Devia tirar mais fotos?
Debí tirar más foto' de cuando te tuve
Debí darte más beso' y abrazo' las veces que pude
Como a maioria das pessoas que ouve rádios comerciais, cruzei-me com esta música do Bad Bunny há já alguns meses. Aliás, diria que até foram as redes sociais que ma mostraram primeiro, com este refrão em loop, conjugadas com imagens lindas e mensagens supostamente-inspiradoras. É curioso, porque eu não gosto nada da música - aliás, nem me parece música, é mais uma poesia semi-cantada, mas enfim; a verdade é que me tocou e fez pensar sobre o assunto, por isso creio que já concretizou o seu propósito, mesmo não me caindo no goto (sonoramente falando).
Até há um ano eu era a fotografa oficial da família. Sempre que havia um evento qualquer - aniversários, ajuntamentos ou festas -, para além da minha multa em forma de pastelaria, levava sempre a máquina às costas para registar alguns momentos. Tenho vários textos escritos aqui no blog sobre a importância da fotografia para mim, de como gosto de registar algo que vai durar no tempo e ajudar-nos a recordar no futuro. Mais do que tirar fotografias, sou muito preciosista na escolha, arquivo e partilha das fotos e faço esse exercício com tempo e carinho para que, quando quiser consultar aquelas memórias, ter tudo pronto para uma consulta rápida e saborosa. Para além disso faço sempre álbuns de fotos anuais, com o best of de cada ano - um mais generalizado, com os aniversários da família nuclear e etc., e outro só meu e do Miguel, com fotos dos nossos passeios e viagens.
Mas este ano não me apetece tirar fotografias. Forcei-me a fazê-lo em alguns eventos mas as fotos estão empilhadas nos cartões de memória, à espera de chegar a sua vez de entrar no meu programa de edição. Não as edito, não as envio, não as organizo e muito menos as coloco em álbuns. Tenho fotos em eventos em que a minha irmã já estava doente... e outros em que a minha irmã simplesmente já cá não está. E eu ainda não sei lidar com esse degradé de desaparecimento. Aliás, perdi a capacidade de lidar com tudo: ver fotos em que ela estava saudável e feliz dói; ver fotos em que ela estava doente dói muito; ver fotos em que ela já não está dói imenso. Porra: o que é que afinal não dói nesta vida?
E é curioso sentir isto, porque na altura em que ela adoeceu eu tirei muitas fotos. Mais: cheguei a pedir ao Miguel para abrir a pestana e captar os momentos que sentisse que eram especiais. E o meu marido, incrível como foi em todo aquele processo, só me dizia "já tirei". Eu enchi o meu telemóvel de fotos porque sabia que aqueles momentos eram efémeros e queria captá-los, guardá-los, garantir que jamais cairiam no esquecimento. Ao contrário do Bad Bunny, nunca pensei que "devia tirar mais fotos", porque as tirava a toda a hora, nas mais diversas condições - mesmo nos piores momentos. Porque aquele era o meu dia-a-dia e nenhuma imagem me chocava; porque eu sabia que tinha de aproveitar todas as ocasiões para dar "os beijos e abraços, todas as vezes que pude".
O pior é agora - agora que o tempo está a fazer o seu trabalho, que apaga umas coisas e realça outras, que quase nos altera a memória de forma a que possamos seguir em frente. Mas será que é sempre para melhor? Porque se por um lado o tempo ajuda - uma das frases que mais ouvimos neste percurso - também o é que o desenvolvimento do luto não é linear e coisas úteis e valiosas se perdem neste processo de detox do cérebro. Hoje, por exemplo, tenho muito mais dificuldade em lidar com a morte do que há quatro meses; a ideia dessa passagem como algo que salva da dor, como uma coisa que pode ser positiva e que está ao virar de cada esquina de cada um de nós, está a desaparecer. A morte, naqueles meses, deixou de ser algo que eu receava; aquilo que eu temia era não viver. E isso mudou tudo em mim e era algo que eu gostaria de manter. Mas agora, longe da minha irmã doente e das entradas e saídas dos paliativos, em que o meu presente virou passado e as memórias deixam de ser frescas, começo a encarar a morte como antes: uma coisa distante, terrível, a forma suprema de dor. E isso reflete-se na maneira como olho para as fotografias. Se antes as tirava com o intuito de lembrar as coisas boas, dos momentos extra que tive com ela, hoje observo-as com a dor de quem só perdeu e nada ganhou. Um filtro negativo está a invadir a minha visão e, por muita racionalidade que ponha nos meus argumentos, a emoção da perda e do luto levam a melhor.
Não sei se me hei-de obrigar a agarrar na máquina e fotografar, de pegar no computador e editar as milhares de fotografias que se acumulam - mesmo que isso seja quase um autoflagelo que sei que culminará com dor e choro - ou se, simplesmente, espero que o tempo continue a fazer o seu papel e aguardar pelo momento em que tudo isto se suavize. A questão é: será que esse momento vai chegar? Será que alguma vez voltarei a pegar na máquina com o mesmo intuito de salvaguardar momentos e memórias para a posteridade ou é simplesmente um hábito que vai morrer? No fundo, na última década, registei a história de uma família unida. Faz sentido parar de o fazer? Será que não me vou arrepender no futuro? Porque a verdade é que, enquanto medito sobre a melhor maneira de lidar com isto, os momentos vão passando. E, sem fotos, vão só ficando memórias. E, como o tempo é traiçoeiro, sei lá eu o que vai restar na minha cabeça daqui a uns anos. Talvez o Bad Bunny tenha (agora sim), razão... e eu deva tirar mais fotos.
Mas porra. Dói tanto.