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Entre Parêntesis

Tudo o que não digo em voz alta e mais umas tantas coisas.

22
Fev23

Chávena de Letras: "I'm Glad My Mom Died"

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Este é um livro necessário. Na verdade, só o prólogo diz tudo aquilo que muitos precisamos de saber - embora o que está para trás seja igualmente valioso.

Aquilo que Jannette McCurdy evidencia é algo que, no fundo, todos sabemos - mas é uma verdade pouco proliferada (e até pensada): o papel de mãe é o mais romantizado da história. As mães são sempre heroínas, são sempre boas, sempre bem-intencionadas, são sempre incríveis... Só que não. Porque há más mães. Há mães que vendem os filhos; há mães que os matam. E há mães que maltratam, mesmo quando parece que não o fazem - que era o caso da mãe de Jannete.

Na narrativa desta história percebemos que tudo aquilo pelo qual a autora passou foi feito sob a ideia de que era para o seu bem: as invasões ao ser corpo eram para garantir que não tinha nódulos, a obrigação de trabalhar era para ter uma boa vida e ser feliz, ter de ser magra e pequenina tinha como propósito garantir papéis por muito mais tempo. Tudo para o seu bem. Mas será mesmo o "seu" bem? Ou o bem da sua mãe - ou, simplesmente, para bel-prazer da sua progenitora?

Este foi o primeiro audiolivro que ouvi e gostei muito da experiência. A linguagem utilizada é acessível para quem estiver familiarizado com o inglês (não é preciso ser especialista) e a forma de falar de McCurdy (sendo que o livro é narrado por ela) ainda nos envolve mais na narrativa, uma vez que ela imita as vozes e os sotaques das personagens de quem fala. Esta é a sua história de vida, desde o momento em que começou a fazer castings (passando pelos anos em que fez um programa de sucesso no Nickelodeon) até à altura em que a mãe morreu, quando já tinha enveredado por caminhos mais tortuosos como o alcoolismo e anorexia (entre outros); é a forma de como lidou com tudo o que vivenciou e da forma que arranjou para, depois, conseguir gerir tudo isso.

Apesar de ter adorado o mote do livro e a conclusão a que chega, há dois apontamentos curiosos que quero fazer: 1) não conhecia o trabalho (nem a imagem) da autora, mas por alguma razão não consegui simpatizar com ela - muito embora tenha uma enorme empatia pelo que passou; isto faz com que o livro tenha ainda mais valor para mim - porque o adorei apesar do que senti em relação a quem o escreveu; 2) não acho que o título do livro faça jus à história. Acho que foi escolhido por ser "chocante" e para atrair leitores, mas em nenhuma parte da história ela se mostra feliz pela morte da mãe - é tudo muito mais profundo que isso, e essa complexidade está bem espelhada em todas as páginas do livro. Tudo é pouco linear, tudo é de difícil leitura e análise, escondido por detrás de dogmas, boas intenções e tantas outras ideias pré-concebidas da maternidade - e por isso seria muito difícil resumir tudo num sentimento tão "simples".

Aconselho muito - e em particular o audiobook.

 

(este livro acabou de ser editado pela Lua de Papel, em português, sob o nome "Ainda Bem Que a Minha Mãe Morreu")

06
Fev23

Uma ode ao meu irmão mais velho (e aos outros também, mas este em particular)

A família sempre teve um papel preponderante na minha vida. Com uma personalidade e vida que não se coadunavam com grandes amizades, era muitas vezes o sangue  que ditava quem me era mais próximo. Na verdade, tudo se proporcionava nesse sentido: eu, muito adulta para a minha idade, escutava as conversas à mesa (e tentava entrar nelas) como gente grande - acabando por me distanciar dos outros miúdos, com brincadeiras pouco sérias e levianas; sempre estive rodeada por muita gente, tendo um núcleo familiar alargado, com irmãos e respetivos namorados com quem sempre me dei lindamente; e, indo para além da família direta, tinha uma relação estreita com tios e primos. Para além de tudo mais, sempre tive uma veia solitária, por isso a minha família era praticamente tudo o que me bastava para ser feliz. Este círculo invadia até a escola, pois duas das minhas primas estudaram comigo, na mesma turma, até à adolescência. Sempre juntas, tínhamos uma base que nos unia e que, principalmente entre os dez e os treze anos, chamavam à atenção dos que estavam à nossa volta, tanto crianças como adultos. Recordo quatro pontos em particular:

1) Não éramos só as "três primas" - na verdade chegamos a ser seis primos na mesma escola. E quem ainda tem a memória fresca do liceu recordar-se-á bem do charme que é estar no fim da cadeia alimentar (vulgo: sétimo ano) e ver a malta do 12º (o topo da pirâmide), apontar e dizer: "aquele é meu primo". Na loucura, até podíamos passar e dizer um olá - e só isso já bastava para sermos um bocadinho fixes e, claro, termos uma proteção extra no que aos problemas-de-recreio diz respeito. Isto com um primo. Agora imaginem seis. Éramos quase a família real.

2) Outra curiosidade é que todos tínhamos o mesmo encarregado de educação - e todos éramos impreterivelmente chamados à atenção de cada vez que escrevíamos o nome dele nas nossas fichas pessoas. Não porque estivéssemos errados, mas porque a pessoa em causa tem duas vezes "Santos" no nome - uma feliz coincidência causada por um "casamento homónimo", mas que levanta sempre questões.

3) Outra das ações de charme que lançávamos era termos uma "música de família". Foi uma coisa inventada há muitos anos pelo meu avô materno, que normalmente entoamos nos aniversários como forma de união. Foi passando de geração em geração e, de tanto ouvirmos, a música vai ficando no ouvido. Tem uma letra inventada - com uma espécie nova linguagem, cheia de onomatopeias estranhas - e que sempre causou muita curiosidade. "Como é que conseguem decorar isso tudo?", perguntavam-nos vezes sem conta. Nem nós sabíamos - mas gostávamos de a mostrar aos outros, e toda a gente ficava pasmada como cantávamos, todas, a letra indecifrável de forma tão coordenada;

4) Por fim, espantávamos toda a gente com os números da família (grandes e sempre em crescendo) e com as nossas reuniões familiares - primeiro porque éramos trinta e tal no Natal e depois porque nos juntávamos muitas vezes, algumas sob pretextos que já na altura não eram muito comuns, como a matança do porco ou a desfolhada do milho. Mas era para mim que vinha o destaque quando entrávamos mais em detalhe sobre o nosso núcleo familiar. Somos quatro irmãos (algo que na minha geração já não é assim tão normal) e eu sou a mais nova. Muito mais nova. E a jóia da coroa era quando, já sabendo o contexto dos meus colegas, lhes dizia que tinha um irmão que era mais velho que os seus pais. 

E é sobre este último tópico que venho falar hoje.

Quando nasci, o meu irmão tinha 22 anos. Os outros dois, apesar de mais novos, já eram também graúdos: 15 e 16 anos. Mas o meu irmão mais velho podia ser, efetivamente, ser meu pai. 

Em muitas famílias - nas que têm sorte - há normalmente duas camadas de pais: os que são efetivamente pais e os "pais-pais", os avós. É uma dupla camada de apoio, de ajuda à educação e, claro, uma duplicação do mimo. Eu, infelizmente, não tive isto: os meus avós maternos faleceram cedo e os paternos, embora ainda tenham durado até praticamente aos meus vinte anos, tinham um gap geracional que não permitia grandes proximidades ou brincadeiras. No entanto, e por um golpe de sorte incrível, eu tive, ainda assim, esta duplicidade parental - os meus irmãos. Eram eles que cuidavam de mim quando os meus pais não estavam ou não podiam - e faziam-no com uma responsabilidade e um carinho sem igual, muito por culpa de eu ter sido uma irmã tão tardia. Do ponto de vista meramente biológico, eu podia ser filha de qualquer um deles - e eles trataram-me e amaram-me como tal. 

Podia achar-se que a diferença de idades nos acabaria por separar, mas a verdade é que isso nunca aconteceu. Até todos eles terem filhos, fingiam comigo: um levava-me ao cinema aos fins-de-semana, outra fazia os trabalhos de casa comigo enquanto eu chorava baba e ranho, outro dava-me bolas de futebol autografadas pelos jogadores do Porto e uma trotinete elétrica na altura em que ainda não eram comuns ou estavam na moda. Era mimada e educada por eles como se fosse, efetivamente, deles. E isso é uma dívida que eu terei sempre para com eles - e para com os meus pais, por me terem proporcionado tal sorte.

Teria palavras simpáticas e de amor profundo para com os três, mas hoje dedico-as ao mais velho em particular. Porque hoje é um dia importante, pois festeja o seu 50º aniversário. E isso significa que está na terra, há meio século, uma pessoa deveras especial.

Este era o irmão que, em conjunto com a sua namorada (hoje mulher, hoje minha irmã por osmose), me levava ao cinema com os meus primos; foi o que me levou ao meu restaurante favorito (e caro) quando os meus pais foram jantar fora com uns amigos; foi quem me permitiu ir com ele escolher o enxoval do seu primeiro filho mais velho, como se eu tivesse sequer de opinar; foi o que sempre me levou a sério e me deixou até, em muito tenra idade, embrulhar as loiças de sua casa quando se mudou. Também foi aquele que me disse vezes sem conta para não pôr os pés nos assentos quando entrasse no seu Opel (caso contrário teria de o aspirar), que me disse repetidamente que juntaria prontamente leite no iogurte sólido para que este virasse iogurte líquido quando o que eu pedia era um iogurte líquido (de compra!!!). Foi também ele que perpetuou, durante anos, uma espécie de bullying devido à forma como comia bananas e entrava nos automóveis.  (Todas estas últimas eu estou disposta a esquecer.) No passado, foi tudo isto.

Hoje, é a primeira pessoa a quem ligo quando tenho um problema no carro. Ou em casa. Ou na fábrica (quer seja em questão de finanças, recursos humanos ou tecnologia). Hoje é a pessoa que me aquece o estômago quando a alma está mais triste e é um dos meus companheiros semanais de padel. É o meu braço direito no trabalho, a todas as horas e aflições. É um conselheiro e um amigo sem igual.

O Zé Paulo é a pessoa mais consensual que eu conheço - de todas as pessoas que já conheci em toda a vida. Ainda estou para descobrir alguém que não goste dele - porque será algo digno de verdadeira análise. É o indivíduo mais requisitado de todos os tempos (porque não sou a única a ligar-lhe quando tenho um problema no carro, no frigorífico ou no computador) e tem uma paciência e uma disponibilidade sem igual para todas estas solicitações. É ponderado e calmo. Tem um grupo de amigos que me inspirada e mete inveja (daquela boa, se é que existe, não é Bambi?). E, no meio disto tudo, sempre arranjou tempo para as suas verdadeiras paixões - a mulher e os filhos, os carrinhos e os aviões e agora a mota.

É uma inspiração - e, muitas vezes, a minha força. É uma das minhas pessoas. Uma das que amo, das poucas que verdadeiramente adoro. Que, ao contrário do que possa parecer, não tenho nem palavras para descrever.

Parabéns, Zé. Sonho contar mais 50 na tua companhia. És a nossa sorte grande. 

 

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