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Entre Parêntesis

Tudo o que não digo em voz alta e mais umas tantas coisas.

30
Abr23

E tu, já reclamaste do IVA hoje?

Não me considero reacionária ou contestatária por natureza; sou participativa e acho muito importante sê-lo, politicamente, para a saúde de qualquer país - mas também percebo quem não o faz, porque às vezes não há tempo e muito menos paciência para os joguinhos de que somos alvo (enquanto povo), não tendo outra alternativa senão estar constantemente a pensar mais além para perceber segundas (e terceiras e quartas e quintas) intenções e ler por entrelinhas as artimanhas em que aparentemente todos os políticos estão metidos. Não estou satisfeita com o estado em que vivemos mas não me queixo muito porque, honestamente, não tenho nenhuma sugestão melhor para dar; as eleições nunca caem para o lado que eu quero, mas tendo em conta que o respeito pela escolha do povo de uma nação é a base da democracia, deixo-me seguir e ir lidando com aquilo que, no meu ponto de vista, os outros mal escolheram. Isto para dizer que nunca fui a uma manifestação, nunca fiz greve (esta tinha graça!) nem parte de um protesto coletivo, mas que sempre fui votar e que em meios mais privados não deixo de dar a minha opinião (às vezes de uma forma demasiado aguerrida).

Mas passemos ao tema em concreto: confesso que quando Espanha baixou o IVA em alguns produtos eu achei uma boa ideia. E é, se fôssemos todos pessoas decentes e com boas bases, como aquelas que descrevi num texto que aqui deixei há dias. Mal se começou a aprofundar a ideia em Portugal eu vi logo que ia dar asneira e dei a mão à palmatória sobre as vezes em que, em algumas discussões, achei que esta seria uma boa medida. 

Entretanto a lei entrou em vigor. E eu repito que disse: não sou contestatária, mas sou participativa. E, acima de tudo, gosto muito de ser coerente - e de ver coerência. E transparência. E se eu tento sempre apoiar os pequenos negócios - porque eu própria tenho um -, esta medida veio mostrar a podridão em que a sociedade se encontra, dos grandes aos pequenos negociantes. Acho que os supermercados têm uma margem menor para trafulhices neste campo, porque o seu peso obriga a que as instituições responsáveis estejam de olho bem aberto para apregoar que aquilo que o governo decreta está a ser bem feito; mas nos pequenos negócios - padarias, mercearias e etc., o cheiro a podre sente-se de longe. 

Numa semana fiz duas reclamações - numa delas, ainda dei uma aula de matemática para explicar como se deviam fazer as contas ao preço de uma regueifa. Se caiu em saco roto? Certamente. Se eu senti que tinha de o fazer? Também. Porque comigo as cantigas que tenho ouvido não me enchem os ouvidos: "veja aqui no talão como diz «produto com isenção de IVA» ", "ah, mas o preço das coisas é que aumentou, isto não fica nada é para mim" e "o patrão disse que não valia a pena baixar o preço das carcaças, também é só um cêntimo...". 

Quando às vezes dizem que Portugal devia ser como a França, que sai em peso para a rua, causa motins e se faz ouvir a toda a força, eu não concordo. A pasmaceira deste cantinho à beira-mar plantado faz parte da nossa beleza e, acima de tudo, da segurança que sentimos quando pomos um pé fora de casa. E eu acredito que há ferramentas para nos fazermos ouvir - tanto aquelas previstas pela lei como algo tão simples como chamar o gerente da loja e explicar, educadamente, que não temos a palavra "burro" escrita na testa. Mas sei que não as usamos porque sentimos sempre que não vai valer a pena. Não vale a pena o tempo que perdemos, não vale a pena a revolta que sentimos no peito e aquela sensação que nos acompanha e potencialmente nos estraga o resto do dia.

E é por isso que eu, com 28 anos e à frente de uma empresa (e, por isso, obrigação de saber como funciona o IVA e de fazer as contas), sinto-me na obrigação moral de reclamar. Primeiro por ser nova, ter sangue na guelra e paciência, tempo e disposição para me chatear caso chegue a esse ponto; segundo por saber do que falo e poder fazer as contas à frente de quem me contestar. Este post serve como incentivo e pedido para fazerem o mesmo - para que, com 25, 50 ou 70 anos, se predisporem também a deixar um recado verbal ou uma nota no livro de reclamações; a informarem-se sobre o funcionamento basilar da nossa economia, porque vai certamente afetar o vosso bolso. Eu acredito que se formos muitos a sermos vocais sobre a nossa insatisfação e a demonstrar que sabemos do que falamos, alguma coisa há-de mudar. A união faz a força - mas não tem de ser na rua, nem tem de ser à força.

Acima de tudo, aquilo que eu sinto neste caso em particular não é só a nossa típica inércia às injustiças de que somos alvo, mas também falta de capacidade para perceber que estamos a ser enganados. Falta-nos literacia económica e financeira que possa alavancar bons e válidos argumentos. O IVA, o IRS e o funcionamento do estado em geral deviam ser algo ensinado nas escolas básicas - e como não o é, a maioria das pessoas fica-se pelo mero conhecimento da sigla. Acho que tudo isto é uma boa desculpa para pesquisarmos e percebermos o funcionamento das coisas - e, depois, predispormo-nos a ajudar na aplicação da lei. Porque isto, como quase tudo, sai do nosso bolso - e, como diz o ditado, "grão a grão enche a galinha o papo"; mas à mesma velocidade o nosso se esvazia. (E acreditem que o patrão da cadeia "O Molete", que diz que "não vale a pena baixar o preço da carcaça porque é só um cêntimo", está com o papo bem recheado).

Acho que o slogan do Compal Essencial, quando surgiu na televisão, atravessou gerações: "e tu, já comeste fruta hoje?". Apliquem-no ao IVA também. Façam as contas. Reclamem. No limite, se não o fizerem com a esperança de mudar alguma coisa, façam-no para demonstrar que neste jogo do Quem é Quem, não somos nós que temos "burro" escrito na testa, mas que facilmente damos a pista para que os outros descubram a sua: "ladrões".

26
Abr23

Chávena de Letras: "O Caso Alaska Sanders"

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O Dicker está, sem dúvida, no meu top 5 de autores favoritos. A capacidade de nos fazer virar a página com leveza e voracidade é simplesmente notável, e distingue-o dos restantes - embora tenha muitas outras características que o tornam muito bom, como a construção de um enredo profundo, capaz de dar 31 voltas e acabar mesmo assim numa direção diferente daquela que esperávamos.

Gostei muito deste livro - mas foi mais um do Dicker. Muito bom no universo dos livros, mas bom no universo Dicker. É o problema de ter a fasquia alta - ultrapassa-la fica cada vez mais difícil. Achei "O Caso Alaska Sanders" demasiado longo; tenho medo que o autor esteja um bocadinho "viciado" em livros extensos, quando isso não os torna melhores. Não sei o que vem a seguir (o fim já antevê mais um livro...), mas assim de repente lembro-me de uns três tópicos que foram explorados na obra - e que "gastaram" páginas - que não contribuíram nada para a narrativa... Percebo que para tornar as personagens menos superficiais seja necessário dar-lhes contexto e que para tantas reviravoltas na história seja necessário espaço e tempo, mas confesso que se pode tornar cansativo.

Gostava que o próximo livro fosse mais curto mas que não perdesse o fator wow - sem nunca descurar aquilo que mais gosto no Dicker, que é a leitura rápida. Veremos o que vem a seguir. Curto ou longo, estarei cá para ler.

17
Abr23

Chávena de Letras: "Verity"

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Wow, que viagem foi esta? Este foi o primeiro livro da Colleen Hoover que li e sei que não será o último. Não que o tenha adorado - na verdade, creio que me deu alguns pesadelos à noite - mas tem a característica que mais gosto numa obra/num autor: é um page turner incrível. Houve alturas em que até fiquei tonta - talvez porque me esquecia de respirar, tal a voracidade para chegar ao fim da história. É um livro que se sorve num só trago; faz de nós criaturas insaciáveis pelo final.

O que não faz dele perfeito - pelo contrário. Há falhas típicas aqui, e até parece que não somos os únicos a querer saber o fim da história - a própria autora precipitou-se em alguns momentos, parecendo que também ela queria acabar de escrever para perceber onde as palavras a levavam. A construção das personagens tem lacunas - a evolução da relação entre os dois protagonistas é abrupta e rápida demais, e isto vai além da percepção - do nada, por exemplo, o Jeremy já trata a Lowen por um diminutivo como se se conhecessem há meses... e nem sequer é feita uma menção a isso, um pensamento qualquer onde isso seja posto em causa... é simplesmente interpretado como normal. A própria aproximação física é estranha, não acontece na realidade - pelo menos não na realidade que eu conheço. Já para não falar de uma sequência de acontecimentos pouco prováveis - mas que se perdoam por isto não ser a vida real (e ainda bem!) - e de uma certa previsibilidade da narrativa, o que mesmo assim não tira o ímpeto de continuarmos a ler.

Mas a ideia por detrás da história é boa - macabra, mas boa - e deixa-nos em eterna dúvida. É capaz de ser a primeira vez que leio um livro cujo final é fechado... mas que, mesmo assim, não fecha nada em concreto, o que é um twist engraçado.

Estou curiosa para ler outra faceta da Colleen em breve.

03
Abr23

Séries de Bicicleta: "As Leis de Lidia Pöet"

Uma das muitas ideias que tinha para me forçar a escrever mais por aqui - embora hoje em dia cerca de 80% das mesmas caiam no esquecimento ou se percam no frenesim dos dias - era uma rubrica chamada "Séries de Bicicleta". Em que é que consistia? Em comentar e avaliar as séries que vejo quando estou a fazer cycling - praticamente o único tempo que, aos dias de hoje, dedico a conteúdos televisivos e cinematográficos.

Os meses foram passando, as séries e os documentários acabando, eu nunca escrevia nada e acabei por deixar cair a ideia. Apesar de ver muita coisa - principalmente quando ando numa de documentários, que são mais curtos -, o ditado aplica-se bem neste caso: "quantidade não é qualidade". Porque a verdade é esta: quando estou em cima da bicicleta não tenho paciência para coisas muito profundas, preciso acima de tudo de algo que me distraia do esforço em que estou. A experiência (a brincar, a brincar já faço isto diariamente há ano e meio!) levou-me a impôr uma regra a mim própria: as séries que vejo enquanto faço cycling são exclusivas daquele poiso - não posso vê-las no sofá, refastelada, por exemplo. Isto porque escolho normalmente os conteúdos a dedo, sabendo aquilo que puxa por mim; já sei o que me dá vontade de subir para a bicicleta só para saber o que vai acontecer a seguir e de continuar a pedalar mais um bocadinho para poder terminar um episódio. É, no fundo, uma motivação.

Descobri nos reality shows da Netflix a receita perfeita para estes minutos de tortura (ui, perdão: exercício), principalmente no "Love is Blind". Mas vou procurando outras coisas entre temporadas e escandaleiras - e o programa que hoje trago foi um desses casos - é uma série boa, nada ao estilo habitual desta pseudo-rubrica que nunca chegou a nascer, mas que serviu para finalmente quebrar o enguiço e escrever sobre algo que ando a ver enquanto suo as estopinhas.

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A série chama-se "As Leis de Lidia Pöet", passa-se entre o século XIX e XX e retrata uma jovem aspirante a advogada - mas que, por ser mulher, vê a sua ambição ser consecutivamente vedada a um mundo que, à época, era exclusiva do sexo masculino. É uma série de crime, onde em cada episódio é resolvido um homicídio graças à sua perspicácia, improviso, capacidade de luta e de dar a volta ao texto. 

É uma série muito gira e dinâmica, uma espécie de crossover entre CSI da época e Castle, mas com uma componente histórica que está bem desenhada e retratada, com cenários bonitos e fatos trabalhados, que trazem muito valor acrescentado aos episódios. A parte melhor é que, de facto, Lidia Pöet existiu - e foi a primeira advogada italiana a fazer parte da Ordem dos Advogados desse país. É lógico que todos os casos retratados e até a história familiar e amorosa da personagem estão trabalhados para dar mais sumo à história, mas o facto de se trazer à baila aos canais mainstream (mais) um nome que lutou pela emancipação das mulheres é tudo de positivo.

Infelizmente a série é curtinha, tem apenas seis episódios, e por isso sabe a pouco. Aguardo para que seja renovada para dar mais umas pedaladas enquanto me encanto com os diálogos em italiano e uma boa série de investigação light.

30
Mar23

Chávena de Letras: "Mãe, Doce Mar"

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Li este livro rapidamente na tentativa de não esmorecer a leitura, pois rapidamente me apercebi que o estilo de escrita não era o meu favorito. Já tinha lido João Pinto Coelho, mas se a memória não me falha, nem o "Perguntem a Sarah Gross" (que adorei)  nem "Os Loucos da Rua Mazur" (gostei menos) tinham uma escrita tão poética como este "Mãe, Doce Mar". Aqui, tinha muitas vezes de reler a frases para entender o seu significado; sinto que, principalmente no início da obra a articulação das frases era rebuscada, tornando até a compreensão da história um pouco mais difícil. Um exemplo:

 

"Fora o mar que me arrastara e cercara a toda a volta, mas deixando à tona de água até as certezas mais firmes, agora cascas de noz à deriva no oceano. Podia dizer o mesmo daquele pedaço de terra para onde Catherine me levara. Era a ilha do tesouro ou o meu cesto de gávea, esse posto de vigia de onde eu me observava, com a distância que falta aos marinheiros de água doce."

 

Senti isto na primeira metade do livro. Não sei se foi por me habituar, mas na segunda tudo fluiu muito melhor - menos paragens para reler, mais cadência na narrativa e, consequentemente, mais vontade de continuar a leitura.

E a verdade é uma: que história bonita. Triste, mas bonita. As personagens são bem desenvolvidas, com uma história de fundo que justifica os seus comportamentos e forma de estar, tornando tudo muito coerente. Não adoro a forma como a história está construída, com muitas analepses em diferentes tempos, mas sei que só assim se consegue entregar o final que o autor pretende. João Pinto Coelho é sempre um autor para manter debaixo de olho.

28
Mar23

Contra as raposas velhas: remar, remar!

Aprendi que devo falar com muito pudor sobre o meu trabalho. Sou sempre muito contida nas apreciações e opiniões que teço, não vá ofender o mais próximo. Não me apetece comprar guerras. Sei que,  aos olhos da maioria, estou numa posição de favorecimento constante - e não vai ser o meu discurso que vai mudar (ou, simplesmente, suavizar - o que já não era mau) as teorias de Marx e companhia, que ainda hoje agudizam o gap que existe entre patrões e trabalhadores. Tenho pena que, quase a um quarto do século XXI, isto ainda venha à baila num país desenvolvido - mas não me iludo e sei que provavelmente este paradigma nunca se vai alterar. Teria muito para dizer - mas, para isso, teria que ouvir também, e nesta fase que atravesso não tenho energia para tanto.

O facto de não escrever sobre o meu trabalho faz com que, na maioria dos dias, não escreva de todo - porque muito do que me apoquenta, muitas das minhas reflexões, giram à volta deste mundo. Quer eu queira, quer não, é na fábrica que passo a maior parte do meu dia - e é lá que nascem os meus maiores problemas. Cedo defini balizas sobre o que escrever ou não - e pus um risco bem visível sobre este tema depois de ter escrito um post que achei inofensivo (e instrutivo) sobre a construção de currículos mas que, na área dos comentários, deu pano para mangas.

Hoje, no entanto, quebro a regra para poder desabafar. Não sobre um problema do ponto de vista de um patrão ou de um emprego - mas sim sobre uma questão geral que assola a indústria onde trabalho (a têxtil) e, infelizmente, a sociedade em geral.

A mentira. Aliás, permitam-me o vernáculo: a merda da mentira! A falta de transparência. A ganância. A falta de vontade de deixar tudo claro; a premeditação, o costume, o tão habitual que é o normal. E, no fim de linha, a incapacidade de percebermos que temos de romper ciclos para passar para o próximo nível.

Cresci a ouvir os clientes ligarem em repeat mode para os comerciais para saberem os prazos de entrega de um determinado produto. "É já amanhã", diziam eles, sabendo que só passado quatro dias é que entregavam a mercadoria. Mesmo na altura, do alto dos meus sete ou oito anos, percebi que não o faziam por mal - mas a pressão do cliente era tanta que se rendiam à evidência de que do outro lado só se iriam calar quando lhes dissessem o que queriam ouvir. 

Vejo diariamente jogadas sujas, que repudio sempre. Pedir cotações de algo e perceber, por comparação, que alguém me está a dar um preço inflacionado para ver se cola - mas, quando confrontados, "falam com a administração" e conseguem um valor significativamente mais baixo; ou então, pura e simplesmente, mandar o rececionista dizer que "estamos numa reunião até ao final da tarde" quando passamos o dia todo ao computador no nosso escritório.

Isto são só o exemplos próximos, do meu dia-a-dia, com que sempre lidei. Há tantos outros que me poderia lembrar se quisesse. Têm todos um elo comum: a falta de honestidade. E o problema aqui é que, em qualquer fase que apanhemos o comboio, somos obrigados a adequarmo-nos àquilo que está instituído - e isso, normalmente, implica mentir também. 

Eu sou nova, ocupo uma posição de poder dentro de uma instituição (que é pequena, mas o tamanho não importa) e, como tal, sinto a responsabilidade moral de fazer parte da mudança - uma mudança transversal, que passa por ações e por mentalidades, por um estreitamento do gap patrão-funcionário e cliente-fornecedor. E por isso, quando assumi que era isto que queria fazer da vida, decidi partir a roda. Enquanto patroa, não quero ficar-me pelo escritório e não conhecer o chão de fábrica. Não quero que me tratem por doutora ou engenheira (que, na verdade, não sou), mas pelo nome que me deram quando nasci. Não quero reger pelo medo, mas pelo respeito e pelo exemplo. Quero condições dignas para todos, quero equilíbrio, quero abertura para se darem opiniões e reportarem problemas. Quero a verdade - mesmo que isso tenha consequências.

Defini que o rigor nos prazos e a transparência tinham que ser o nosso mote. Se o cliente quer uma malha para dia 24 e eu só a posso entregar dia 26, então o negócio não acontece. Se o cliente liga a perguntar se eu estou e se eu estiver, de facto, disponível, eu atendo - e não mando alguém mentir por mim. Se a malha vai com uma quantidade de defeitos maior que o aceitável, a crise antecipa-se: fala-se ao cliente, explica-se a situação, propõem-se solução e não se espera simplesmente que eles não notem.

Os conservadores apontar-me-ão o dedo e dirão que, no meio deste jogo, sou eu quem sai a perder, porque os outros não jogam no mesmo tabuleiro que eu, muito menos com as mesmas regras. Mas como é que queremos que algo mude se não formos os primeiros a acreditar na mudança? O facto de eu me reger por determinados valores não quer dizer que esteja delirante, a viver num mundo irrealista: sei com que linhas é que o meu negócio se cose. Pretendo é mudá-las. E acho que a única forma de o fazer é dando o exemplo, mostrando que é possível ser-se honesto e transparente - mesmo que, em primeira instância, possa parecer que o prejuízo chega primeiro que o ganho. Como na agricultura, penso que temos de ter paciência - plantar para depois colher.

Não sei se esta é uma guerra que se possa ganhar - a inércia das raposas velhas é tão grande e forte (e, infelizmente, já com grandes heranças) que é difícil deixar de sentir que estou sempre a remar contra a maré. Sinto alguma mudança no ar - acho que as pessoas mais novas, por perceberem os erros do passado, estão a tentar fazer diferente, mas infelizmente a ganância não é uma característica que se extinga - mas sei que, a acontecer, será algo para demorar décadas. Isso não me demove, porque eu não sei trabalhar de outra forma - e se algum dia me adequar aos (maus) padrões de normalidade, dêem-me por favor uma palmada bem dada nas costas e digam-me que já não vale a pena continuar. 

Para mim, o propósito de um negócio não é só fazer dinheiro. É empregar, é criar e distribuir riqueza, é trazer algo de novo - mesmo que esse "novo" seja uma mudança de mentalidade. Eu dirijo uma fábrica velha - velha nas máquinas, velha na infraestrutura, velha nos anos e com muitas pessoas já "entradotas". Mas espero seriamente que não me faltem as forças para, daqui a uns anos, perceberem que apesar de uma carcaça velha, somos feitos de uma fibra moderna e fresca e não de uma carne rija como a das raposas velhas. 

23
Mar23

Chávena de Letras: "Born a Crime"

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Não sou espectadora do Daily Show nem conhecia o trabalho de Trevor Noah como humorista - mas não acho necessário estarmos familiarizados com uma personalidade para gostarmos e simpatizarmos com a sua biografia. O importante é ter algo para contar - e Noah tem quanto baste!

Filho de uma mulher negra e de um homem branco - um crime na África do Sul, em tempo de Apartheid, daí o nome do livro -, o autor explica como sobreviveu (e viveu) num país onde após a ascensão de Mandela se deram passos efetivos para a liberdade mas onde os estigmas se mantiveram durante muitos anos, continuando a existir um enorme gap de oportunidades (e tantas outras coisas) entre pessoas de diferentes cores.  Noah explica muito bem o que é o racismo - e como ele próprio, sendo mestiço, o sentiu na pele (mas fugindo ativamente de estigmas e rótulos).

É um livro rico, cheio de histórias que refletem um país. Noah tem graça a contar as suas experiências de vida e torna leve muitos episódios que devem ter sido muito pesados de os viver na altura. De um par de vídeos que tinha visto do autor, antes de ler o livro, a ideia que tinha era de alguém ponderado, equilibrado e com empatia - e a raiz de tudo isto é descrita nestas páginas, fruto de uma educação livre mas bem conduzida e de um homem que procurou concretizar-se desde muito cedo.

Trevor Noah é novo mas tem já uma bela história de vida para contar - digna de livro e digna de ser lida. Acho que todos podemos aprender algo com este "Born a Crime". Tenho pena que, só tendo o áudio-livro, não tenha conseguido sublinhar algumas ideias que transmite, nomeadamente sobre o racismo, que me pareceram preciosas. Apesar disso, achei a construção da obra um bocadinho confusa, pois pareceu-me que não estava organizada por ordem cronológica.

Sobre o áudio-livro: Noah tem uma voz incrível e que insta à audição; imita os sotaques e vozes de quem o rodeia, o que torna tudo ainda mais dinâmico e aprazível. Os capítulos são muitos longos e por isso não há alturas muito propícias para fazer pausas. A linguagem é de fácil entendimento - já o sotaque do autor exige a alguma concentração, pelo menos no início, e em particular quando entoa as vozes de outras personagens da sua vida, onde tende a intensificar os sotaques e maneirismos na fala. Ainda assim, no geral, é um óptimo livro para se ouvir.

09
Mar23

Chávena de Letras: "Spare"

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Sigo há muitos anos a família real inglesa e, como tal, a fã british que vive dentro de mim não me permitiria passar sem ler este livro. 

Diria que a obra pode ser descrita, rapidamente, em quatro partes: 1) os primeiros 20% são dedicados à infância e adolescência de Harry, obviamente marcados pela morte da mãe, em que se fala da turbulência na escola, a(s) dor(es) na sua relação com o irmão e das indecisões do futuro; 2) os seguintes 30% relatam acima de tudo a sua história militar, as suas idas ao Afeganistão e aventuras por lá vividas; 3) os 20% posteriores incidem no seu retorno e ao reinicio de uma vida dedicada à realeza, sem guerras à mistura (pelo menos daquelas que envolvem armas, porque na família existem-nas em quantidade mais que suficiente), que o voltaram a deixar num limbo, sem saber onde pertencia e como se posicionar interna e publicamente; 4) o que resta é a história que temos mais viva nas nossas memórias - o início do namoro com Meghan, o casamento, os filhos e todo o drama já conhecido com a imprensa.

Há âncoras que estão presentes em todo o livro (e, suponho, na vida dele): primeiro, a mãe - um trauma claramente mal resolvido, que o acompanhará para a vida, e que eu creio que dita muitos dos comportamentos de proteção que teve em relação à mulher; segundo, África - um elo comum em todas as fases acima mencionadas, sempre como um amuleto de escape e clarividência, fazendo depois também a ponte com ações solidárias e visitas com amigos; e terceiro, não menos importante, a imprensa - os vilões da vida dele, ainda antes da morte de Diana, mas principalmente depois do acidente que a vitimou.

Apesar de gostar muito de família reais, e em particular da britânica, nunca achei que a vida deles fosse de sonho; lá por serem príncipes e princesas não quer dizer que vivam como nos contos da Disney. E este livro torna isso bem claro: eles vivem numa gaiola dourada. E das duas uma: ou se opta por olhar simplesmente para o ouro, ou mantemo-nos concentrados no facto de estarmos dentro de uma gaiola, independentemente do seu material. Escolhendo a primeira, segue-se a linhagem; optando pela segunda, encontra-se a nova ovelha ronhosa - e ao Harry assenta-lhe este papel que nem uma luva.

Creio que este livro pode ser lido de várias perspetivas, dependendo do espectro onde nos posicionamos em relação à história do Harry, do "Megxit" e a tudo o que foi veiculado na imprensa. Eu sempre achei que a saída deles tinha sido feita de forma bruta e injusta, mas que era uma decisão ponderada por parte do casal, que se viu encostado contra a parede e completamente espremido pelos tabloides. E eu interpreto a escrita deste livro como o último reduto: ao sentir que não tinha nada a perder, Harry deitou ao mundo a sua verdade, sabendo que os outros intervenientes (nomeadamente a sua família) nada iriam contrapor, pois é esse o seu mote e forma de estar. Com tanta mentira espalhada e impressa em tanta página, percebo que a vontade maior seja dar um grito de libertação - mesmo que ninguém o ouça. 

Neste caso, ouvem alguns - mas acho que poucos o farão da forma que Harry desejaria. Primeiro porque os consumidores de tabloides - sendo que muitos só passam os olhos pelas letras grandes - não vão perder o seu tempo a ler um livro longo como este; segundo porque quem o lê para difundir notícias escolhe a dedo aquilo que quer apresentar aos leitores - e eu tenho a certeza que o objetivo máximo de Harry não era que só se falasse do facto de ele ter queimado o escroto ou que o irmão o tivesse atirado ao chão; terceiro porque é difícil mudar opiniões moldadas durante anos apenas com um par de intervenções (a série e o livro) estratégicas. Ainda assim, é uma oportunidade única para a "plebe" perceber a dinâmica de uma família real, com tudo aquilo que ela tem de bom e de mau; para se entender como é um negócio, como está moldada para gerar espalhafato e gerir expectativas. Mas é, acima de tudo, uma tentativa, uma redenção - e acho que justa, tendo em conta tudo aquilo por que o príncipe passou. Não sei se, de facto, o Harry não tem nada a perder aqui - creio que as ligações familiares devem ter ficado muito fragilizadas depois disto, não só por ele contar episódios chave que mancham amplamente a imagem do pai e do irmão (principalmente) mas por todo o sentimento de não pertença que ele descreve (e que se sente) ao longo do livro, que acaba por ser ainda mais grave que os acontecimentos algo isolados que foram acontecendo entre os três ao longo das suas vidas.

Sobre o livro em si: não li muitas biografias /memoirs e, como tal, não tenho grande termo de comparação. Adorei o prólogo e a ideia de que o livro foi tudo aquilo que ele não teve oportunidade de contar, explicar e fazer ver ao pai e ao irmão - foi um pontapé de saída ótimo, mas que esmoreceu logo no inicio do relato militar da sua história. A segunda e terceira partes são mais lentas, explicativas e, em alguns casos, algo chatas - salvam-se por terem capítulos curtos, que fazem as páginas virar mais depressa. No início do romance com a Meghan parece que o livro ganha outra vida - e daí até ao fim, ainda que com muitas partes tensas, lê-se tudo rapidamente. Ainda assim... é um livro triste - escrito por alguém perdido, onde se lava demasiada roupa suja (embora eu perceba o porquê de ele se ver nesse direito).

Apesar de todas as asneiras que possa ter feito, de algumas más decisões que tenha tomado, acho que será sempre alguém com a qual eu tenho muita empatia. Desculpem, Charles e William... deste lado escreve-vos alguém Team Harry.

22
Fev23

Chávena de Letras: "I'm Glad My Mom Died"

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Este é um livro necessário. Na verdade, só o prólogo diz tudo aquilo que muitos precisamos de saber - embora o que está para trás seja igualmente valioso.

Aquilo que Jannette McCurdy evidencia é algo que, no fundo, todos sabemos - mas é uma verdade pouco proliferada (e até pensada): o papel de mãe é o mais romantizado da história. As mães são sempre heroínas, são sempre boas, sempre bem-intencionadas, são sempre incríveis... Só que não. Porque há más mães. Há mães que vendem os filhos; há mães que os matam. E há mães que maltratam, mesmo quando parece que não o fazem - que era o caso da mãe de Jannete.

Na narrativa desta história percebemos que tudo aquilo pelo qual a autora passou foi feito sob a ideia de que era para o seu bem: as invasões ao ser corpo eram para garantir que não tinha nódulos, a obrigação de trabalhar era para ter uma boa vida e ser feliz, ter de ser magra e pequenina tinha como propósito garantir papéis por muito mais tempo. Tudo para o seu bem. Mas será mesmo o "seu" bem? Ou o bem da sua mãe - ou, simplesmente, para bel-prazer da sua progenitora?

Este foi o primeiro audiolivro que ouvi e gostei muito da experiência. A linguagem utilizada é acessível para quem estiver familiarizado com o inglês (não é preciso ser especialista) e a forma de falar de McCurdy (sendo que o livro é narrado por ela) ainda nos envolve mais na narrativa, uma vez que ela imita as vozes e os sotaques das personagens de quem fala. Esta é a sua história de vida, desde o momento em que começou a fazer castings (passando pelos anos em que fez um programa de sucesso no Nickelodeon) até à altura em que a mãe morreu, quando já tinha enveredado por caminhos mais tortuosos como o alcoolismo e anorexia (entre outros); é a forma de como lidou com tudo o que vivenciou e da forma que arranjou para, depois, conseguir gerir tudo isso.

Apesar de ter adorado o mote do livro e a conclusão a que chega, há dois apontamentos curiosos que quero fazer: 1) não conhecia o trabalho (nem a imagem) da autora, mas por alguma razão não consegui simpatizar com ela - muito embora tenha uma enorme empatia pelo que passou; isto faz com que o livro tenha ainda mais valor para mim - porque o adorei apesar do que senti em relação a quem o escreveu; 2) não acho que o título do livro faça jus à história. Acho que foi escolhido por ser "chocante" e para atrair leitores, mas em nenhuma parte da história ela se mostra feliz pela morte da mãe - é tudo muito mais profundo que isso, e essa complexidade está bem espelhada em todas as páginas do livro. Tudo é pouco linear, tudo é de difícil leitura e análise, escondido por detrás de dogmas, boas intenções e tantas outras ideias pré-concebidas da maternidade - e por isso seria muito difícil resumir tudo num sentimento tão "simples".

Aconselho muito - e em particular o audiobook.

 

(este livro acabou de ser editado pela Lua de Papel, em português, sob o nome "Ainda Bem Que a Minha Mãe Morreu")

18
Jan23

Chávena de Letras: "Os Sete Maridos de Evelyn Hugo"

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Gostei deste livro, mas não o amei. Faltou "aquele bocadinho assim" - mas confesso que não sei qual é a falha, pois tinha tudo para dar certo.

Esta foi a primeira obra que li da Taylor Jenkins Reid e não será certamente o última: a autora tem uma escrita fácil mas com peso em algumas passagens - uma gestão que a maioria dos autores não consegue fazer -, que nos conseguem marcar e dar um tom mais sério (e realista) ao livro. A personagem principal está lindamente construída: complexa, simultaneamente crua e polida, dura e real. Não sei se é fácil identificarmo-nos com ela (não é sempre uma personagem simpática), mas acredito que muitos gostassemos de ser como ela - quanto mais não seja pelas ganas que tem de viver a vida como sempre a quis.

A forma que a autora arranjou para nos levar até ao final do livro é subtil, muito inteligente e, mais uma vez, gerida na perfeição: no fundo, estamos todos ali a virar páginas porque queremos conhecer a história dos maridos da Evelyn ou porque queremos saber o porquê de ser a Monique a "escolhida"? É uma premissa que vai pairando ao longo de todo o livro mas que não é o alvo direto da história... E isso só torna tudo mais intrigante.
Apesar de se tratar praticamente de uma narrativa de personagem, que são normalmente obras mais lentas, este é um livro que se lê muito bem e rapidamente.

Ponto negativo para a tradução: não tenho a comparação em inglês, mas há falhas notórias - já para não falar de muitas gralhas ao longo do livro. 

P.S.: Foi a minha primeira leitura no Kobo! Whooo!

Por fim, uma análise rápida que resume toda a história (para quem não gostar do mínimo levantar de véu, não leia esta parte): quão irónico é que, no meio de sete maridos, nenhum deles seja o amor da vida dela? E quantas Evelyn's andarão por aí com o mesmo drama? E quantas estrelas de Hollywood, com aquelas vidas e romances recambolescos, não entrarão neste tipo de esquemas para salvaguardar o seu verdadeiro eu? Este livro deixou-me a divagar sobre o assunto.

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