O maior mal das estradas portuguesas
Gosto muito de conduzir. Não sei bem porquê, mas uma das melhores coisas que me podem dizer é que conduzo bem. Talvez por ser um elogio muitas vezes guardado para os homens.
Mas a verdade é que o estado caótico do trânsito nas cidades é capaz de tirar todo e qualquer prazer que exista na condução. Isso e o facto da maioria das pessoas ter claramente ganho a sua carta no bolo-rei. (Soei a velho de restelo, não foi?). Pronto, vou ser mais razoável: acho que o facto de se conduzir tão mal, com maus hábitos enraízadissimos, faz com que rapidamente as pessoas se esqueçam das normas da condução. Lembro-me bem de me dizerem que um mês depois de tirar a carta já não iria usar piscas nem fazia perpendiculares. E eu mantenho-me aqui firma e hirta, a mexer no manípulo dos piscas para cima e para baixo e a contornar ângulos de 90º tentando-que-perfeitos de cada vez que estou num cruzamento - porque acho que são normas que fazem sentido, que precavêm acidentes e problemas e que contribuem para uma maior fluidez do trânsito. Mas sei que deixar de fazer estas coisas - e tantas outras - é fácil, principalmente quando quase ninguém as pratica.
Ainda assim, e apesar da baixa qualidade dos portugueses ao nível da condução, o principal problema das estradas não se prende com questões de jeito ou gosto pela condução. É tão somente uma questão de civismo e respeito pelo próximo. Chama-se estacionamento em segunda mão.
Tenho este post entalado há três dias, altura em que fui buzinada e insultada na estrada (entretanto, aconteceu de novo). Se há coisa coisa que eu não gosto é de ser criticada; mas se há coisa que eu detesto é ser criticada injustamente. O que aconteceu em ambas situações foi o seguinte: num troço com pouca visibilidade fui obrigada a mudar de faixa - dedicada aos veículos que vinham no sentido oposto - por culpa de uma carrinha e um carro (respetivamente) estacionados em segunda-mão. Eu não sou nenhuma santa ao volante - meto-me e tento encontrar o meu espaço, mas não sou aselha (disso, tenho noção) - por isso achei que tinha tempo e espaço, dentro da curta visibilidade que tinha, para poder ultrapassar os obstáculos. Na verdade, continuo a pensar que tinha: mas muitas das pessoas que vêm no sentido contrário fazem questão de apertar o acelerador para poder ter com quem embirrar e despejar as suas frustrações depois de um dia de trabalho.
Mesmo que os meus cálculos fossem errados, mesmo que eu não tivesse tempo, mesmo que eu não tivesse visto bem, mesmo que eu tivesse arriscado (o que é obrigatório em horas de ponta, em que estão constantemente a passar carros no sentido contrário) eu não estou a fazer aquilo por livre vontade. Eu não estou a sair da minha via porque me apeteceu. Estou a faze-lo porque há um terceiro envolvido que, por achar que as suas prioridades são mais importantes do que a dos restantes humanos, decidiu deixar a sua viatura no meio da estrada - e está a prejudicar-me tanto a mim como a todos os outros, incluindo os da outra faixa de rodagem. E eu só gostava que toda a raiva que me foi a mim dirigida fosse, em metade, em direção a quem deixa o carro à vontadinha no meio da estrada.
E sim, todos temos telhados de vidro. Eu também tenho - mas com a consciência muito, muito tranquila, por o ter feito meia dúzia de vezes ao longo dos meus anos de carta, em situações muitíssimo esporádicas. Isto porque acho inaceitável. Acho de um egoísmo, de uma falta de civismo e de respeito para com o próximo brutal. E o pior é que é um comportamento massivo, que está a ficar cada vez mais enraizado na nossa sociedade e, desta forma, a ser aceite (faz lembrar o consumo de marijuana - é ilegal, mas já tanta gente o faz que se tornou moralmente aceite e quase já deixou de assumir o estatuto de droga).
Não tenho problemas em admitir que sou radicalista e que acho que um sistema altamente punitivo resolveria o assunto - viu-se bem a diferença do estacionamento com parquímetros no Porto a partir do momento em que uma empresa começou a deixar bilhetinhos laranjas com multas de cada vez que alguém não punha moedinha. Antes não se arranjava um lugar - hoje, há-os às dezenas. Aliás, o caricato no meio disto tudo é que as pessoas preferem deixar os carros em segunda-mão, onde sabem não ser multadas, do que em lugares legais, mas pagos. É indecente.
Desafio-vos a sair de casa e, no percurso até ao vosso trabalho, contarem o número de carros que têm de contornar, qual corrida de obstáculos. Acho que muito dificilmente farão o caminho sem impedimentos. Porque o estacionamento em segunda mão é, para mim, o maior problema das estradas portuguesas - muito mais do que os aselhas e os pouco dotados para a arte da condução.
Não, ir buscar os filhos "ali num instantinho" ao infantário não é desculpa.
Não, ir só ali comprar pão não é desculpa.
Não, deixar o carro em segunda mão enquanto se almoça ou janta não é aceitável. É i-naceitável.
Não, parar os camiões para descarregar bebidas, para poupar o lombo do trabalhador, não é desculpa.
Não há desculpas.
Estamos a falar do benefício de uma ou duas pessoas contra o malefício de centenas (sim, porque não são só as pessoas que têm de ultrapassar ou deixar que os outros ultrapassem, mas também todos aqueles que têm de esperar atrás desses) que, por aquele "instantinho", vêem as suas vidas atrasadas. Que, por aquela coisa "que toda a gente faz e que não tem mal nenhum", até são insultadas e buzinadas de forma gratuita. Que, porque "tem mesmo de ser", sofrem acidentes.
Porque o vosso tempo não vale mais que o meu. Porque as vossas prioridades não são maiores que as minhas. Porque se têm direitos, também têm deveres. Porque a estrada não é vossa, nem minha, mas sim de todos.