É triste andar para trás nos arquivos desde blog - e já são nove anos de memórias -, selecionar as tags "desporto" e "educação física" e perceber que o elo comum em quase todos os posts é a desistência. Não se pode deixar de ver o lado da tentativa, claro - foram muitas as resoluções de ano novo (ou os números deprimentes na balança) que resultaram em inscrições em ginásios e outras experiências; mas saber que tudo isso culminou sempre num fracasso não é uma sensação feliz.
Gostava de estar num lugar de paz em relação a esse assunto, mas não estou. O meu namoro trouxe ao de cima muita coisa que estava escondida em mim, no que diz respeito à atividade física. Tenho a sorte de ter ao meu lado um homem multi-facetado e que, neste caso, é o oposto de mim: é ótimo em tudo o que é desporto e gosta de o praticar. Para meu bem tem-me tentado afastar da nuvem negra que me acompanha neste campo, incentivando-me, ensinando-me com uma paciência e um amor como nunca ninguém tinha feito até aqui; chega ao ponto de entender o meu sofrimento, mesmo não o percebendo.
E se por um lado este esforço tem tido alguns resultados, por outro faz vir ao de cima muita coisa que tinha guardada. Há memórias que surgem do nada, enquanto tento lidar com a frustração de não conseguir fazer um serviço de jeito no padel ou de não conseguir levantar um peso nos workouts que de vez em quando faço em casa.
Lembro-me de quando se sentavam em cima de mim, forçando os meus músculos e articulações a esticarem-se ao máximo de forma a fazer a espargata (devido a uma ideia infeliz da minha irmã - embora bem intencionada - de me inscrever na ginástica acrobática).
Lembro-me de uma professora de educação física me chamar para um teste prático de ginástica (se a memória não me falha) e, como introdução, dizer "lá vem aí o desastre".
Lembro-me de na primeira aula de educação física do sétimo ano, de forma a tentar não prejudicar a minha equipa com as minhas fracas capacidades físicas, me esforçar tanto para correr e dar a estafeta ao colega mais próximo que caí, de cara direta ao chão e de forma tão desamparada que fiquei com um olho negro.
Lembro-me do que senti - a humilhação, a sensação de que o tempo não passava - quando, também no sétimo ano, a minha professora de dança propôs apresentarmos o nosso nome em forma de dança - no centro do pavilhão, com todos os colegas a assistir. Foi talvez a única vez em que amaldiçoei o meu nome. Porque não me chamar "Ana", "Rita" ou "Eva"? Porquê que o meu nome tinha de ter oito letras e eu não saber "escrevê-lo" em modo de dança?
Lembro-me do vaticínio de ficar sempre em último quando os professores davam a liberdade dos colegas escolherem as equipas na aulas de educação física.
Lembro-me de não ter par - porque todos escolhiam outros - e de ter de fazer os exercícios com o professor.
Lembro-me de ser a última a completar o "mega quilómetro" - a prova em que tínhamos de fazer um quilómetro no menor tempo possível - e de ter os meus colegas, com ar de frete de quem já está à espera há muito tempo, a olhar para mim enquanto cruzava a meta.
Lembro-me de não aguentar um minuto em prancha e, por minha causa (em modo "um por todos e todos por um"), sermos todos obrigados a repetir a sequência de exercícios que já tínhamos terminado até ali.
Lembro-me da minha primeira e última aula de step, num ginásio, em que numa "aula básica" dei um tombo tal no soalho flutuante, depois de tropeçar naquele degrau do demónio, que parecia que tinha acabado de cair um meteoro em plena sala.
Lembro-me do stress e do pânico de ir para as aulas com o PT - algo que ainda hoje não gosto sequer de recordar. Lembro-me de ele me dizer que tinha de aguentar com aquela barra nas costas, que era a mais leve, e que a única alternativa era fazer o exercício sem nada (e da vergonha que isso me fez sentir). Lembro-me de só querer chorar, de ter vontade de vomitar. E de desaparecer, de uma forma geral.
Há uns tempos, a propósito do padel, que de vez em quando "tento jogar" - e a propósito de uma frase em que, obviamente, me auto-criticava -, uma amiga minha perguntou-me, admirada, se eu ainda tinha esta panca em relação ao desporto. Eu disse que sim - e, em modo brincadeira, acrescentei que isto só ia lá com terapia. Não é algo que tenha vontade de fazer (nem ache pertinente nesta altura da minha vida) mas, como diz o ditado, a brincar é que se dizem as verdades. E eu sinto que, mesmo sem ser num especialista, a terapia está a ser feita.
Tem sido este esforço que tenho feito em conjunto com o meu namorado - e a aposta incrível que ele tem feito em mim, um trabalho muito mais psicológico do que físico. E, como tal, tem envolvido uma mistura de sentimentos difícil de gerir - e muito choro, muita frustração, muitas gavetas de memórias que surgem do nada e que eu não queria abrir. É por ele que este ainda não é um post de desistência. E é por ele que, de vez em quando, ainda vou tentando.
Nesta fase, mais do que bater na bola, os desafios são outros. Não consigo tolerar o peso de uma equipa nos meus ombros; jogar a pares, como é o caso do padel, é muito difícil para mim, porque tenho a perfeita noção de que a minha inaptidão prejudica o meu colega de equipa - e mesmo sendo ele família, é algo com que não consigo lidar bem. Não consigo jogar tendo plateia a olhar para mim - e, por plateia, entende-se inclusivamente o par que está do outro lado da rede (que também é família). Não consigo ser competitiva - porque, neste campo, a vida me ensinou a perder - mas também não gosto que me forcem a querer jogar mais, atiçando-me, porque isso não me dá vontade de contra-atacar, mas sim de desistir. Eu não entro em nenhum desporto com a ambição de ganhar. Tentar, só por si, é uma vitória. E dentro da vitória vivem-se dentro de mim batalhas muito duras, difíceis de descrever por palavras, que duvido que algum dia se dissipem na totalidade.
Sinto que na altura em que tentava frequentar ginásios e via as minhas desistências como simples desistências - e as pessoas iam sugerindo outras coisas, e dizendo que não era assim tão mau e mandando alguns bitaites - eu não via a questão com a abrangência e profundidade que ela merecia. Eu estava só no início da escavação do buraco, quando na verdade ali existe uma cratera.
Um dia, ao ler um post no facebook de uma pessoa conhecida que falava também das suas memórias tristes em educação física, da pressão e incompreensão dos professores, da sensação de ser deixada para trás e gozada pelos colegas, eu percebi que não era a única. Não sei se na altura lhe chamou trauma, mas eu subentendi-o. E, olhando para tudo o que escrevi - e para o que tenho meditado sobre o assunto nos últimos meses - acho que o partilho.
Estou no caminho de aceitar as minhas desistências todas ao longo destes anos - e, lá está, de tentar olhar para elas como tentativas. Estou a tentar perceber que, de facto, aqueles pequenos atos e vergonhas que passei em miúda - que sempre tentei desvalorizar, assim como todos à minha volta - deixaram uma mossa que não achei possível. E estou, aos poucos e com alguém que me compreende, que puxa por mim mas não desmesuradamente, a curar as feridas profundas que hoje percebo que tenho. Quer consiga ou não, sei, por certo, que ficarão cicatrizes. E - longe da vitimização - não me permitirei mais desvalorizá-las.