A palavra do meu ano
con·sis·tên·ci·a
(latim consistentia, -ae, plural neutro de consistens, -entis, particípio presente de consisto, -ere, pôr-se, instalar-se, parar, demorar-se, estabelecer se, insistir, ficar, suspender, ser de determinada natureza, basear-se)
1. Estado ou qualidade daquilo que é consistente. ≠ INCONSISTÊNCIA
2. Firmeza.
3. Estabilidade.
Utilizamos muitas vezes o método da comparação para classificar os nossos anos; temos tendência para os contrapor com os anterior, para perceber o que foi melhor e pior. Mas a verdade é que apesar de sentir que 2022 não foi brilhante, não o consigo rotular como mau. Talvez ajude o facto de 2021, o ano em que a memória ainda está mais fresca, ter sido o meu annus horribilis, em conjunto com 2008. Mas percebo hoje que a forma como analisamos os anos - ou, aliás, como vivemos as coisas enquanto elas estão a acontecer - tem muito mais que ver com a nossa forma de estar e de processar os acontecimentos do que propriamente com os eventos per se. 2021 foi, para mim, recheado de momentos significativos e muito importantes, que normalmente entram diretamente para o nosso top 10 de vivências felizes - mas a verdade é que foi um ano muito duro para mim. Infeliz, mesmo. Já 2022 foi um ano desafiante, sem grandes eventos imponentes a listar - provavelmente até recheado de várias coisas menos positivas -, mas cuja vivência foi muito mais pacífica.
Algures no início de Dezembro comecei a pensar na palavra que resumiria este ano - e não demorei muito a escolher. Consistência veio-me logo à cabeça e pareceu-me uma palavra tão boa como qualquer outra. Não é das que mais usamos nestes casos; temos tendência a recorrer a adjetivos - "bom", "triste", "espetacular", "calmo" - mas a verdade é que em 365 dias temos tempo para sentir todos os adjetivos e mais algum - mas é talvez nos nomes comuns que encontramos o meio termo, o equilíbrio, a média dos nossos dias. E consistência soa-me tão bem! Soa-me equilíbrio, a estabilidade, à capacidade de mantermos constante a linha condutora da nossa vida. Soa-me a vitória, porque no fundo é isso que eu quero para mim: uma linha certa, sem grandes altos e baixos, que acima de tudo reflita paz.
É lógico que não controlamos os acontecimentos que nos rodeiam - e se abrimos alegremente a porta aos eventos felizes, evitaríamos de certeza os mais tristes. Mas aquilo que de alguma forma controlamos é a maneira como gerimos todos eles - e eu acho que fui muito bem sucedida nessa gestão do dia-a-dia, em amortecer e relativizar o impacto das coisas más e saborear as boas.
2022 foi um ano desafiante, fortemente marcado pelo trabalho, que incutiu na maioria dos dias uma pressão terrível. As preocupações estiveram sempre nos píncaros - os primeiros três meses com a corda no pescoço com risco de fechar, os três seguintes em desespero para conseguir corresponder a encomendas, os três últimos a tentar gerir clientes difíceis. Isto no meio de uma crise energética brutal - com preços como nunca pagámos! - a juntar à inflação que na indústria já se antevia há mais tempo, culminando num clima em que se torna quase impossível fazer negócios, sem saber o que vamos pagar no dia seguinte. Foi também um ano de mudança para mim, na fábrica; sinto que passados quatro anos de lá estar, deixei de ser meramente um acessório, para ser uma peça que faz falta - e se isso é bom, sentir-me finalmente útil numa estrutura que é minha, também me rouba muita da liberdade que tinha até então, em que a minha função tinha muito de administrativo. Na verdade, foi o reflexo do ano: difícil, em que todos tivemos de pôr mãos à obra, obrigados a mudar para conseguir crescer - ou simplesmente para conseguir simplesmente continuar. Foi um ano de luta - mas em que aquilo que se retira foi a capacidade de subsistir e de, no final de contas, crescer. Hoje entro na minha fábrica e vejo um espaço mais limpo, mais organizado e com mais método; vejo mais duas máquinas no nosso cardápio; vejo mais gente a trabalhar; e vejo uma líder mais capaz.
De um ponto de vista pessoal, fui consistente nos meus treinos semanais - cinco em média, quatro numa semana má - que é, provavelmente, a coisa de que mais me orgulho. Conseguir manter um hábito destes, que é sempre feito em esforço, durante um ano inteiro é obra. Mas a verdade é que se antes eu não queria subir para a bicicleta, o que eu hoje não quero é perder o hábito que tanto me custou a adquirir - e à luz desse medo que continuo, todos os dias, a treinar. Estou ainda a aprender a distinguir os dias em que o corpo pede descansos daqueles em que só está cheio de preguiça - e quero que 2023 seja o ano de uma melhor gestão a este nível. Combater os dias em que não apetece, mas aceitar aqueles em que as pernas não têm mesmo forças.
O exercício físico é o que mais envaidece neste ano, mas há outras quatro coisas de que me orgulho muito: ter mantido as aulas de piano, ter conseguido ler mais do que um livro por mês, ter feito uma dieta bem sucedida, equilibrada e sem exageros e ter mantido a terapia.
Em relação ao piano, pensei muitas vezes em desistir - porque são várias as aulas que tenho de faltar para ir para a fábrica e ainda mais aquelas que faço com a mente em todos os problemas que tenho de resolver quando for para lá; sinto-me muitas vezes triste por perceber que não evoluo como gostaria, que não toco tanto como deveria; por olhar para os meus antigos colegas de turma e perceber que cresceram muito mais do que eu, porque se dedicam verdadeiramente àquilo. Gostava que o piano fosse aquilo que era para mim antes - não só uma coisa bonita de se ouvir, mas também uma fonte de prazer e de convívio. A verdade é que apesar de ter esta vontade no meu top of mind, e de saber que gostava de integrar melhor este hábito no meu dia-a-dia, ainda não consegui - mas ainda não desisti, o que só de mim faz de mim orgulhosa, porque seria muito mais fácil deitar a toalha ao chão e dizer que não dá. Consistência também é não desistir, certo?
Ao contrário do piano, este ano encontrei um lugar para os livros - e estou em êxtase com o facto de ter retomado alguns hábitos de leitura! Não li muito - 13 livros é pouco para o que já li e ínfimo comparado com algumas pessoas que eu conheço - mas, em confronto com o que havia lido nos últimos anos, é imenso. Foi uma luta para conseguir readquirir o hábito (deixei aqui dicas que me ajudaram) mas consegui - e é uma vitória enorme, a todos os níveis: porque me estimula e enriquece a escrita, porque me relaxa e me permite desligar dos problemas, porque me faz passar menos tempo nas redes sociais e porque era um objetivo meu há vários anos. Não quero arriscar, mas acho que 2023 promete neste âmbito: para além de ter várias livros ótimos na prateleira, o meu pai-marido-Natal deixou-me um Kobo no sapatinho e eu estou rendida.
Acho que a dieta que eu e o Miguel fizemos no segundo trimestre do ano também é digna de menção - perdi dez quilos (ele doze) e notou-se uma melhoria de vida significativa (e uma melhor relação com o espelho), não só pelas mudanças na alimentação mas também por estarmos a fazer desporto de forma regular. No verão a coisa vacilou mas aguentamo-nos... pior tem sido agora no Natal - mas prometemos a nós mesmos que no início do ano voltamos a limpar a cozinha para voltar aos velhos hábitos. Eu já ganhei de volta alguns quilos que quero perder (no meu caso, não é preciso muito mais que engolir ar para engordar um par de kg) e estou a interiorizar que a rebaldaria-alimentar está mesmo no fim e que vou ter de voltar a comportar-me daqui a dias. Uma alimentação regrada vive num paradoxo difícil de resolver: por um lado sentimo-nos melhor fisicamente, mas por outro a ideia de constante restrição é muito complicado de gerir - e eu sofri muito nas primeiras duas semanas de dieta, em que chorava e sonhava com croissants, pastéis de nata, tiramisu e tudo o que continha açúcar, massa folhada e manteiga. Mas há muito boas práticas que mantivemos, pelo que agora só temos de fazer alguns ajustes para voltar ao plano alimentar que criámos e de que tanto nos orgulhamos. O exercício, os livros e a dieta são hábitos - que são sempre difíceis de adquirir e fáceis de perder. Mas não esquecer: são sempre fruto da consistência e da persistência - neste caso, dizem que são precisos 21 dias para estabelecer uma nova regra para a nossa vida.
Por fim, a manutenção da terapia. Diz-se que depois da tempestade vem a bonança - e por isso seria de esperar que este ano eu tivesse abdicado das minhas sessões com a psicóloga. Não o fiz - e estou muito contente por ter mantido as consultas, ainda que com uma frequência menor. Não há amigos, pais ou maridos que façam o papel de um psicólogo - aliás, em muitos casos, nem devem. É lá que deixo muitas das minhas dores, que resolvo novelos e berbicachos que crio na minha cabeça (e são muitos); é lá que sinto que todas as minhas dores são valorizadas e válidas mas também é o sítio onde as relativizo - sem ter de me preocupar se os outros têm problemas maiores ou se estou a ocupar o tempo de alguém a desabafar. É uma forma ótima de organizar pensamentos e de deitar fora aqueles que são tóxicos e me estão a fazer mal. E foi vital na forma de estar, muito mais calma e pausada, com que me apresentei este ano. As ferramentas que trago de lá, mesmo sem estar neste momento a passar por tormentas, são preciosas. Aprendo muito naqueles bocadinhos - não necessariamente só sobre mim, mas também sobre os outros, para além de um número infinito de práticas e pensamentos que só me acrescentam.
2022 foi um ano de trabalho, que não fluiria se não fosse pelo esforço e entrega que foram depositados em muitos dos pontos que descrevi acima. Também teve alguns bombons: foi pintalgado por uma viagem incrível e outros bons passeios; teve muitos pães com chouriços, churros, feiras e feirinhas. Contudo também teve sustos - a minha mãe foi dona do maior deles todos. Mas no final estamos cá todos para contar a história - com mais ou menos contraturas, mais ou menos gordos, com mais uma ou outra cicatrizes. Estamos. Para continuar. E isso é que importa.
E enquanto relia este texto e em particular o parágrafo introdutório deste texto, acho que fica bem claro o porquê da palavra que escolhi: em 2022 aprendi que o balanço que fazemos nesta fase não é sobre aquilo que o ano nos ofereceu, mas sim como lidamos com aquilo que nos foi aparecendo no caminho. E fico feliz por, num ano mediano, ter conseguido retirar alguma coisa de positivo. Isso, por si só, já é um bom modo de estar na vida. É para manter - que a consistência também pode ser uma palavra de ordem.