Uma questão de prioridade(s) - e, já agora, respeito
Neste momento apetece-me bater à porta de todos os otimistas (ou deverei dizer ingénuos) que achavam que esta história da pandemia vinha mudar a humanidade. Alguma coisa como: "Truz, truz! O desconfinamento já vos fez acordar para a vida?".
Solidariedade como vimos nestes tempos difíceis é típica nos portugueses: sempre nos socorremos uns aos outros nestes momentos. Mas isso não quer dizer que mudamos; não quer dizer que deixamos de fazer comentários parvos, insolentes, racistas e ofensivos nos comentários das notícias no facebook; não quer dizer que deixamos de nos insultar no trânsito; não quer dizer que daqui em diante o nosso comportamento para com profissionais de saúde e outras pessoas que se arriscam diariamente em prol dos outros seja diferente. O esquecimento faz parte da condição humana - se assim não fosse não tínhamos a capacidade de perdoar e andar para a frente com as nossas vidas, as mulheres não teriam filhos novamente se se recordassem a cada instante das contrações na hora do parto e provavelmente também não voltariam à esteticista se aquele momento em que a banda de cera se descola da pele estivesse bem vivo nas suas memórias. Acredito que há muita coisa nas nossas vidas que vai mudar graças ao aparecimento deste vírus - mas tratam-se de hábitos, não de características pessoais. Essas continuam as mesmas - e com traços típicos do egoísmo humano e da falta de sensibilidade para com o próximo.
Eu, que não "confinei" por força do meu trabalho, nunca cheguei a ver o mundo pela janela e em modo arco-íris. Mas à medida que as coisas vão voltando à normalidade e que somos obrigados a interagir novamente com mais pessoas no nosso dia-a-dia, e embora nunca tenha acreditado numa mudança nas pessoas, vou-me agora relembrando da massa de que são feitas.
Há dias fui à última da hora ao supermercado, comprar meia-dúzia de coisas que estavam em falta para o jantar - cabia tudo num saquinho de pano que levava ao ombro. Era hora de saída de trabalho, o espaço estava cheio e as filas iam crescendo pelos corredores - de tal forma que abriram três caixas durante o tempo de espera em que lá estive. Fui uma das pessoas que se moveram para uma nova caixa quando o anúncio se ouviu nos altifalantes; a caixa em questão tinha lá pousadas algumas garrafas de vinho, deixadas por um casal de idade que, pelo peso das bebidas e pela sua parca condição física, pediu a um funcionário para as lá deixar. Voltaram pouco depois da caixa abrir, com tantas coisas como as que eu tinha no saco - poucas, portanto. Ambos entre os 70 e os 80 (sendo que a idade não tinha sido branda com nenhum deles), andando com o auxílio de bengalas e claramente perturbados por toda esta logística das máscaras e distanciamentos, tomei a liberdade de os deixar passar à minha frente.
Apesar da distância de segurança consegui ouvir bufar o senhor que se encontrava atrás de mim. E ao meu lado, na fila paralela, um senhor de carrinho cheio ainda me disse: "a fila prioritária é esta onde estou, não essa", apontando para a plaquinha indicativa, sofrendo claramente por um problema que não era o dele. O que respondi não vem ao caso, pois as ações falam por si e o casal já estava a pagar a conta. Mas isto lembra-nos (mesmo a mim, que sempre achei que estes meses fechados em casa não iriam mudar ninguém para melhor) da necessidade de colocar cartazes à porta de todos os espaços públicos, aquando do pico da pandemia, listando todos aqueles que têm prioridade; recorda-nos o porquê de ter de legislar, pedir, obrigar e punir ações que aparentemente seriam de bom senso.
Acredito que estas mesmas pessoas - as que bufam, as que reclamam, as que fazem caras de desagrado tão óbvias que se notam apesar das máscaras - são também aquelas que, neste momento, se insurgem contra as ações racistas daqueles polícias americanos e que colocam posts no facebook apregoando que as "black lives matter". Acho que muita gente não percebe que, atrás das lutas contra o racismo, a xenofobia, a homofobia (entre outros), está uma coisa tão simples como o respeito para com o próximo. Em não olharmos só para os nossos umbigos. E antes de tentarmos lutar pelo que quer que seja, convém que sejamos os primeiros a agir quando as ocasiões nos aparecem à frente - seja em relação a pessoas de outra raça ou simplesmente alguém que precisa de ajuda. A mudança começa em cada um de nós - mais do que gritar no meio da rua com cartazes ou pondo imagens bonitas nas redes sociais.