A dinâmica de cemitério
Foi a minha mãe que me ensinou a perceber o que era o cemitério, o porquê de se ir lá e de me ensinar como se agia num cemitério. Essas idas nunca foram um peso e, por isso, ainda hoje não o vejo como tal. Sim, é um sítio onde passa gente muito triste, a atravessar, provavelmente, os piores momentos da sua vida. Mas isso não faz dele - pelo menos para mim - um lugar pesado.
Quando ainda só tinha perdido os meus avós, visitávamos só o Prado Repouso - um dos maiores cemitérios da cidade do Porto e, para mim, o mais bonito de todos. Parece um parque, cheio de árvores centenárias de copa cheia, com apontamentos de flores que pintalgam de cor as suas avenidas enormes; já para não falar de uma vista rio estonteante! Adoro lá ir visitar os meus avós - não o faço mais vezes porque é longe, porque fecha cedo e porque é um sítio terrível para arranjar estacionamento.
Mas agora, desde o falecimento da minha irmã, que ir ao cemitério deixou de ser uma coisa esporádica; faço-o, pelo menos, uma vez por semana. Felizmente as cinzas dela ficaram enterradas perto de mim, o que facilita bastante este ritual. E, apesar do cemitério onde ela está não me transmitir a paz do Prado Repouso (é um cemitério clássico no centro de uma cidade, praticamente só com pedra), eu adoro a rotina de lhe ir deixar uma vela, cuidar da campa e garantir que está florida e colorida. Não o faço por obrigação ou cadência certa; vou quando posso, quando me apetece e quando o meu tempo (e a meteorologia) o permite. O que acaba por ser com bastante frequência.
Porque, por muito tétrico e estranho que isto pareça, eu gosto da vivência e da dinâmica de um cemitério. Gosto de falar com os meus, de pedir ajuda, de me sentar a conversar e olhar e imaginar as suas respostas na minha cabeça; gosto de chorar com eles, quando preciso. Adoro sentar-me com calma e sem tempo, desfazer as floreiras e redecorar tudo, como quem remexe nos móveis de uma casa e lhe dá um novo visual (e eu que, até há bem pouco tempo, achava que não tinha jeito nenhum para fazer arranjos).
Mas, mais do que isso, gosto de estar num ambiente em que todos partilhamos a mesma dor: o luto. De uma forma ou de outra, todos os que ali circulam estão lá por terem perdido alguém. Dividem a maior dor da minha vida sem saberem nada sobre mim, mas conhecendo a dor de perto. E, não sei bem porquê, isto provoca uma dinâmica já não muito comum na sociedade, quase como quem num café do antigamente: dizemos bom dia a quem deambula com flores, baldes e vassouras; pedimos e oferecemos "lumes" descontraidamente; trocamos bitaites sobre o tempo horrível dos últimos dias, que nos destruiu os arranjos; confiamos no próximo para nos devolver os fósforos e a tesoura que emprestamos, mesmo quando os perdemos de vista até ao outro lado do cemitério. Esta semana um senhor até nos ofereceu as flores que lhe tinham sobrado para arranjarmos a campa. É um sentimento de comunidade que já não se encontra hoje em dia numa cidade. É quase como se fosse um micro-clima, onde há um pacto de paz, sob a premissa de estarmos todos ali por causa do mesmo: a ceifeira que nos roubou uma peça essencial da nossa vida. E isso, dentro da tristeza que tudo isto é, é muito bonito. Ou, pelo menos, eu assim o vejo.
(esta é a minha última "instalação" na campa da minha irmã: um jardim repleto de joaninhas (como ela) para dar cor e vida àquele espaço, que eu quero que seja de leveza e partilha, e não de peso e tristeza)