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Entre Parêntesis

Tudo o que não digo em voz alta e mais umas tantas coisas.

26
Out24

O fim de uma luta, o término de uma vida e o início de outra

A minha irmã morreu na terça-feira.

Foram oito meses de luta. Talvez, lendo isto, pensem: "caramba, foi tão rápido". Mas a verdade é que passou muito, muito lentamente. Sei que os relógios me vão contrariar, mas ninguém me tira da cabeça que alguns dos dias que vivi tiveram cerca de 129 horas. Eram intermináveis. Aquele pesadelo nunca mais terminava. A notícia boa nunca vinha, o alento nunca chegava. Os momentos maus foram imensos, incontáveis, indescritíveis, de uma dor que não consigo pôr em palavras. Mas, caramba, como desfrutei dos bons! Como vivi com ela! Como fiz dos momentos mais pequeninos as joias mais preciosas..!

E foi isso que me permitiu usufruir de uma tranquilidade que nunca achei possível aquando da sua morte. A minha irmã morreu em casa e eu soube que ela ia morrer. Eram três da manhã quando acordei repentinamente e o meu corpo se ergueu como se tivesse uma mola nos pés, sabendo claramente ao que ia. Quando fui até ao seu quarto percebi que ela já não estava no mesmo plano que eu. E é com muito orgulho que digo que, ainda que com ajuda dos meus irmãos, fui eu que decidi todos os pormenores das cerimónias que iriam celebrar a sua vida - e que bonito que foi! Porque mesmo na tristeza profunda, na dor e no luto pode haver beleza. A minha irmã estava linda e em paz da última vez que a vi, com o sorriso que lhe era tão característico. 

E da mesma forma que cuidei da minha irmã sem "se's" ou "mas" - ignorando opiniões alheias e não perdendo tempo naquilo que era ou não suposto ser o meu papel - foi assim que encarei os últimos dias do corpo dela em terra. Sei que as flores dos funerais são normalmente brancas, mas posicionei estrategicamente todos ramos coloridos que lhe haviam traziado em cima e à frente do caixão. Quis ir para as cerimónias fúnebres com roupas de cor (era, provavelmente, a única pessoa da igreja com um vestido vermelho às flores - um ultraje!, terá pensado a beata e outros tantos, mas não é isso que alguma vez me tirará o sono à noite). Quis ler no seu funeral uma homenagem, porque não queria que aquele fosse um momento igual aos outros. A minha irmã era, para mim, sinónimo de cor e sol; de algo especial e marcante. E eu tentei fazer com que estes últimos momentos fossem um reflexo disso. Não fazia sentido ir de preto quando aquilo que ela me ensinou foi a ver o arco-íris todo; não fazia sentido chorar quando ela me proporcionou dos momentos mais felizes da minha vida.  

Muitos acharão que a minha forma de estar durante aqueles dois dias eram uma capa, uma defesa. Sei que pensam que o meu sorriso era um muro que acabaria por desabar em casa ou nos dias seguintes. Mas saibam que foi tudo genuíno - o que não implica que, quando eu me aperceber que não posso ligar à minha irmã para contar um evento da minha vida ou que quando vir o seu lugar da mesa vago aquando de uma celebração ou aniversário, não irei desabar. Mas a minha postura leve e pouco chorosa daqueles dias foi o espelho da paz de espírito que vai na minha alma; a paz de quem acredita que fez tudo, tudo, tudo o que podia ter feito. E a serenidade de saber que tinha de a deixar ir. Porque esse talvez seja o supremo ato de amor - largar a mão, pôr a nossa vontade de parte e dizer: vai. 

Não fazia sentido eu não partilhar isto aqui no blog - primeiro por respeito às pessoas que têm acompanhado os parcos desenvolvimentos que aqui deixei e que clara e facilmente perceberam que algo muito destruturante se estava a passar na minha vida, mas também por respeito à história deste que acaba por ser o livro aberto da minha vida. Há treze anos que aqui escrevo, que partilho alegrias e depressões, e sentia-me na obrigação de aqui registar a maior tristeza desta minha jornada de vinte e nove anos: a minha irmã morreu. A Joana. A minha, e eterna, mana.

Esta luta - sem dúvida a maior da minha vida - acabou, o que não significa que isso se reflita no fim de um capítulo aqui no blog. O poder e o impacto do cancro e da partida da minha irmã foram cravados a ferro quente na minha alma e isso não são feridas que se possam ignorar. Há ainda um texto importante, já meio escrito, que quero partilhar... mas eventualmente, ao longo do caminho, surgirão outros, onde certamente a saudade será o ponto central. Talvez, também, seja pertinente explicar a forma como cheguei até aqui - é provável que soe a cliché, mas posso tentar descrever a maneira como percorri o caminho de forma a ir fazendo um luto pacífico, usufruindo do percurso e não me focando simplesmente na crueldade deste destino. Quiçá partilhe o elogio fúnebre que lhe escrevi. E que, pelo meio, volte ao meu registo habitual (ainda há o roteiro de uma viagem à Islândia para terminar). 

Quinta-feira, depois de todas as cerimónias oficiais, ainda fomos enterrar as suas cinzas. No entanto, foi o primeiro dia depois de todas "obrigações" e protocolos habituais que um evento destes acarreta. E, mal acordei, surgiu logo na minha cabeça uma música de que nem sequer gosto particularmente mas que não me deixou o cérebro em paz: Sérgio Godinho não parecia cansar-se de me cantar ao ouvido de que "hoje é o primeiro dia do resto da tua vida". Uma vida que eu não queria estar a viver mas que vou ter de aprender a navegar.

Porque a verdade é que uma vida se perdeu no dia 22 de Outubro de 2024, mas eu não quero que a minha se perca também no meio do luto e de uma dor sem fim. Sei que não é isso que a minha irmã quereria para mim. Por isso, quero viver por mim e por ela. Quero saborear, ainda que sinta que estou a comer uma goma ácida. Só o futuro o dirá, mas é possível que fique para sempre com um amargo de boca. Que isso, no entanto, não me impeça de testar novos sabores, de comer a minha comida preferida e de sempre, sempre, sempre ir comendo. Vivendo. Seguindo. Lutando. Agora com a garantia de que ela está comigo. Sempre. Para sempre. Porque a morte, sendo o sinónimo de tudo o temos de mais temível e terrível nesta vida, leva muita coisa mas não tem a capacidade de quebrar um amor destes.

 

"Em fim de uma escolha faz-se um desafioEnfrenta-se a vida de fio a pavioNavega-se sem mar sem vela ou navioBebe-se a coragem até dum copo vazioE vem-nos à memória uma frase batida

Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida"
 
 

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Joana Gonçalves Lemos, o primeiro amor da minha vida

27/01/1979  //  22/10/2024

13
Out24

O que o cancro nos ensina

A Carolina de 28 anos via o cancro como uma doença dos outros. Era uma coisa distante, que eu sabia que existia, que imaginava ser difícil, mas que (ainda) não me tocara. Partilhava a pena, a esperança, a vontade de que as coisas fossem diferentes e que aquelas pessoas não tivessem que passar por tanto... mas não sabia nada. Até ao dia em que aconteceu. Até ao dia em que aprendi que na gíria médica não se diz cancro, mas que os nomes são mais pomposos, difíceis e específicos para quem entende da matéria, que podem ir de neoplasia a melanoma (entre tantos outros que não me lembro ou prefiro esquecer), mas que para nós, leigos, querem todos dizer aquela palavrinha curta mas que tem claramente forma de monstro. Até os meios de comunicação social lhe fogem, chamando-lhe "doença prolongada". Mas, quando ele aparece, não há volta senão enfrentarmos aquelas seis letras. Cancro. 

Ontem, num scroll do instagram, apareceu-me um trecho de uma entrevista do Manuel Luís Goucha a uma convidada que tinha vencido esta doença e que dizia que não tinha aprendido nada com ela. Na secção de comentários batiam-se palmas àquela afirmação e apregoavam alto contra a romantização de tudo o que envolve o cancro.

Não tenho o direito de me opor à opinião de alguém que viveu aquilo na pele. Mas posso falar como cuidadora de primeira linha de não um, mas dois casos, que foram diagnosticados no espaço de três meses. E aquilo que tenho para vos dizer é o seguinte: eu aprendi muito. Aprendo, todos os dias. E mais importante do que aprender coisas práticas - a gíria, os exames, o nome dos medicamentos, os corredores do hospital, a fazer pensos, a colocar catéteres ou manusear sistemas de soro - foram os ensinamentos de base. Foram mudanças nas minhas crenças de vida. Sei que isto vai soar muito cliché, mas é a mais pura das verdades: foi a forma como vivo - porque tenho um relógio a bater o seu tic-tac constantemente no meu ouvido e que me obriga a aproveitar as pequenas coisas da pessoa de quem cuido. Nunca uma ida a um shopping soube tão bem, nunca um banho com música e karaoke foi tão nostálgico e feliz, nunca um sorriso foi tão valorizado. Sei que este não é um sentimento que vá durar para sempre; que no futuro - um futuro que, desculpem, eu não quero imaginar - a minha vida voltará a normalizar e os banhos voltarão a ser a rotina obrigatória e rápida que eram antes e que a ida a um shopping uma mera tarefa a riscar da lista. Eu sei que esta sensação de finitude não dura para sempre. Mas até a finitude levar quem eu amo, eu sinto-a na pele. E obrigo-me a viver e a aproveitar cada coisa pequena, e a valorizá-la como um diamante.

Mas, para além disso, acho que há um ensinamento que vai mudar o rumo da minha vida e que não creio que vá esquecer. A ideia era, no futuro, fazer um texto só sobre isto, mas parece-me pertinente abordá-lo agora. O que mais se alterou, aos meus olhos, foram as pessoas. Não a forma como olham para mim ou para as debilidades daqueles que eu amo, mas a maneira como eu as olho a elas. Se há um ano dizia, com facilidade, que detestava pessoas, acho que hoje não posso dizer o mesmo. 

Descobri empatia em lugares que achava não existirem; olhares compassivos, pessoas que querem realmente ajudar. Também percebi que há dias maus para todos nós e que temos de os respeitar - mas que se calhar aquilo que vemos no trânsito, nas bancadas de futebol e na generalidade das notícias é um alter-ego que todos temos e que, em alguns lugares ou situações, toma posse de nós. Porque no fundo - ou talvez não tão lá no fundo - há muitas pessoas boas. Gentis. Amáveis. Com preocupação genuína pelo outro. Que, dentro das suas possibilidades e regras, nos ajudam. Guardo, nas minhas muitas passagens pelo Hospital de São João, muitos exemplos de gestos que, ainda hoje, me comovem: desde o segurança das urgências a ir buscar uma máscara específica para colocar na minha familiar, aos colaboradores que me davam praticamente livre passe quando eu dizia "paliativos" de cada vez que tirava senha de visita (um beijinho especial para a Anabela), aos médicos que me deram a mão e me abraçaram em momentos em que as lágrimas me corriam inevitavelmente pela cara. 

Em resumo, aquilo que vos posso dizer é o seguinte: não sei ao certo o estado em que entrarei nos 30 anos, daqui a cerca de seis meses. Hoje em dia não tenho hipótese senão viver um dia de cada vez, sempre num cansaço que roça o extremo mas que se contraria devido a uma força e energia que, não sabendo ao certo de onde vêm, terá a sua génese no amor e dedicação profundos que dediquei a esta causa e à pessoa de quem cuido. Mas sei que, comparando com a miúda de 28 anos que entrou nesta jornada às cegas - ainda que enquanto acompanhante -, aprendi muito. Vou ser - já sou - uma pessoa diferente. Mais magoada com a vida, algo amargurada quiçá, com menos fé no divino. Com mais experiência e um leque de conhecimentos muito mais vasto nos mais variados temas. Com outras crenças. E, como tal, diferente. E se isso não é uma aprendizagem, o que será?

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