Um mês de saudade
Faz hoje um mês da morte da minha irmã. E eu tenho saudades.
O tempo sana muita coisa, mas as saudades não são uma delas. A falta da presença física constata-se nas pequenas coisas, nos detalhes. O luto vem em ondas - tanto o mar está calmo como, do nada, de um pormenor se faz um tsunami.
Vejo o luto dos outros e, de facto, cada um tem o seu processo. A mim não me dá para os porquês e não ponho em causa as decisões tomadas durante aqueles oito meses; também não tenho remorsos do que fiz ou deixei de fazer com a minha irmã, tanto antes como depois de ela saber que estava doente. Estou serena com as decisões dela e com as minhas. Mas a mim, o que me pesa, são as memórias.
Há pouca coisa na minha vida que não se ligue à minha irmã, porque as minhas raízes cresceram em conjunto com as dela; é indiferente aquilo que eventualmente nos distanciava nos últimos anos, porque o que nos unia era um iceberg invisível e gigante que vem de tudo aquilo que ela me transmitiu e que fez de mim a Carolina que sou hoje. O monte de gelo que está por cima do iceberg, mais sujeito às intempéries da vida, podia ir variando... mas nunca, nunca o iceberg diminuiu de tamanho. E tudo o que fiz por ela e com ela neste ano foi tudo, tudo vindo de uma fístula profunda que se chama, simplesmente, de amor. Todo o iceberg é tecido por milhões de laços de amor, que são no fundo memórias e ensinamentos que ela me transmitiu e que agora vêm à superfície, por um canal que não se fechou e que vai trazendo ao de cima coisas que estavam lá escondidas há muito tempo.
Ultimamente sou assolada por canções que ela me cantava ("Era uma vez um cavalo que vivia num lindo carrossel, Tinha as orelhas furadas e a cabeça era feita de papel" ou a "De olhos vermelhos, e pelo branquinho, aos saltos bem altos, eu sou um coelhinho", com a qual me cruzei hoje) e a dor que isto causa é de uma dimensão que desconhecia. São coisas tão pequenas e aleatórias que são totalmente arrebatadoras. Todos os dias, vindo de um gatilho que até agora não era disparado, lá vêm uma ou duas memórias novas, que me atingem como tiros: porque não a posso ver, não lhe posso tocar, não a posso ouvir a cantar aquela canção da minha infância. A dureza da finitude, da incapacidade de realizar todos os pequenos atos, é por vezes incapacitante. E mais do que injustiça, tristeza ou zanga com a vida... o que me resta é uma saudade do tamanho desse iceberg que nos une.
Passado um mês, acho que faz sentido deixar aqui o texto que lhe escrevi e li no seu funeral. Gosto daquela ideia de cerimónia americana que vemos nos filmes, em que se tenta celebrar a vida em vez de a chorar. Tentei que aquele momento fosse uma ode à sua vida, sobre quem ela foi e aquilo que representa para mim, e não um reflexo da tristeza com que a sua doença e consequente partida nos deixou. Ao contrário do meu costume, tentei pontuar o discurso com algumas piadas e com uma leveza que a situação não refletia. Quando me perguntam como é que consegui ler isto sem uma única lágrima, eu digo que não sei. Mas sei que foi por ela: porque ela merecia um funeral que a celebrasse, que fosse lembrado, que fosse único. Tal como ela.
Antes de mais queria agradecer a presença de todos vós neste momento tão difícil para mim e para a minha família, assim como todo o apoio que nos foi dado ao longo desta jornada; agradecer também ao Sr. Padre por me disponibilizar este espaço para dedicar à minha irmã umas últimas palavras.
A Joana era uma mulher simpática, de sorriso fácil e um coração gigante. Era bondosa, intuitiva e generosa. Era linda - por dentro e por fora - e, para quem realmente a conhece, um ser especial. Também era teimosa, ciumenta e tantas outras coisas que normalmente não se mencionam nestas altura da vida; no entanto, o que importa é dizer que a balança era aqui muito desequilibrada, e pendia largamente para o lado positivo. A Joana era boa pessoa. E a verdade é que, dependendo do contexto em que a conheceram e das fases da vida em tiveram oportunidade de privar com ela, todos vós terão uma noção diferente daquilo que era a Joana, as suas qualidades e defeitos. Mas eu tenho uma noção privilegiada - porque a Joana não era a Joana para mim. Era a minha irmã. E sei que falo também pelo Zé e pelo João, dizendo que era uma irmã extraordinária, mas ela era a minha única irmã, tendo sido, desde sempre, muito mais que isso.
Acho que poderia resumir tudo isto com uma história breve: das muitas e tantas vezes que a chamei - para me limpar o rabo, para me ajudar a fazer os trabalhos de casa, para me chegar alguma coisa, para jogarmos um jogo, para tirar uma carraça a um cão ou simplesmente para a ter ao meu lado - o substantivo mana começou a ficar gasto. E, sem querer, lá me fugia a boca para a verdade: em vez de mana, saía-me um "mãena", uma mistura entre mãe e mana. O que, por si só, já explica bem a nossa relação.
Pelos dezasseis anos que nos distanciavam mas, acima de tudo, pela dedicação e o amor infinitos que me deu, a minha irmã foi a minha segunda mãe. Não me carregou no ventre, mas eu e ela teremos para sempre uma série de cordões umbilicais que jamais poderão ser cortados. Nem a morte tem esse poder. A minha irmã foi o primeiro amor da minha vida; foi a primeira e a única pessoa a quem eu pedi em casamento, porque na minha cabeça de criança era o que fazia sentido. Se o casamento é a união de duas pessoas que se amam, porque é que eu não podia casar com a minha pessoa preferida, aquela que eu amava com todo o meu coração? Foi ela que me explicou - como fez com tantas outras coisas da vida, umas mais difíceis que outras - que os irmãos não se podiam casar, que as coisas não funcionavam assim. Foi a tampa mais dura da minha vida.
Acho que é por causa da minha irmã que adoro animais - não só porque adormeci durante sete anos ao lado dela a ver o National Geographic mas porque foi ela que, por via do exemplo, me mostrou o que era a amar os nossos animais de estimação. Foi a minha irmã que me ensinou a apertar os cordões, ainda que de uma maneira que, ainda hoje, toda a gente goza comigo, pois eu era incapaz de dar o nó clássico como as pessoas normais. Era a minha irmã que me acompanhava aos médicos, os seres de quem tinha mais medo na vida, e me confortava enquanto agarrava as minhas mãos suadas. Era a minha irmã quem me penteava todos os dias de manhã e me fazia os dois puxinhos que tanto caracterizaram a minha infância. Foi com a minha irmã que dei os primeiros passos. Era a minha irmã que passava os níveis mais difíceis dos jogos de Playstation por mim, porque eu ficava frustrada e nunca conseguia. E ficaríamos por aqui horas se vos continuasse a dizer tudo o que ela fez por mim ao longo dos 29 anos que partilhámos.
Fiz questão de lhe dedicar estas últimas palavras porque, até há bem pouco tempo, achava que escrever era o meu maior talento. Mas entretanto descobri que cuidar da minha irmã foi não só a tarefa mais árdua da minha vida mas também aquela para a qual senti que estava genuína e instintivamente talhada. Nunca gostei de cuidar fisicamente dos outros, mas senti que ajudá-la a atravessar esta sua era uma tarefa minha. E tudo me saía tão naturalmente que houve alturas em que pensei que o destino existe mesmo, que esta tragédia estava escrita e que esta era hora de retribuir todo o amor e dedicação que ela me havia dado, principalmente nos primeiros anos da minha vida. E agora que a luta acabou, agora que ela não está mais aqui, volto para aquela que passou a ser a segunda coisa que tenho mais jeito para fazer: usar as palavras. E espero que ela as ouça.
Primeiro dizendo que sei que estás bem, meu amor. Finalmente em paz. Mas, acima de tudo, bem acompanhada, pelos avós que sempre e tanto te amaram e mimaram. Tenho a certeza que a D. Odete te recebeu com as tuas omeletes preferidas.
Segundo, relembrar que uma pessoa só morre quando a última pessoa que se lembra dela morre também. A minha irmã deixa uma herança enorme: não só os seus dois maravilhosos filhos mas também um conjunto gigante de memórias que lhe permitirá viver durante muitos anos no coração de muita gente. E, no que depender de mim, essas memórias serão tantas e tão cheias de amor que ela se tornará eterna.
Obrigada.
(Uma foto representativa da verdade do meu discurso: eu no pote, ela ao meu lado. Sempre. Para sempre.)