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Entre Parêntesis

Tudo o que não digo em voz alta e mais umas tantas coisas.

22
Nov24

Um mês de saudade

Faz hoje um mês da morte da minha irmã. E eu tenho saudades.

O tempo sana muita coisa, mas as saudades não são uma delas. A falta da presença física constata-se nas pequenas coisas, nos detalhes. O luto vem em ondas - tanto o mar está calmo como, do nada, de um pormenor se faz um tsunami. 

Vejo o luto dos outros e, de facto, cada um tem o seu processo. A mim não me dá para os porquês e não ponho em causa as decisões tomadas durante aqueles oito meses; também não tenho remorsos do que fiz ou deixei de fazer com a minha irmã, tanto antes como depois de ela saber que estava doente. Estou serena com as decisões dela e com as minhas. Mas a mim, o que me pesa, são as memórias.

Há pouca coisa na minha vida que não se ligue à minha irmã, porque as minhas raízes cresceram em conjunto com as dela; é indiferente aquilo que eventualmente nos distanciava nos últimos anos, porque o que nos unia era um iceberg invisível e gigante que vem de tudo aquilo que ela me transmitiu e que fez de mim a Carolina que sou hoje. O monte de gelo que está por cima do iceberg, mais sujeito às intempéries da vida, podia ir variando... mas nunca, nunca o iceberg diminuiu de tamanho. E tudo o que fiz por ela e com ela neste ano foi tudo, tudo vindo de uma fístula profunda que se chama, simplesmente, de amor. Todo o iceberg é tecido por milhões de laços de amor, que são no fundo memórias e ensinamentos que ela me transmitiu e que agora vêm à superfície, por um canal que não se fechou e que vai trazendo ao de cima coisas que estavam lá escondidas há muito tempo. 

Ultimamente sou assolada por canções que ela me cantava ("Era uma vez um cavalo que vivia num lindo carrossel, Tinha as orelhas furadas e a cabeça era feita de papel" ou a "De olhos vermelhos, e pelo branquinho, aos saltos bem altos, eu sou um coelhinho", com a qual me cruzei hoje) e a dor que isto causa é de uma dimensão que desconhecia. São coisas tão pequenas e aleatórias que são totalmente arrebatadoras. Todos os dias, vindo de um gatilho que até agora não era disparado, lá vêm uma ou duas memórias novas, que me atingem como tiros: porque não a posso ver, não lhe posso tocar, não a posso ouvir a cantar aquela canção da minha infância. A dureza da finitude, da incapacidade de realizar todos os pequenos atos, é por vezes incapacitante. E mais do que injustiça, tristeza ou zanga com a vida... o que me resta é uma saudade do tamanho desse iceberg que nos une. 

 

Passado um mês, acho que faz sentido deixar aqui o texto que lhe escrevi e li no seu funeral. Gosto daquela ideia de cerimónia americana que vemos nos filmes, em que se tenta celebrar a vida em vez de a chorar. Tentei que aquele momento fosse uma ode à sua vida, sobre quem ela foi e aquilo que representa para mim, e não um reflexo da tristeza com que a sua doença e consequente partida nos deixou. Ao contrário do meu costume, tentei pontuar o discurso com algumas piadas e com uma leveza que a situação não refletia. Quando me perguntam como é que consegui ler isto sem uma única lágrima, eu digo que não sei. Mas sei que foi por ela: porque ela merecia um funeral que a celebrasse, que fosse lembrado, que fosse único. Tal como ela.

Antes de mais queria agradecer a presença de todos vós neste momento tão difícil para mim e para a minha família, assim como todo o apoio que nos foi dado ao longo desta jornada; agradecer também ao Sr. Padre por me disponibilizar este espaço para dedicar à minha irmã umas últimas palavras.

A Joana era uma mulher simpática, de sorriso fácil e um coração gigante. Era bondosa, intuitiva e generosa. Era linda - por dentro e por fora - e, para quem realmente a conhece, um ser especial. Também era teimosa, ciumenta e tantas outras coisas que normalmente não se mencionam nestas altura da vida; no entanto, o que importa é dizer que a balança era aqui muito desequilibrada, e pendia largamente para o lado positivo. A Joana era boa pessoa. E a verdade é que, dependendo do contexto em que a conheceram e das fases da vida em tiveram oportunidade de privar com ela, todos vós terão uma noção diferente daquilo que era a Joana, as suas qualidades e defeitos. Mas eu tenho uma noção privilegiada - porque a Joana não era a Joana para mim. Era a minha irmã. E sei que falo também pelo Zé e pelo João, dizendo que era uma irmã extraordinária, mas ela era a minha única irmã, tendo sido, desde sempre, muito mais que isso.

Acho que poderia resumir tudo isto com uma história breve: das muitas e tantas vezes que a chamei - para me limpar o rabo, para me ajudar a fazer os trabalhos de casa, para me chegar alguma coisa, para jogarmos um jogo, para tirar uma carraça a um cão ou simplesmente para a ter ao meu lado - o substantivo mana começou a ficar gasto. E, sem querer, lá me fugia a boca para a verdade: em vez de mana, saía-me um "mãena", uma mistura entre mãe e mana. O que, por si só, já explica bem a nossa relação.

Pelos dezasseis anos que nos distanciavam mas, acima de tudo, pela dedicação e o amor infinitos que me deu, a minha irmã foi a minha segunda mãe. Não me carregou no ventre, mas eu e ela teremos para sempre uma série de cordões umbilicais que jamais poderão ser cortados. Nem a morte tem esse poder. A minha irmã foi o primeiro amor da minha vida; foi a primeira e a única pessoa a quem eu pedi em casamento, porque na minha cabeça de criança era o que fazia sentido. Se o casamento é a união de duas pessoas que se amam, porque é que eu não podia casar com a minha pessoa preferida, aquela que eu amava com todo o meu coração? Foi ela que me explicou - como fez com tantas outras coisas da vida, umas mais difíceis que outras - que os irmãos não se podiam casar, que as coisas não funcionavam assim. Foi a tampa mais dura da minha vida.

Acho que é por causa da minha irmã que adoro animais - não só porque adormeci durante sete anos ao lado dela a ver o National Geographic mas porque foi ela que, por via do exemplo, me mostrou o que era a amar os nossos animais de estimação. Foi a minha irmã que me ensinou a apertar os cordões, ainda que de uma maneira que, ainda hoje, toda a gente goza comigo, pois eu era incapaz de dar o nó clássico como as pessoas normais. Era a minha irmã que me acompanhava aos médicos, os seres de quem tinha mais medo na vida, e me confortava enquanto agarrava as minhas mãos suadas. Era a minha irmã quem me penteava todos os dias de manhã e me fazia os dois puxinhos que tanto caracterizaram a minha infância. Foi com a minha irmã que dei os primeiros passos. Era a minha irmã que passava os níveis mais difíceis dos jogos de Playstation por mim, porque eu ficava frustrada e nunca conseguia. E ficaríamos por aqui horas se vos continuasse a dizer tudo o que ela fez por mim ao longo dos 29 anos que partilhámos.

Fiz questão de lhe dedicar estas últimas palavras porque, até há bem pouco tempo, achava que escrever era o meu maior talento. Mas entretanto descobri que cuidar da minha irmã foi não só a tarefa mais árdua da minha vida mas também aquela para a qual senti que estava genuína e instintivamente talhada. Nunca gostei de cuidar fisicamente dos outros, mas senti que ajudá-la a atravessar esta sua era uma tarefa minha. E tudo me saía tão naturalmente que houve alturas em que pensei que o destino existe mesmo, que esta tragédia estava escrita e que esta era hora de retribuir todo o amor e dedicação que ela me havia dado, principalmente nos primeiros anos da minha vida. E agora que a luta acabou, agora que ela não está mais aqui, volto para aquela que passou a ser a segunda coisa que tenho mais jeito para fazer: usar as palavras. E espero que ela as ouça.

Primeiro dizendo que sei que estás bem, meu amor. Finalmente em paz. Mas, acima de tudo, bem acompanhada, pelos avós que sempre e tanto te amaram e mimaram. Tenho a certeza que a D. Odete te recebeu com as tuas omeletes preferidas.

Segundo, relembrar que uma pessoa só morre quando a última pessoa que se lembra dela morre também. A minha irmã deixa uma herança enorme: não só os seus dois maravilhosos filhos mas também um conjunto gigante de memórias que lhe permitirá viver durante muitos anos no coração de muita gente. E, no que depender de mim, essas memórias serão tantas e tão cheias de amor que ela se tornará eterna.

Obrigada.

 

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(Uma foto representativa da verdade do meu discurso: eu no pote, ela ao meu lado. Sempre. Para sempre.)

20
Nov24

Chávena de Letras: "When In Rome"

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Este livro de Sarah Adams é um rebuçadinho - pequeno, docinho e leve, como se querem estas coisas.

Li-o sem qualquer referência - estava no Kobo a 0.99€ e vi que a classificação aqui no Goodreads era boa e, como tal, fui de cabeça. Estava a precisar de algo fresco e light, depois de alguns livros que me tinham deixado com a alma mais pesada, e este foi mesmo o remédio ideal. Se é a fórmula do costume? É. Se é aquela que resulta? Também.

Uma estrela da música conhece, por vias travessas, um homem "normal" - e adivinhe-se lá como é que isto vai acabar? Não é um livro lento, mas a relação das duas personagens principais é uma espécie de slow burn - e, confesso, às vezes apeteceu-me gritar-lhes para acabarem com o seu sofrimento (e o nosso) e se simplesmente atirarem à espinha um do outro. E é aqui que o livro, para mim, falha um bocadinho - mas são gostos.

A Carolina de 16 anos teria ficado deliciada com este livro; a Carolina de 28 gostou muito e dir-lhes-ia simplesmente para terem falado mais cedo e usufruído mais. Ainda assim, será sempre um estilo que me aquece o coração e ao qual voltarei sempre que precisar de impulsionar a leitura ou de desenjoar depois de algo mais pesado. Aos fãs deste género - meio young adult, meio romance de cordel - aconselho.

17
Nov24

Uma joaninha sempre comigo

Foi relativamente cedo no processo de doença da minha irmã que lhe criei uma bucket-list. Só tomou a forma de lista no último par de meses da sua vida, mas a verdade é que na minha cabeça existia há muito tempo. Era uma bucket-list dela mas que consistia em coisas para fazer comigo, mesmo que ela não exprimisse que as queria fazer. Pronto, ok, na prática era a minha bucket-list - mas isso agora são pormenores que não interessam nada.

Continha das coisas mais mundanas - desde arranjar as sobrancelhas - até às mais especiais, como fazermos uma tatuagem em conjunto. Cumprimos várias e fomos muito felizes. Fizemos karaoke no banho e no carro, enquanto ouvíamos a playlist que fiz para ela no Spotify, recheada de músicas dos tempos em que ela me fazia ouvir Jamiroquai, Manu Chao e Craig Davis enquanto tirava o próximo CD da sua malinha; fomos fazer compras várias vezes e trouxemos as mãos cheias de sacos; fomos às festas da cidade, jogamos matraquilhos e comemos aqueles geladinhos cremosos, ideais para quem não pode comer grandes sólidos; arranjei-lhe as unhas e descobri que, apesar de não ter o dom da manicure ou pedicure, o amor faz com que nos safemos em qualquer tarefa; arranjamos as sobrancelhas uma à outra e foi tão divertido que os músculos da barriga dela expulsaram um catéter que lá tinha espetado, de tanto rirmos e sorrirmos - seguiu-se um banho de soro até descobrirmos onde havia uma fuga. Fizemos um escape game, festejamos aniversários e até fiz uma pizza party eleitoral onde ela provou as nossas pizzas caseiras; fiz-lhe uma festa surpresa depois do seu internamento mais longo, com o tema "a Joaninha está de volta ao seu jardim", com pequenos insetos vermelhos de madeira colados em tudo o que era palito e espacinho, rodeados de balões verdes de vários tons, qual jardim tropical. A verdade é que a festa não correu tão bem como eu gostaria nem resultou na alegria exponencial que desejava proporcionar à minha irmã - mas não me arrependo nem um pouco de a ter feito. Fomos comer um gelado à beira-mar, na minha nova gelataria favorita; e, durante vários dias, ela tentou-me ensinar o básico do tricô: um conhecimento que não ficou muito bem consolidado, mas com que tenho material para trabalhar e melhorar nos próximos anos.

Por realizar ficaram alguns lanches com amigos, ver em conjunto a nova temporada da Emily in Paris e fazer uma tatuagem. Esta última era algo especial e com simbolismo, mas ela tinha medo de comprometer o seu estado de saúde, já tão débil; e muito embora tivéssemos luz verde da médica para avançar, a minha irmã tinha receio e não sabia bem o que fazer. Já tinha decidido, logo no início do processo, que faria uma tatuagem caso se curasse; quando lhe disse que, independentemente de tudo, eu ia fazer uma, ela disse que para ela já não fazia sentido, pois não ia ficar curada. Respondi-lhe que aquilo que ela estava a fazer requeria muito mais coragem do que uma cura: viver e lutar contra um cancro incurável exige uma coragem e dureza que não é para todos. E isso merecia ser celebrado.

A verdade é que não houve tempo. Quando partilhei com ela a minha ideia de desenho - e após ter chorado um bocadinho com a ideia do que eu queria fazer - ela reiterava que continuava sem saber ao certo o que queria colocar na pele. Respondi algo que não viria a ser verdade: que ela tinha tempo para pensar. Não teve.

Mas na bucket list continuavam coisas por riscar - e se não houve tempo para as fazer com ela, decidi rapidamente que as ia fazer por ela. E assim, nem duas semanas depois de nos ter deixado, lá estava eu, de braço estendido em cima de uma maca, a fazer a joaninha que tinha prometido. A minha sobrinha veio comigo e fez a sua primeira tatuagem também... E foi especial. Porque não o fiz com a minha irmã mas consegui fazê-lo de uma maneira única, com a pessoa que mais herdou dela; porque é algo que partilhei com a minha sobrinha e que não vou esquecer; e porque ficará eternamente marcado na minha pele que a Joana(Inha) está sempre comigo.

Se era estritamente necessário marcar de forma tão visível a dimensão e o impacto que a minha irmã teve na minha vida? Não, claro que não era - se eu o sei, é o suficiente. Mas era importante para mim... porque a parte física dela apagou-se deste mundo e custa-me não a ter ao meu alcance. Sei que tenho fotos, vídeos e, claro, a memória - mas queria ter um sitio rápido e imediato para onde olhar e pensar: é ela, comigo, aqui.

E por isso, agora sim, metafórica e rigorosamente, tenho uma joaninha sempre comigo. Não só cravada na alma e na memória... mas na pele, para sempre, até ao fim dos meus dias. Não sei se sou eu que sou muito dorida, mas de cada vez que a agulha entrava na pele eu fazia um esgar de dor - e em todos esses momentos eu lembrei-me dela, de tudo o que ela sofreu, de todas as vezes que teve de ser picada... e das tão poucas vezes que se queixou. O mínimo que eu podia fazer era aceitar a dor e olhar para o resultado que se desenhava na minha pele. Agora, onde eu estiver, ela está - e caramba, fofinha, como é bonita a República Dominicana. 

 

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15
Nov24

Nobody Wants This é tudo aquilo que eu precisava e não sabia

Não vale a pena escrever muito mais sobre a dureza do processo pelo qual a minha irmã passou - e nós, inerentemente, com ela. Se as coisas eram levadas com leviandade no início, no fim já eram muitas vezes penosas e pesadas e os dias não acabavam. Uma das coisas mais desestruturares para mim durante todo este processo foi a perda das minhas rotinas, que sempre prezei e que no geral me davam paz e até algum prazer. Gerir a nossa vida em prole de alguém muito doente - e, no meu caso, em estado terminal - é estar sempre alerta. Eu nunca estava verdadeiramente descansada ou relaxada; nunca tinha horários definidos e nunca me comprometia a 100% com nada, porque sabia que havia sempre alguma hipótese de não conseguir corresponder, pois a minha prioridade era ela - a qualquer hora e em qualquer lugar.

Deixei de fazer bicicleta de manhã, deixei de cozinhar ao jantar pratos que exigissem mais tempo (nunca comi tantas vezes fora nem tanto fast food como neste período), deixei de ir à fábrica durante muitos dias para poder estar com ela - e agradeço muito, internamente, esta minha escolha de vida por me ter permitido gozar da flexibilidade de estar com alguém que precisava de mim, mais do que qualquer trabalho. Nunca sabia a que horas saía de casa nem quando voltava - e por isso os dias em que chegava cedo, às horas "normais", eram alturas que já saboreava de maneira especial. Ter tempo para jantar à mesa e enroscar-me no sofá durante um bocadinho foi um luxo nestes dez meses - e talvez por isso também ter encontrado uma série boa, leve e com episódios curtos (este pormenor é importante, pois não aguento mais de meia hora no sofá sem fechar os olhos) foi um bálsamo para a minha alma.

Durante vários dias foram-me aparecendo nas redes sociais referências ao "Nobody Wants This", da Kristen Bell e, num dia mais calmo, decidimos experimentar para tentar aliviar a cabeça dos nossos problemas. E não é que foi a solução perfeita? É uma série ligeira, divertida e muito fofinha, com personagens com quem nos relacionamos e com uma história que até podia ser verdade. Se a religião une muitos... separa outros tantos. Será que é fácil uma relação sobreviver a este gap espiritual? É a resposta que fica respondida nesta série que vai ser, facilmente, a minha preferida deste ano (até porque não vi muitas mais).

É claro que fiquei com o coração despedaçado quando acabou. Aqueles dias no sofá foram a terapia perfeita para me desligar dos dias pesados e eu queria mais - queria rir-me de forma sentida, queria ligar-me a algo mais do que ao sofrimento que via diariamente à minha volta. Mas tudo o que é bom acaba depressa e "Nobody Wants This" é o exemplo perfeito disso. Vai ter uma nova temporada... o que, por um lado, é bom... mas por outro arriscam-se, como é costume, a estragar algo de muito bom. Mas mentiria se não dissesse que não estou ansiosa - até porque não é todos os dias que arranjamos boas desculpas para aprender mais sobre o judaísmo, os rabinos e... pronto, sobre o Adam Brody. Aguardemos, irmãos.

 

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06
Nov24

O futebol português tem muito para aprender

Sou sócia do FCPorto há 20 anos. A minha avó, vendo-me a crescer portista ferrenha, decidiu inscrever-me junto do senhor que passava à porta de casa dela a recolher as quotas do meu avô. Foi uma prenda muito feliz. Porque eu era, de facto, adepta fervorosa do Porto e guardo memórias incríveis dos meus tempos de miúda e adolescente, enquanto tentava a todo o custo arrastar alguém comigo para o estádio (e consegui - foi com a minha irmã e o seu namorado que fui ao Dragão pela primeira vez, e ao longo dos anos consegui convencer o meu pai a acompanhar-me umas quantas vezes - ainda que contra a sua vontade - o meu irmão mais velho e até amigos). Mas desde há uns anos que a minha paixão esmoreceu - a podridão do futebol começava a ser cada vez mais evidente aos olhos que já não era da miúda meramente portista mas sim de uma adulta com valores e moral que não concordava com aquilo que via. Nem o Miguel, tripeiro ferrenho e detentor de lugar anual, me demoveu deste desamor - pelo contrário, muitas foram as vezes que fiquei chateada com o clube por me roubar o marido de umas noitadas no quentinho do sofá.

Por isso fez-me sentido deixar de pagar as quotas durante uns largos meses: não me apetecia alimentar aquele negócio de mafiosos. Mas, no início deste ano, o Villas-Boas candidata-se oficialmente e eu decidi voltar, num gesto de cidadania e sentido de dever para com o meu clube. Confesso, até, que fiz também por uma questão de continuidade: primeiro porque me custa prescindir de uma das prendas que me deixou mais feliz e que me foi dada pela minha querida avó, e segundo porque estou a cinco anos de receber a roseta de prata e não queria agora morrer na praia. Regularizei a minha conta corrente, esperei pelas eleições e pumba: foram marcadas na única semana do ano em que estive fora do país! A única!!! Mas os meus concidadãos-portistas souberam o que fazer e elegeram a pessoa certa para um cargo que estava a apodrecer. Devemos muito ao Pinto da Costa enquanto clube, mas é preciso saber parar - e ele não só não soube como saiu mal, o que foi uma pena.

A questão é que o Pinto da Costa não era o único problema - ele não era a única fruta podre na fruteira que é o FCPorto. E não é por se tirar a peça maior que tudo vai mudar - é preciso uma mudança longa e algo penosa para se alterar a cultura de um clube (ou de uma empresa ou de qualquer organização que tenha pessoas), que envolve a saída de muita gente mas também alterações de base que são normalmente muito difíceis de instituir. 

A ideia de que os portistas são arruaceiros, mal-educados e "broeiros" não vem de razões alheias. São preconceitos generalizados que nascem de um fundo de verdade qualquer... ainda que não se aplique necessariamente para o todo e que sejam injustos a maior parte das vezes. Sinto que o Pinto da Costa e sua prole tiveram uma quota parte muito grande de culpa sobre a imagem que se passa sobre os portistas e, de uma forma geral, do pessoal do Norte - e acho que, indo devagarinho na direção contrária, o Villas-Boas está a levar o clube num bom caminho. O gesto do Pêpe é um bom exemplo disso. (Em confronto, podemos lembrar-nos de todas as vezes que o Sérgio Conceição foi mal educado com os árbitros, que faltou a conferências de imprensa e outras coisas que tais - e tantos outros exemplos feios que há no futebol, a começar pelo anti-jogo que praticam e os nomes que se chamam uns aos outros).

Mas aquilo que eu almejo mesmo para o meu Porto é que consiga dar uma volta de 180º como deu o Sporting. E esta é a razão deste meu post, que surge numa altura completamente aleatória e um pouco descontextualizada, mas que tinha de ser escrito hoje depois do que se passou ontem no jogo contra o Manchester City. O Sporting passou de ter como presidente uma figura anedótica (não sei quanto a vós, mas eu divertia-me imenso com o Bruno de Carvalho - as conferências de imprensa eram dos momentos mais divertidos do meu dia) para ser um clube com uma gestão cautelosa e amistosa, sem levantar ondas de maior. Não sou fã do Varandas, mas acho inquestionável o rumo para onde leva o clube verde e branco - e isso provou-se ontem, no último jogo do Amorim em Alvalade.

As saídas a mal de inúmeros treinadores do Porto (incluindo o Villas-Boas, depois de se ter pronunciado sobre a sua "cadeira de sonho", do Mourinho que mal festejou depois de ganhar a Champions, ou mesmo do Conceição, cujos relatos da reunião com o novo presidente são dignos de curta-metragem) é algo que me deixou desgostosa e calejada - de tal forma que eu nem sabia que havia forma de fazer as coisas de modo diferente! Aquilo a que tanto o Amorim, como o Sporting, o Varandas e o Manchester United se predispuseram a fazer foi das saídas mais limpas que vi no futebol moderno em Portugal: sem zangas, sem portas a bater e sem lavagem de roupa suja nos meios de comunicação social. É só um homem que quer um futuro num clube maior e que tem o direito de ir atrás do seu sonho; é só um clube que o respeita. É só um treinador que, no momento que achou correto, foi claro como a água com a imprensa e explicou a situação que lhe foi apresentada e a sua visão - sem ironias, sarcasmos ou figuras de estilo que destorçam as suas palavras. É só um clube que aceita, que prepara uma saída em grande para uma pessoa que foi essencial na mudança e um momento em que todos saem a ganhar (ainda que sabendo que a perda é muito grande) e para mais tarde recordar. 

Que sirva de lição. Esta era a imagem que eu gostava de ter do Porto daqui a uns anos.

 

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(foto daqui)

03
Nov24

Se fosse médica queria ser paliativista

Se eu fosse médica, quereria ser paliativista.

É claro que nunca o quis ser. Não há figura que me meta mais medo na vida do que um médico. Não vos sei dizer porquê: se por um lado têm o poder de nos tratar, têm também o poder de nos infligir dor para atingirmos a cura; são transportadores de notícias que nos aliviam o coração, mas muitas vezes comunicam-nos informações que nos tiram o chão; precisam muitas vezes de nos tocar para melhorarmos, mas acham-se frequentemente donos do nosso corpo, sem qualquer pedido de autorização; são o mais próximos que nós temos de Deus, mas têm - alguns - a mania que são deuses, intocáveis, inquestionáveis e indomáveis. E esta figura ambígua sempre me causou angústia. O meu medo não era ir ao médico propriamente dito - era ouvir o seu diagnóstico, aquilo que tinham de me fazer (o maior deles: onde e o quê que tinham de cortar?), perceber onde é que tinham de me tocar para resolver o problema.  

Hoje olho para trás e desejo profundamente que os últimos dez ou onze meses sejam uma fase já encerrada da minha vida, em que as entradas e saídas de hospitais eram semanais, muitas vezes diárias. Foi a chamada terapia de choque: passei de fugir dos médicos para estar sempre a correr atrás deles. Ainda assim, a figura do "doutor" não é algo com a qual já tenha feito as pazes. Porque se por um lado vi um outro lado da medicina, por outro lado os vilões que sempre temi continuam lá: vi-os, com a minha irmã, a olharem para o doente como algo que precisa de tratamento, independentemente do quanto lhe dói ou lhe custa. Como se não fosse um ser humano como eles. E ao dia de hoje ainda não os consigo ver como aliados... talvez nunca consiga. Para mim, com toda a dose de irracionalidade que isto tem, estarão sempre do lado do mal - ainda que vistam frequente e justamente a capa de heróis.

Mas sobre os maus da fita não vale a pena escrever. Este texto tem que ver com os bons - com os médicos que hoje têm o meu eterno respeito, admiração e gratidão. Médicos que não têm a obsessão pela cura, mas que estão em permanente atenção com o doente. Como se sente, aquilo que deseja, onde dói. Foi dos exercícios de maior altruísmo que vi na vida. Porque ser médico e curar é fácil - é aquilo que todos almejam, é a parte "boa" de ter estudado medicina; mas ser médico e encarar a morte como parte do processo natural da vida é só para alguns. E esses são especiais. São paliativistas.

E por isso, estranhamente, foi nos Cuidados Palitivos que encontrei o conforto e confiança na medicina que nunca antes tinha sentido. Foi com medo que trespassei pela primeira vez aquela porta de madeira (quem não?). Racionalmente já tinha feito as pazes com o local que parece ser o mais assustador do hospital (tirando os cuidados intensivos e a unidade de queimados, talvez?), com aquele nome e com a ideia do que lá vamos encontrar. Desde o início desta jornada do cancro que tratámos os paliativos como algo normal e que faziam parte do processo. Eram paliativos: para prolongar a vida, para dar qualidade aos dias que tínhamos pela frente, mas fora do sonho da cura.

Não vou mentir: o primeiro contacto foi penoso. Ainda fora da unidade, quando a minha irmã estava hóspede noutro serviço, vivi uma das conversas mais difíceis da minha vida, num dia que é hoje um borrão na minha memória, em que recordo apenas alguns detalhes dolorosos que tornaram aquelas 24 horas num dos piores dias da minha vida. (A verdade é que, hoje em dia, tenho difículdade em fazer um ranking: foram tantos os momentos maus, de profundo desespero, que já não consigo escalá-los.) Mas ouvir duas médicas a dizerem-nos a verdade daquilo que viam, sabiam e conheciam... foi duro. Muito duro. Faz parte daquilo que é ser paliativista: ser realista, ajustar a esperança àquilo que é realmente possível. Foi um reajuste de expectativas e de longevidade difíceis de engolir - ainda hoje, já tendo a minha irmã falecido, as lágrimas afloram quando relembro esse momento. Uma das coisas que mais me marcou foi ver, pelo canto do olho, o marido de outra paciente agachado no chão, a chorar, enquanto ouvia aquilo que estavam a dizer à minha irmã: porque as cortinas escondem a imagem, mas o som não fica contido por aquela redoma de pano. Todos ouvimos, todos sofremos, todos percebemos aquilo que nos estavam a dizer: o tempo era curto.

E o grande desafio de acompanhar alguém com uma doença terminal é ter a capacidade de mudar o chip rapidamente, não deixando a pessoa afogar-se em pensamentos que a levarão para o fundo do poço; temos de pensar e agir de forma célere, encontrando o outro lado da moeda que às vezes parece ter só uma face. Eu sabia que não podia ficar muito tempo a marinar naquela depressão, até porque o relógio não corria a nosso favor. E, depois de umas horas de choro e meditação em casa, percebi: não importa a quantidade de tempo, importa a qualidade. Eu não queria saber de expectativas de tempo, não queria saber de progressões da doença, não queria saber quanto pesava a minha irmã; queria era saber se a energia dela permitia que vivêssemos um dia bom, diferente, riscando coisas da nossa bucket-list. E, ultrapassada a fase do confronto com a realidade, esta é a segunda (e derradeira) parte de ser paliativista: mostrar o que ainda há para viver, lutar e dar qualidade de vida para lá chegar. Os médicos com quem tive a oportunidade de conviver tinham uma estranha capacidade de serem radicalmente frontais e dizerem as coisas mais duras, conseguindo simultaneamente ser doces, compreensivos e empáticos. Um mix mágico e raro - tão difícil de encontrar que não sabia ser algo passível de ser misturado. E quando vivenciei tudo isto na pele pensei: "se um dia fosse médica, era isto que queria ser".

Depois do baque inicial, conseguir mudar de perspectiva deu-me uma paz que não havia tido naqueles meses de pura luta. Não se tratava de baixar os braços: pelo contrário, era combater pela continuidade de dias bons. E ter à nossa disposição médicos que lutam connosco por essa qualidade de vida, que se preocupam realmente com o doente, que o vêem como um todo... é um luxo que eu não sabia que existia. Finalmente encontrei um médico que não tem de infligir dor para curar... porque o objetivo não é a cura. É a vida. Por mais curta que possa ser.

Num dos muitos dias que passámos na unidade - um dia por acaso especial, pois o meu irmão fez um concerto para os doentes que estavam lá internados - o enfermeiro-chefe disse-nos que os Cuidados Paliativos eram a unidade com mais vida do hospital. E isto pode soar estranho, mas a verdade é que ali a vida vive-se com outra intensidade: a intensidade com que todos os momentos devem ser vividos, atribuindo-lhes o seu real valor. As pequenas coisas deixam de ser pequenas: passam a ser o bálsamo dos nossos dias. E isso sim, é viver. 

É óbvio que esta passagem pelos Cuidados Paliativos moldou a minha vida. São locais que deixam marcas. Mudou a forma como olho para a medicina e como encaro os médicos. Trouxe ao de cima o quanto eu gosto de cuidar dos outros - o que é muito estranho, porque nunca gostei de toques, mas dei por mim a levantar e deitar pessoas estranhas e a dar-lhes a mão só para terem uns minutos de conforto. Alterou a minha forma de ver e lidar com a morte - foi a primeira vez que testemunhei a passagem de alguém - mas, acima de tudo, mudou a maneira como olho a vida. Conheço agora a sua efemeridade, a sua aleatoriedade e acho que percebo alguma coisa (do alto dos meus vinte e nove anos) sobre o seu valor. 

É uma realidade que preferia não ter conhecido - mas, tendo em conta que não tive escolha, estou agradecida à vida por me ter colocado tão boas pessoas no caminho e a oportunidade de aprender tanto. Não é algo que vá esquecer, nunca. O Serviço de Cuidados Paliativos do Hospital de São João será eternamente um local associado à dor de ir perdendo a minha irmã - mas também à oportunidade de viver mais um dia com ela. Será, sempre, uma família que não esqueceremos.

 

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Este texto é dedicado a todas as pessoas que frequentam os Cuidados Paliativos: os pacientes, os familiares, os médicos, os enfermeiros, os "extras" (psicólogos, padres, nutricionistas) e os auxiliares.

É para a minha irmã, que lutou como uma heroína e de quem tenho muitas saudades.

É para a Dra. Teresa, que terá a minha gratidão eterna.

É para a Diana, para D. Conceição, para a D. Lídia, para a D. Fátima, para a D. Cremilde, para o Sr. Bernardo e para todos os que fizeram companhia à minha irmã, partilhando o seu quarto mas também um pouco de si, e que marcaram não só aquela unidade mas, acima de tudo, aqueles que cruzaram o seu caminho.

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