos a mesma forma de pensar, de agir, de trabalhar, de organizar. E perceber que isso não é nenhum crime.
O curso deu-me oportunidade de conhecer outras pessoas como eu e de ver como até lido bem em não ser a Carolina, mas sim a "filha do papá" e "neta do avozinho". Não me importo de ser a "menina"; de não ser doutora, engenheira, dona ou senhora (ainda bem!). E é engraçado como em conversa com outras pessoas (mesmo fora do curso, que vou encontrando e que percebo que se estão ou estiveram na mesma situação que eu, dentro de empresas familiares) as situações se repetem. "Parece que estás a descrever a minha realidade", dizem. Porque não é propriamente uma coisa da área de negócio, não depende do tipo de pai ou do tipo de filho. É algo genérico. E é sempre difícil.
Mas já se sabe que as nossas dores são sempre superiores às dos outros. Os que não são filhos do patrão insurgem-se, muitas vezes indignados, pela vida facilitada que temos à partida. E eu percebo. Quando me perguntam, em jeito de provocação, "queres trocar?!", eu digo sempre que não. Porque eu sei que os outros não sabem que também é duro ser somente a filha de alguém, eventualmente não valer pelo seu valor próprio. Não sabem que a comparação das atitudes, ações e forma de estar se torna num bicho de sete cabeças nem que as expectativas criadas pelos nossos pais-patrões e todos à nossa volta se converte num autêntico bicho-papão. Não sabem o que custa não poder dizer que está mal, não sermos livres de nos sentirmos revoltados por isto ou aquilo, por estarmos a ser alvo de uma injustiça qualquer - porque quem manda não é só quem manda, mas também quem sempre nos ama e sempre amou, e os sentimentos confundem-se.
Eu não queria trocar, porque pode não ser fácil... mas a verdade é que eu não sei ser outra coisa senão a filha do patrão.