O fim de uma luta, o término de uma vida e o início de outra
A minha irmã morreu na terça-feira.
Foram oito meses de luta. Talvez, lendo isto, pensem: "caramba, foi tão rápido". Mas a verdade é que passou muito, muito lentamente. Sei que os relógios me vão contrariar, mas ninguém me tira da cabeça que alguns dos dias que vivi tiveram cerca de 129 horas. Eram intermináveis. Aquele pesadelo nunca mais terminava. A notícia boa nunca vinha, o alento nunca chegava. Os momentos maus foram imensos, incontáveis, indescritíveis, de uma dor que não consigo pôr em palavras. Mas, caramba, como desfrutei dos bons! Como vivi com ela! Como fiz dos momentos mais pequeninos as joias mais preciosas..!
E foi isso que me permitiu usufruir de uma tranquilidade que nunca achei possível aquando da sua morte. A minha irmã morreu em casa e eu soube que ela ia morrer. Eram três da manhã quando acordei repentinamente e o meu corpo se ergueu como se tivesse uma mola nos pés, sabendo claramente ao que ia. Quando fui até ao seu quarto percebi que ela já não estava no mesmo plano que eu. E é com muito orgulho que digo que, ainda que com ajuda dos meus irmãos, fui eu que decidi todos os pormenores das cerimónias que iriam celebrar a sua vida - e que bonito que foi! Porque mesmo na tristeza profunda, na dor e no luto pode haver beleza. A minha irmã estava linda e em paz da última vez que a vi, com o sorriso que lhe era tão característico.
E da mesma forma que cuidei da minha irmã sem "se's" ou "mas" - ignorando opiniões alheias e não perdendo tempo naquilo que era ou não suposto ser o meu papel - foi assim que encarei os últimos dias do corpo dela em terra. Sei que as flores dos funerais são normalmente brancas, mas posicionei estrategicamente todos ramos coloridos que lhe haviam traziado em cima e à frente do caixão. Quis ir para as cerimónias fúnebres com roupas de cor (era, provavelmente, a única pessoa da igreja com um vestido vermelho às flores - um ultraje!, terá pensado a beata e outros tantos, mas não é isso que alguma vez me tirará o sono à noite). Quis ler no seu funeral uma homenagem, porque não queria que aquele fosse um momento igual aos outros. A minha irmã era, para mim, sinónimo de cor e sol; de algo especial e marcante. E eu tentei fazer com que estes últimos momentos fossem um reflexo disso. Não fazia sentido ir de preto quando aquilo que ela me ensinou foi a ver o arco-íris todo; não fazia sentido chorar quando ela me proporcionou dos momentos mais felizes da minha vida.
Muitos acharão que a minha forma de estar durante aqueles dois dias eram uma capa, uma defesa. Sei que pensam que o meu sorriso era um muro que acabaria por desabar em casa ou nos dias seguintes. Mas saibam que foi tudo genuíno - o que não implica que, quando eu me aperceber que não posso ligar à minha irmã para contar um evento da minha vida ou que quando vir o seu lugar da mesa vago aquando de uma celebração ou aniversário, não irei desabar. Mas a minha postura leve e pouco chorosa daqueles dias foi o espelho da paz de espírito que vai na minha alma; a paz de quem acredita que fez tudo, tudo, tudo o que podia ter feito. E a serenidade de saber que tinha de a deixar ir. Porque esse talvez seja o supremo ato de amor - largar a mão, pôr a nossa vontade de parte e dizer: vai.
Não fazia sentido eu não partilhar isto aqui no blog - primeiro por respeito às pessoas que têm acompanhado os parcos desenvolvimentos que aqui deixei e que clara e facilmente perceberam que algo muito destruturante se estava a passar na minha vida, mas também por respeito à história deste que acaba por ser o livro aberto da minha vida. Há treze anos que aqui escrevo, que partilho alegrias e depressões, e sentia-me na obrigação de aqui registar a maior tristeza desta minha jornada de vinte e nove anos: a minha irmã morreu. A Joana. A minha, e eterna, mana.
Esta luta - sem dúvida a maior da minha vida - acabou, o que não significa que isso se reflita no fim de um capítulo aqui no blog. O poder e o impacto do cancro e da partida da minha irmã foram cravados a ferro quente na minha alma e isso não são feridas que se possam ignorar. Há ainda um texto importante, já meio escrito, que quero partilhar... mas eventualmente, ao longo do caminho, surgirão outros, onde certamente a saudade será o ponto central. Talvez, também, seja pertinente explicar a forma como cheguei até aqui - é provável que soe a cliché, mas posso tentar descrever a maneira como percorri o caminho de forma a ir fazendo um luto pacífico, usufruindo do percurso e não me focando simplesmente na crueldade deste destino. Quiçá partilhe o elogio fúnebre que lhe escrevi. E que, pelo meio, volte ao meu registo habitual (ainda há o roteiro de uma viagem à Islândia para terminar).
Quinta-feira, depois de todas as cerimónias oficiais, ainda fomos enterrar as suas cinzas. No entanto, foi o primeiro dia depois de todas "obrigações" e protocolos habituais que um evento destes acarreta. E, mal acordei, surgiu logo na minha cabeça uma música de que nem sequer gosto particularmente mas que não me deixou o cérebro em paz: Sérgio Godinho não parecia cansar-se de me cantar ao ouvido de que "hoje é o primeiro dia do resto da tua vida". Uma vida que eu não queria estar a viver mas que vou ter de aprender a navegar.
Porque a verdade é que uma vida se perdeu no dia 22 de Outubro de 2024, mas eu não quero que a minha se perca também no meio do luto e de uma dor sem fim. Sei que não é isso que a minha irmã quereria para mim. Por isso, quero viver por mim e por ela. Quero saborear, ainda que sinta que estou a comer uma goma ácida. Só o futuro o dirá, mas é possível que fique para sempre com um amargo de boca. Que isso, no entanto, não me impeça de testar novos sabores, de comer a minha comida preferida e de sempre, sempre, sempre ir comendo. Vivendo. Seguindo. Lutando. Agora com a garantia de que ela está comigo. Sempre. Para sempre. Porque a morte, sendo o sinónimo de tudo o temos de mais temível e terrível nesta vida, leva muita coisa mas não tem a capacidade de quebrar um amor destes.
"Em fim de uma escolha faz-se um desafio
Enfrenta-se a vida de fio a pavio Navega-se sem mar sem vela ou navio Bebe-se a coragem até dum copo vazio E vem-nos à memória uma frase batidaJoana Gonçalves Lemos, o primeiro amor da minha vida
27/01/1979 // 22/10/2024