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Entre Parêntesis

Tudo o que não digo em voz alta e mais umas tantas coisas.

16
Mai23

Viver em dieta é duro

No início do ano passado eu e o Miguel começamos, juntos, uma jornada para emagrecer - ambos perdemos quase uma dezena de quilos cada (ele um bocadinho mais, eu um bocadinho menos). Na altura eu já estava a tentar perder peso recorrendo à prática regular de exercício físico (falei disso aqui) mas os resultados só vieram depois um corte drástico na alimentação. E foi duríssimo. Eu chorava a pensar em croissaints, pastéis de nata e pizzas. O pior não é o não comer - é saber que não podemos comer; é mais a proibição do que a privação. As primeiras duas semanas foram um autêntico pesadelo, mas o corpo acabou por se habituar à ausência de açúcares e a um corte muito substancial nos hidratos. Quando cheguei aos 60kg senti que conseguiria conquistar o mundo; foi das sensações mais poderosas que tive, uma das maiores vitórias que já havia sentido. Perder quase dez quilos foi sinónimo de remar contra a maré, de superar vontades, desejos e compensações; foi trabalho de muita cabeça e determinação, muito suor e muitas lágrimas - tudo trabalho meu, orgulho meu, louros meus.

Mas eu sabia que a manutenção ia ser o problema. Após a dieta a nossa alimentação do dia-a-dia nunca voltou para trás; nunca regressamos ao Uber Eats e raramente cheirava a pizza lá em casa, nunca mais voltei a pôr batatas nos assados ou a fazer arroz de acompanhamento. Mas, para bem de um cardápio mais diversificado, voltei a introduzir pratos que, por si só, não são assim tão light: a lasanha, a massada de peixe, o arroz de pato e as almôndegas com massa (ainda que sempre pesada na balança, para não ultrapassar a quantidade de hidratos desejada). Pelo meio, uma metade de pão ao almoço e ocasionalmente um pedaço de sobremesa. E é lógico que, entrando o verão, houve gelados à mistura e muito mais saídas fora, onde todos os fatores pró-calóricos são mais difíceis de controlar. E, num ápice, chega o Natal. Quando vou à balança depois das festas, tinham-se passado praticamente nove meses do meu pico de forma, o meu peso tinha praticamente voltado ao anterior à dieta. Durante esse período de tempo mantive sempre o exercício físico, com uma média de quatro a cinco treinos por semana, mas mesmo assim aquilo voltava a acontecer-me.

Dei com a cabeça nas paredes. Tentei, durante os primeiros meses do ano, fazer um meio termo - reforçar o exercício e controlar a comida, mas sem cortes drásticos. Não funcionou. Tive de tomar uma decisão: ou continuava naquele caminho, que provavelmente continuaria numa linha ascendente independentemente dos meus esforços, ou punha outra vez um ponto final nesta história - e desta vez sozinha, pois o meu marido só precisa de uma dieta se o seu objetivo for desaparecer.

Foi uma decisão complicada que tive de ponderar com cuidado; tive de escolher entre encarar um corpo que não estava conforme o que eu queria e uma gestão emocional ainda mais precária do que a que já tinha. Este ano tem sido difícil e duro desde o seu início, sem dar folgas. Quando olho para trás não consigo ter capacidade de recordar muitos momentos bons. A maioria dos que tive foram construídos com cuidado e de propósito, não foram simples ocasiões da vida. Aquilo que me lembro é de ir a Viana do Castelo de manhã e de comer uma bolinha de berlim no Natário, quentinha, acabada de sair do forno; aquilo que me ficou foi o ritual que eu e o Miguel construímos para nos obrigarmos a sair de casa, da nossa bolha, e ir dar um passeio ao Porto, comer um cachorrinho no Gazela e depois uma natinha quente em Santa Catarina. No fundo, o pouco conforto que senti neste ano ríspido foi proporcionado por momentos que envolveram comida - e era disso que eu me ia privar, daquele que às vezes era o único aconchego do meu dia.

Eu não diria que tenho uma relação complicada com a comida. Há, sequer, relações boas? Normais? Eu acho que cometo os mesmos erros dos outros - se estou triste como para compensar o facto de estar assim, se há algo para festejar como porque o evento tem de ser comemorado com algo bom. A diferença é que não tenho a capacidade para abater aquilo que como, mesmo fazendo exercício diariamente. Mesmo não bebendo refrigerantes, mesmo não bebendo álcool, mesmo não comendo nada após o jantar. O meu organismo é o meu principal inimigo e é algo com que vou ter de lidar a vida inteira.

O problema aqui é que a comida é mais do que isso; não serve só para nos alimentar o corpo e, quiçá, a alma. A comida faz parte de diversos ecossistemas, nomeadamente o social. Ir a uma festa de anos e não comer uma fatia de bolo de aniversário é quase rude. Ir a um restaurante de francesinhas e pedir um bife de peru é quase ridículo - já para não falar de doloroso. Ir à praia e não comer um gelado quase faz parecer que não estamos a usufruir do pacote completo. Muitos dos nossos planos sociais, quer envolvam muitos amigos ou só o nosso marido, envolvem comida de alguma forma - e desconstruir isso é, por si só, difícil e doloroso. É mais fácil construir planos novos, limpos de açúcar e tentações, do que tentar alterar coisas que já estão enraizadas em nós como sendo dados adquiridos. 

Numa fase em que os problemas de trabalho tomaram conta da minha vida quase por inteiro e com a tendência que tenho de me fechar na minha própria bolha, isto é um problema. Eu sei que preciso de sair e espairecer, mas só em casa é que eu tenho o controlo do conteúdo das prateleiras e do frigorífico, onde sei que nenhuma tentação me poderá fazer sair fora do caminho. Eu não quero ir ao Porto porque sei que não posso comer natas ou cachorrinhos. Eu não quero ir dar um passeio à praia porque sei que não tenho direito a gelado. Eu nem sequer quero ir ao restaurante, onde já antecipo a ideia de ter pessoas à minha volta a comerem sobremesas que eu não posso comer. 

Estar em dieta é mais do que a simples privação de comida. É, inevitavelmente, a escassez do conforto interior que a comida nos traz - mas também o corte de muitos planos de fuga que utilizávamos para nos fazer sentir melhor, que por uma razão ou outra incluíam algum tipo de comida. É um estreitar de opções. É a necessidade de usar umas palas, como as dos cavalos, para não podermos olhar para o lado e evitar morrermos um bocadinho por dentro. Fazer dieta é saber que a relação com o espelho melhora mas que o preço a pagar é alto, porque a alma dói.

Há pouco mais de um mês decidi voltar a enveredar por este caminho porque achei que, mesmo estando mentalmente debilitada, seria o melhor para mim. É curioso ver as diferenças entre este ano e o anterior; a relação com a privação está a ser muito mais pacífica e a determinação e a capacidade de dizer que não também; o que me tem custado mais é mesmo a erradicação de determinados planos e passeios que me nutriam a alma e me faziam esparecer a cabeça. Na maioria dos fins-de-semana dou por mim a não sair para não comer - mas já dias houve em que, em prol da minha saúde mental, dei um aval para uma asneira ou outra.

O esforço tem sido recompensado e tenho vindo a emagrecer progressivamente. O plano é ter, pelo menos, mais um mês de restrições pela frente - que não vai ser fácil, tendo em conta que o Sr. de Matosinhos está aí ao virar da esquina. Sendo esta a minha romaria preferida do ano, não é algo fácil de prescindir - nem eu tenho grandes intenções disso; terá de ser troca por troca - um churro por mais 15 minutos de bicicleta. 

Com calma sei que isto vai lá - mas "calma" não pode ser sinal nem de lentidão nem de facilitismos, porque já sei que ao mínimo deslize o plano pode ir por água abaixo. Sei que chegarei ao meu objetivo, mas o meu medo é sempre o mesmo: o futuro. Eu ainda não sei qual é o meu ponto médio, o equilíbrio que me permite comer algumas das coisas de que gosto, compensando com exercício, e culminar sem aumentar de peso - e, até aprender, temo muito por este yo-yo em que vivo nos últimos anos. 

Quem me rodeia diz-me sempre que estou bem, que o peso não se nota, que nunca diriam que tenho o s quilos que a balança indica. Mas a verdade é uma: eu, sem me aperceber, vou aumentando. É aquilo que me é natural - e eu conheci alguém exatamente assim, com o mesmo estilo de corpo que eu, com um metabolismo que a levava a engordar com facilidade. Era a minha avó, que sempre foi gordinha desde que tenho memória, e cuja mobilidade foi sempre muito reduzida devido ao peso que tinha de carregar nas pernas. Esse não é o futuro que eu quero para mim - e sei que se chega a este estado de uma maneira mais rápida do que parece. No que toca ao peso, andar para a frente é sempre fácil; mas quando queremos engrenar a marcha-atrás... só aí é que se vê de quantos cavalos é que somos feitos. Por isso o plano é continuar a andar para a retaguarda, mas tendo sempre em vista o futuro; é saber que o sacrifício de hoje é a vitória de amanhã. Mas a verdade é uma: os minutos de sacrifício são intermináveis e o amanhã parece a anos de distância. A privação é dura. Mas eu também.

 

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(imagem daqui)

21
Mar23

28 anos, quatro músicas e um desejo

(este post era para te saído ontem, dia 20 de Março - vamos fingir que recuamos uns minutinhos no tempo, sim?)

Faço hoje 28 anos e estes marcos dão-me para introspeções - ainda mais que os dias costumeiros. Os últimos anos da minha vida têm sido de aprendizagens profundas, muitas vezes cravadas a fogo num coração que, apesar de bem protegido por uma carapaça forte, não deixa de ser dócil, mole e frágil.

Há um antes e depois de 2018 na minha vida, ano marcado por dois grandes acontecimentos: o do aparecimento do Miguel e o desaparecimento do meu avô, que levou à minha entrada no mundo da indústria. Nesse ano arranjei uma base sólida emocional como nunca antes tinha sentido, mas simultaneamente atirei-me de cabeça pelas águas movediças da indústria, do patronato e da incerteza constante. Na altura ia a meio dos meus 23 anos. As hipóteses de futuro eram quase infinitas: um primeiro amor e uma primeira relação, a par de uma herança em forma de trabalho e de projeto de vida. Tinha muitas ideias, esperança no futuro e na mudança que estava a acontecer. 

Fast forward para hoje: 28 anos, cinco depois do ano de maior mudança. A vida agudizou-se, extremou posições. O lugar seguro continua cá - agora já sem dúvidas e sem medos, que foram substituídos pela maior das certezas de que escolhi a pessoa certa para estar ao meu lado. Mas o pântano também apurou as suas armadilhas, mostrou-me bem que não estou num navio de cruzeiro, mas num barco a remos onde tenho de puxar pelo cabedal para o fazer andar em frente. Estou sempre à espera de dias melhores, de sossego, mas não sei até que ponto sonho com uma situação idílica; olho para trás e vejo que não tive muita sorte - pandemia, guerra, crise inflacionária - mas será que alguém teve? Será que há de facto períodos em que o coração não mora constantemente nas nossas mãos, em que são mais as noites que dormimos do que temos de insónias? Ou será que foi esta a vida que escolhi sem saber ao certo ao que vinha?

Qualquer que seja a resposta, uma coisa é certa: os últimos meses não foram fáceis. Os últimos anos, por razões várias, também não - a base está lá (estamos todos vivos, temos todos trabalho) mas o desgaste foi maior do que previsto. Faço hoje 28 anos, mas creio que podia estar a fazer 48 e a sentir-me de igual forma: cansada, desgastada, triste e com pouco alento.

Eu não sei se acredito no destino e em todas essas coisas meio-místicas, mas a sensação que tenho é de que algumas coisas veem ter connosco nos momentos em que precisamos. Pode parecer parvo, mas a verdade é uma: nas alturas em que estou mais triste e me deito no sofá a recuperar forças, a probabilidade de estar a passar algum dos filmes do Twilight é grande - não interessa se é no AXN, na Fox Life, no NOS Studios ou no TVCine, mas normalmente estão lá . Não são grandes filmes, mas tenho com eles uma relação emocional tão forte que me aquecem sempre o coração. 

Ultimamente os dias maus têm sido mais que os dias bons. Não costumo ligar a TV na maior parte dos dias (por isso não dou sequer hipótese do Robert Pattinson me entrar pelo ecrã adentro), mas música oiço sempre - quer seja na rádio ou no computador, enquanto trabalho. O Miguel diz, com razão, que a música tem uma capacidade transformadora e empoderadora - quer seja pela vibe que nos transmite ou pela mensagem que tem. Há uma troca de frases muito engraçada em Castle - uma das minhas séries preferidas de sempre - que nunca mais me esqueci: a Beckett pergunta ao Castle "- How do you know you're in love?", ao que ele responde "All the songs make sense". E não é que é verdade? É um bom teste para sabermos como estamos ao nível do coração - mas vai para além disso, pois quando aguçamos o ouvido há muitas canções que passam a fazer muito sentido. E, nos últimos tempos, eu tenho estado atenta ao que ouço.

Janeiro ficou marcado pela "It Ain't Over 'Til It's Over". É uma música da minha infância - a minha memória leva-me logo para dentro do Volvo branco da minha irmã, enquanto andava com ela por aí, provavelmente com a minha cadela Isis a acompanhar-me no banco de trás. A música não passou uma, mas duas vezes seguidas na rádio, tal foi o impacto nos ouvintes, que mandaram mensagens a pedir para repetir a malha. E eu, deliciada, até parei o carro ao sol, para a absorver.

So many tears I've criedSo much pain insideBut baby, it ain't over 'til it's over

It Ain't Over 'Til It's Over, Lenny Kravitz

 

A vida continuou - e em Fevereiro entortou mais um bocadinho. E, na Rádio Comercial, numa daquelas manhãs difíceis, passava a homenagem que fizeram a Jorge Palma, com vários artistas a cantar a sua "A Gente Vai Continuar".

Enquanto houver estrada pra andarA gente vai continuarEnquanto houver estrada pra andarEnquanto houver ventos e marA gente não vai pararEnquanto houver ventos e mar

A Gente Vai Continuar, Jorge Palma

 

A verdade é que as manhãs são as mais difíceis. Dou muitas vezes por mim meio letárgica, aprisionada no meu escritório, sem saber o que fazer e como sair de situações que muitas vezes me ultrapassam. O comboio continua a andar, mas às vezes faltam as perspetivas claras de futuro. No limite, até a esperança. Mas a verdade é que eu entrei num comboio em movimento, que ainda tem combustível no tanque, e enquanto houver estrada para a andar... a gente vai continuar. A lutar. A procurar um propósito. À procura de um constante refill nesta energia que nos faz andar.

Quando vim para a fábrica sabia que tinha muitos desafios pela frente - o facto de ser mulher, de ser nova, de ser neta e filha do patrão, de ter de provar que o meu valor e a minha vontade de superação são muito maiores que um simples fator hereditário. Nunca é isso que me deita abaixo - mas fazem parte de um conjunto de pequeninas pedras que, num todo, muitas vezes atrasam o percurso. E, há dias, estranhei a nova música da Carolina Deslandes que passava na rádio; fiz cara feia, como quando experimentamos uma comida nova, que à partida não nos agrada muito, mas depois dispus-me a ouvir. E ela cantou:

Cuidado com a Carolina
Que vem de punho cerrado
A saia da Carolina ardeu no meio do mato
A história da Carolina é que ela agora veste fato

A Saia da Carolina, Carolina Deslandes

 

Caraças, não foi isto escrito para mim? Não sou eu que visto fatos para ir para feiras e reuniões importantes? Não sou eu que estou tipicamente num cargo de homens, tentando quebrar estereótipos, vícios e hábitos enraizados há sessenta anos? Sou, pois. 

Entretanto, também há um par de dias, passa na rádio uma música que o ano passado me aqueceu muito a alma e o coração, que diz assim:

Vou viverAté quando eu não seiQue me importa o que serei?Quero é viver

Quero É Viver, Sara Correia

 

Porque, de facto, é o que eu quero. Quero usufruir da companhia do Miguel, do ombro dele no sofá; do ritual de fazer a sopa, de fazer comida que ambos gostamos e de ver wrestling à terça feira à noite e ao sábado de manhã, enquanto comemos a nossa regueifa. Quero estar com os meus pais e com os meus irmãos em momentos de partilha. Quero conhecer o mundo. Quero estar com os meus cães, deixar que me sujem as calças e dar-lhes mimo até que se fartem de mim. Quero continuar rituais felizes: quero ir lanchar um cachorrinho ao Gazela, seguido de uma natinha quentinha em Santa Catarina; quero ir às 11h da manhã ao Natário, em Viana, devorar uma bolinha de berlim acabada de sair do forno; quero  comer a minha rufadinha à sexta-feira de manhã. 

Gostava de continuar o projeto que me deixaram nas mãos, gostava de sentir que continuo a fazer um bom trabalho para a sociedade enquanto alguém que emprega e que se esforça por agradar, gostava de me sentir mais útil e capaz em muitos momentos. Mas o que eu quero mesmo é viver para além de todos os problemas - algo que não tenho consigo fazer. Quero usufruir do caminho, e não continuar a andar na estrada só por andar. Quero usar saia quando quero e o fato quando assim o desejo.

Hoje faço 28 anos e o que eu quero mesmo... é viver. E aprender a saborear a vida, mesmo tendo (quase) permanentemente um sabor amargo na boca.

Que venha finalmente a Primavera.

 

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20
Set22

O enraizar de um hábito

A primeira foto que tenho de um pós-treino no meu telefone foi tirada no dia 20 de Setembro de 2021 - faz por isso hoje, precisamente, um ano. Aqui há dias, enquanto suava a minha alma em cima da bicicleta, pensei que estaria a fazer um ano da primeira vez que tinha subido para cima daquele selim - e, quando fui vasculhar os arquivos, percebi que era hoje.

Foi o Miguel, claro está, que me instou a experimentar. Era Setembro, época de recomeços - e particularmente especial para nós, com o papo cheio das férias e de ressaca após meio ano de uma preparação de casamento particularmente stressante - e estávamos ambos algo desagradados com a nossa forma física. Ele já tinha arrancado no seu processo e eu morria um bocadinho de cada vez que o via em cima da bicicleta, a pingar como uma torneira, deixando ali todas as quilocalorias que queria matar. Eu sentia-me muito frustrada e triste porque não tinha força de vontade para aquilo, porque não queria voltar para o inferno de um ginásio mas não sabia o que havia de fazer; no passado tínhamos feito treinos estilo cardio em casa, mas passado uns meses os joelhos queixavam-se e os resultados não eram tão visíveis como o desejado, pelo que também não tinha o ímpeto necessário para começar. Continuávamos a jogar padel, já de forma mais consistente, mas muito longe de alcançar qualquer meta visível.

Ele ia insistindo comigo para subir para a bicicleta. Um dia, dois, três. Um sábado lá me deu a volta - emprestou-me uns calções de ciclismo velhinhos e cronometrou quinze minutos. Eu pedalei, sem peso e sem rumo e, com os bofes de fora, fiz o esforço de chegar até ao fim do tempo acordado. No fim, festejou comigo por eu ter pedalado durante aquele quarto de hora como se tivesse acabado de fazer um Iron Man (eu sei, tenho sorte no marido que escolhi). 

Apesar das dores no rabo, não achei que aquilo fosse assim tão mau. E segunda-feira - porque nós temos a mania que os inícios devem ser sempre às segundas - comecei a minha mudança. Nos primeiros dias fiz 20 minutos, depois 25 e fixei-me na meia hora dali em diante. Inicialmente ia mexendo no peso da bicicleta de forma mais ao menor arbitrária, gerindo as dores nas pernas e a respiração. Em Dezembro o Miguel - outra vez ele, claro - ofereceu-me um smartwatch que, honestamente, fez toda a diferença nesta fase da minha vida. Criou-me metas, deu-me métricas para me guiar. Ainda hoje saio derrotada de uma semana em que não faça cinco vezes algum tipo de exercício (nem que seja uma caminhada de quinze minutos); já sei que estive demasiado parada e sentada se não cumprir com a meta dos 10 mil passos diários e que um treino teve um rendimento mais baixinho se não atingir a média das 200 calorias. Foi, mesmo, o melhor investimento que ele podia ter feito por mim, pela minha saúde e pela minha motivação. Tenho lá a minha vida ativa registada e adoro a política do envio de notificações motivacionais ("só faltam mais dois dias de treino para atingir o seu objetivo!", "mais dois mil passos e chega à sua meta diária!", "ganhou o badge não-sei-quantos por ter subido mil degraus num só dia - as suas pernas são melhores que um elevador topo de gama!") que, por muito  parvo que pareça, funciona na perfeição.

No início do ano, creio eu, comecei a fazer treinos do Youtube (do canal do GCN) - assim não pedalo em vão, tenho uma sequência e um objetivo. Descobri que aquilo que melhor funciona comigo são treinos de intervalos e intensidade - e agora que já os sei quase de cor, alterno simplesmente o peso que ponho na bicicleta e aumento e diminuo a velocidade consoante aquilo que me sentir capaz naquele dia. Se no início utilizava só metade da roda do peso (180º), algures a meio deste ano passei a utilizar 270º - sempre sentada. Apesar de haver segmentos que se faziam em pé, não tinha pernas para aquilo. Até que há uns dois meses consegui - e agora já ultrapasso os 360º quando estou de pé e me obrigo a dar à perna. Estas evoluções foram vividas com muita alegria, ânimo e festejo - porque são realmente vitórias impressionantes para alguém que nunca gostou de fazer exercício e que tanto sofreu com isso ao longo dos anos. Na verdade, cada treino é tido como uma vitória - e em todos tiro uma foto para registo e mando para o Miguel, a pessoa que mais me motivou a conseguir e chegar até aqui.

Foi uma evolução feita com calma e passo a passo - não sou (nem nunca fui) de testar os limites do corpo. Se calhar até teria evoluído mais rápido se tivesse puxado a corda e provado a mim mesma que era capaz - mas também é provável que tivesse desistido rapidamente com as dores do dia seguinte e com o esforço mental que era necessário para me arrastar para a bicicleta todas as manhãs. Porque a verdade é que, nos primeiros tempos, não havia hormonas que me safassem - era penoso ir para a bicicleta, sair da bicicleta e, de uma forma geral, sobreviver ao resto do dia (e subir as escadas para o meu escritório? Parecia uma velhinha!). Continuei por pura teimosia e por querer consolidar um hábito e não por me sentir bem antes, durante ou depois do treino - acho que ainda hoje, um ano depois, as endorfinas não funcionam comigo. Agora, com o hábito enraizado, subo para a bicicleta por medo: por medo de engordar e por medo de perder um hábito que, de facto, só me trouxe saúde.

Os primeiros a notar as diferenças foram os outros - para mim, eu estava igual. Mas a minha capacidade de fazer arranques enquanto jogava padel e de conseguir chegar, finalmente!, às bolas mais perto da rede começaram a tornar mais óbvio que a minha forma física estava a melhorar - isso e umas pernas mais delgadinhas, como nunca antes tive. O emagrecimento só veio depois. Atingi o meu pico de peso em Novembro, quando já treinava - na altura estava a tentar emagrecer só com exercício e não sei até que ponto é que não fiquei mais pesada, precisamente, por estar a ganhar massa muscular. Como disse no último post, foi em pouco mais de três meses que perdi quase dez quilos - mas a verdade é que já andava a preparar o corpo e a mudar os meus hábitos nos seis meses anteriores, o que foi indispensável para aquele processo. 

Não sei muito sobre a criação de hábitos mas creio que um ano já é o suficiente para dizermos que um hábito está enraizado. Mas isto é como a confiança: demora-se anos a ganhar mas segundos a perder. Passei as minhas férias aterrorizada, com medo de não conseguir voltar à cadência de treinos que tinha conquistado. A rigidez com que vivi o segundo trimestre deste ano, com uma dieta muito restritiva e a treinar seis vezes por semana, era demasiada para uma vida social minimamente ativa e para um dia-a-dia relaxado, mas a verdade é que depois do impacto inicial (que foi duríssimo) o nosso corpo se habitua; difícil é depois encontrar um meio termo. A manutenção é o segredo de qualquer dieta bem sucedida, mas é também a parte mais difícil - porque mal começamos a dar ao corpo aquilo que ele gosta (nomeadamente calorias a mais e o rabo alapado no sofá), ele não quer outra coisa. Quanto mais comemos, mais queremos comer; quanto mais dormimos, mais queremos dormir. Às vezes temos a tendência de nos "fazermos as vontades", de ouvirmos o nosso corpo - aquilo que é tantas vezes necessário em inúmeros casos - mas caímos em erro, continuando determinados ciclos que deviam ser quebrados.

Mas apesar dos meus medos, consegui voltar ao meu regime de exercício com bastante facilidade. Já voltei a planear os meus treinos no início da semana (faço sempre um plano mental, à segunda-feira, para saber os dias em que faço bicicleta tendo em conta a minha disponibilidade matinal e os dias em que vamos jogar padel) e o resto dos hábitos continuam: ponho o treino do GCN no tablet, uma série no telemóvel, ativo o treino no relógio e pedalo - tudo de manhã, se possível ainda antes das 8h. Já cheguei a treinar ao final da tarde, mas só mesmo se for estritamente necessário - a minha força anímica esvai-se durante o dia com todo o stress e problemas do trabalho, pelo que dificilmente conseguiria enraizar um hábito destes ao final da tarde, entre a obrigação de fazer tarefas domésticas e as oscilações de humor e energia que dependem do decorrer do dia. Para além disso, desde há uns meses para cá que tento fazer um ou dois treinos de braços (musculação) por semana, para complementar o cycling (e o padel), uma vez que estou a dar muito mais atenção aos braços do que às pernas.

Duzentos e tal treinos depois, cá estamos - mais magra e mais saudável (noto menos cansaço no final de tarefas que puxam pelo corpo, por exemplo) mas, acima de tudo, muito orgulhosa de mim. Eu não sou só alguém que nunca gostou de fazer desporto - sou, ainda hoje, alguém com marcas profundas ganhas na escola e ginásios alheios, que me magoaram profundamente. São cicatrizes que, levianamente, tentamos pôr para trás das costas e deixar de dar importância, mas que não deixam de ser um peso só porque as escondemos e menosprezamos. Conseguir manter um hábito destes durante um ano é uma superação muito mais mental do que física. Ter encontrado um desporto que não me mata por dentro, sem ter olhos alheios postos em mim que sirvam de ponto de referência ou comparação foi uma lufada de ar fresco que nunca antes tinha sentido e a solução para um problema que achei que não era solúvel. Que dure muitos mais anos e que eu saiba equilibrá-lo com estilo de vida saudável - e que nunca, nunca mais tenha de pôr os pés num ginásio.

 

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31
Jan22

A vida é uma estranha bola de neve

Um update sobre a minha vida: dieta, trabalho, desporto e um super-relógio

Há cerca de um ano e meio fui à nutricionista porque achei que estava a ficar com peso a mais e eu não estava a conseguir emagrecer sozinha. Na altura resultou, passei dos quase 67 quilos para uns felizes 61 e segui contente da vida, com o objetivo de manter. Entretanto fiquei noiva, 2021 não chegou para brincar e eu voltei a sair dos eixos. Ainda fui a consultas aí pelo meio, para ver se a pressão de uma balança que não a de casa e o compromisso com outra pessoa funcionaria, mas nem isso fez com que eu conseguisse privar-me de certas coisas e obrigar-me a outras. Valores mais altos se levantavam.

Em Outubro, quando a vida acalmou, voltei à carga. Entre o tempo da marcação da consulta e a própria ida ao médico, vi a minha vida profissional ser abalada por um tremor de terra que mexeu muito com os alicerces da fábrica. A calmia durou dias. De qualquer das formas fui à consulta - já andava a fazer um esforço para emagrecer, a treinar pelo menos três vezes por semana e com um olho forte sob a minha alimentação (fiz um diário alimentar e tudo) mas, mais uma vez, nada resultava. Perante tudo aquilo que tinha apontado e tendo em conta tudo o que andava a fazer, a solução era só uma: cortar com todos os pequenos erros, com os deslizes e os pecadinhos que se iam cometendo para consolar a alma. 

Ainda tentei, mas não consegui durante muito tempo - entretanto, com o Natal à mistura, mais difícil tudo isto se tornou. Sei que é na privação que está a capacidade de atingir o meu objetivo - em muitas dietas não é nem deve ser, mas no meu caso e com o meu metabolismo, não há grande volta a dar - mas eu não estou em época de me privar de algo que me dê alento. Comer emocionalmente é mau, mas há alturas em que é a das poucas coisas que restam para nos aquecer o coração e a alma. Estou numa fase tão estranha e rara que sou capaz de comer uma tablete de chocolate num só dia (eu, que normalmente como um quadrado de chocolate por mês, se tanto), por isso nem vale a pena tentar fazer grandes negociações, pois sei que serão em vão. 

Este tipo de processos são complicados, pois são autênticas bolas de neve. Já estamos tristes por um acontecimento exterior e pior ficamos por não conseguirmos alcançar um objetivo a que nos auto-propusemos. Depois entra a auto-sabotagem ("perdida por dez, perdida por mil - vou comer a tablete de chocolate inteira!"), que levam a uma tristeza e uma frustração ainda maiores, que não compensam o prazer de termos comido o que quer que seja. E as coisas vão-se arrastando, piorando, dilacerando-nos por dentro. 

O trabalho sempre foi para mim uma força motriz, onde eu alicerçava os meus maiores objetivos e esperanças. Quando era mais nova e achava que ia ficar solteira para sempre, imaginava que a vertente profissional seria o pilar principal e moldador da minha vida, que seria uma trabalhadora nata, que o trabalho seria o alimento da minha alma; hoje, ainda que os meus planos se tenham alterado e a família tenha passado para primeiríssimo lugar na minha lista de prioridades, o trabalho continua a ser preponderante na minha vontade de viver, de sair da cama e fazer mais, de ver um projeto meu crescer. Mas tive azar na altura em que fiquei com a fábrica e o contexto nunca esteve a meu favor. Por muito que se goste e que se queira fazer mais, há alturas em que o desânimo e a desmotivação tomam o controle - e aquilo que aprendi nos últimos tempos é que embora devamos lutar contra isso, também devemos ser tolerantes para connosco. Não estamos sempre bem nem podemos querer estar sempre bem - e isso faz parte, porque não controlamos tudo à nossa volta. E, nessas alturas, não podendo mudar aquilo que nos provoca dor, podemos tentar mudar nós. Somos altamente adaptativos, mesmo quando achamos que não. E a verdade é que não é preciso alterar muito para às vezes acontecerem coisas que antes acharíamos inacreditáveis. 

Como não conseguia emagrecer e como a minha vida profissional também não me está a dar abébias (muito pelo contrário...), surgiu naturalmente um dos objetivos mais estranhos na história da minha vida: fazer desporto cinco vezes por semana. Quando fui à nutricionista já estava a treinar cerca de três a quatro vezes por semana, num duo entre alimentação e desporto que já achava hercúleo da minha parte. Hoje, não estando a apostar em cortes na alimentação, pus as fichas no desporto, e tem sido um desafio semanal com direito a suor e lágrimas mas, acima de tudo, de muita superação. Porque não estou focada nos resultados - e ainda bem, porque emagrecimento nem vê-lo - mas sim no facto de estar a conseguir cumprir algo que para mim seria impossível. Intercalo entre o spinning e o padel (o primeiro faço em casa, normalmente de manhã, e com muito esforço; o segundo já encaro mais como um divertimento e convívio) e controlo tudo no meu super relógio - algo que nunca pensei que ajudasse tanto neste processo.

O smartwatch (Versa 3, para quem quiser saber o modelo) foi uma prenda de Natal do meu marido, e apesar de ser um presente incrível, é daqueles assim meio envenenados. No fundo funciona como aqueles vernizes para deixar de roer as unhas: têm um sabor amargo mas o objetivo é bom. Porque por um lado o relógio é chato e controlador - queixa-se logo quando não me mexo durante uma hora e é pior que uma vizinha cusca, sabendo quantas horas durmo, quantos passos ando, quantos pisos subo, quantas calorias queimo, o oxigénio que tenho no sangue - e, se lhe der trela, até quer saber detalhes sobre o que como, o que bebo, sobre o meu ciclo menstrual e estados de stress. Admira-me, na verdade, não ter interesse sobre xixis, cocós e outras coisas igualmente íntimas - mas acredito que lá chegaremos! Por outro lado regista todos os exercícios e avanços que faço, quantas calorias perco e o meu nível de esforço, fazendo-me querer ir mais além e criando um histórico que não engana. De cada vez que penso que não sou capaz é só ir à aplicação e ver que na segunda-feira fiz isto, na terça fiz aquilo, e que continuo cá para contar a história.

A vida, de facto, dá voltas muito estranhas. Nunca achei que fosse beber inspiração e força no desporto mas, à falta de melhor, aqui estamos nós. A lutar para ficar à superfície - e, para isso, a definir novas metas quando as que tínhamos se vêem impraticáveis. A mostrar que somos capazes, mesmo em áreas que nunca achamos ser possíveis. E a trabalhar em novos hábitos, que podem manter-se em alturas de maior estabilidade. E nessa altura sim, talvez consiga perder o peso, a anca e a barriga que acho que tenho a mais. Uma coisa de cada vez. Até lá, o horizonte é sempre a tona da água.

 

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25
Mar21

Cansada desta liberdade condicional

Fiz 26 anos no sábado. Faço parte daquele conjunto de azarados que, pelo segundo ano consecutivo, teve de festejar o seu aniversário confinado. E apesar de não desejar que isto seja mais um prenúncio do que aí vem, sinto que de facto os meus 25 anos foram confinados, com a vida restringida apenas àquilo que mais é essencial. 

Estou a enfrentar um muro, neste momento - a fase mais pesada desde que tudo isto da pandemia começou. E não - nem a perspetiva de um casamento me anima! Estou cansada que os dias me saibam sempre ao mesmo - de acordar, vestir-me, tomar o pequeno, ir trabalhar, almoçar, voltar a trabalhar, ir para casa, fazer o jantar, tomar banho, estar uma hora no sofá e dormir. Se no início a coisa se passou (até porque nunca confinei, no que ao trabalho diz respeito) - porque haviam séries para ver, porque era Inverno e sabia bem estar debaixo da manta, porque até me sabia bem almoçar em casa - neste momento estou exausta da repetição dos dias. Sinto que a vida me está a passar pelos dedos e, neste caso, não há mesmo nada que possa fazer. Sinto que estou a envelhecer, mas que não vivi.

Estamos todos com a vida resumida ao seu sumo, ao essencial dos essenciais. E é uma tristeza. Quem gosta de fazer desporto não pode ir jogar futebol com os amigos, andar de bicicleta e passar uma fronteira qualquer, nadar ou fazer uma jogatina de ténis. Há duas semanas não podíamos sequer passear à beira-mar ou sentarmo-nos na praia. Não se pode pescar. Quem gosta de ir às compras não pode comprar nada a não ser arroz, pão e outros bens com os quais não conseguimos de facto viver. Não podemos estar com a nossa família. Não podemos ir a um restaurante, nem comer fora num dia especial. Até há dias nem ao parque podíamos ir, para fazer um picnic. Nem um café em chávena de porcelana estamos autorizados a beber, quando vamos à padaria. Não podemos viajar. Não podemos sorrir a um desconhecido - porque isso significa que estamos sem máscara perante alguém que não partilha casa connosco.

De alguma forma sinto que o desânimo começa a ser geral; tentamos compensar os mais próximos com palavras motivadoras e de esperança, mas no fundo estamos todos no mesmo poço - uns mais fundo que outros. Uns dias mais acima, outros mais abaixo - e assim vamos andando. Sinto isso até na rádio, onde já não parece passar música feliz! Só ouço a "Viagem", do Tiago Bettencourt, a "Por um Triz" da Carolina Deslandes, a "It's a sin" e outras que tais, tão lindas quanto pesadas. Sou só eu?

Estamos numa prisão ao ar livre, em que temos a chave da cela na mão mas não a podemos utilizar. Coisas simples como atividades para descomprimir ou aliviar os nervos foram suprimidas da nossa vida e estamos reduzidos ao trabalho e à vida doméstica. Vivemos, mas não saboreamos. Tudo aquilo que dava sabor à nossa vida foi-nos retirado.

Cheguei ao ponto de loucura em que já tenho saudades de ir jogar padel (eu, que odeio desporto)!!! Tenho saudades de ir comer picanha e um prato de sashimi variado. Tenho saudades de viajar, da adrenalina de sair de um avião e estar num lugar desconhecido. Tenho saudades de receber pessoas em minha casa e jogar jogos de tabuleiro. Tenho saudades de ir fazer compras, de escolher roupa ou coisas para casa. Tenho saudades de estar com a minha família toda. Tenho saudades de ir a um concerto. Tenho saudades de fazer um escape game. 

Acho que se tivéssemos a capacidade de olhar para a nossa vida (e o mundo) de cima, quase como estando no céu, não nos acreditávamos no que nos está a acontecer. Hoje aceitamo-lo porque vemos a desgraça à nossa volta, porque sentimos e temos medo, porque cedemos à pressão e ao inevitável. Mas, na verdade, fomos obrigados a abrir mão de alguns dos nossos direitos mais básicos - nomeadamente a liberdade. E se há dois anos nos dissessem que hoje íamos estar presos, "açaimados" e com tudo fechado, tenho quase a certeza que não acreditaríamos. Dávamos tudo como garantido. E, como diz o outro, éramos felizes e não sabíamos.

A todos os que estejam com um muro à frente, como eu, é pensar que isto há-de passar. E vai melhorar.

22
Nov20

Olá? Está alguém desse lado?

Um desabafo sobre rotinas e reajustes

Alguns anos depois da minha irmã ter saído de casa dos meus pais eu ocupei o quarto dela. Não por ser maior, mas por ter mais luz. Pedi-lhe autorização e fui de móveis e bagagens para o quarto na outra ala da casa - e foi lá que fiquei até sair. Na altura da mudança achei que me ia enganar dezenas de vezes no caminho para o quarto; que ia continuar a virar à esquerda no corredor quando agora tinha de virar à direita. E desde o dia em que para lá fui que nunca me enganei. Nem uma vez. A mudança na minha cabeça foi automática e a rotina pareceu nunca ter sido alterada.

Mas nem todas as mudanças são assim. Saí de casa dos meus pais (vou chamar-lhe assim para vos facilitar a vida, pois para todos os efeitos continuo a considera-la a ser a "minha casa") há sensivelmente um ano e a minha cabeça ainda não se ambientou. Não é que me engane e vá para casa dos meus pais quando quero ir para a minha, ou vice-versa; trata-se mesmo de, mentalmente, ainda não estar totalmente situada. Acontece-me muito acordar de noite desnorteada, pensando estar no meu antigo quarto. Não me faz sentido estar a ver luz num determinado sítio, nem ouvir barulhos da rua... e por momentos tenho de me re-localizar. "Ah, espera. Não estou no meu quarto. A porta é ali. Tenho alguém a dormir ao meu lado".

Acho que isto acontece porque a minha saída de casa foi dos maiores desafios da minha vida, um ajuste constante, uma dor terrível. Não lhe chamo decisão (porque não foi), mas sim um acontecimento natural - fui ficando e ficando... até que um dia fiquei de vez. E se por um lado isso tornou as coisas mais soft, por outro não houve o romper de toda uma rotina que até aí tinha vindo a construir.

O que fiz foi adequar a minha rotina - e a minha vida - às minhas duas casas; às pessoas mais importantes para mim - os meus pais (e irmãos) e o meu namorado. E essa rotina, hoje, não é igual há de um ano quando tudo se transformou. Muda constantemente, num incessante equilíbrio de uma balança com muito mais de dois pratos. Isto porque também eu tenho de entrar na equação - preciso de ter tempo para mim, para as minhas coisas, para estar mentalmente sã. Porque também tem de entrar o meu trabalho, a minha nova vida doméstica e a parca vida social que me resta. E eu vou constantemente mudando, adequando, tentando, ajustando. Até acertar.

Houve uma altura em que tirava as pré-manhãs (o tempo que estou em casa entre acordar e ir trabalhar) para fazer coisas que gostava: tocava 15 minutos de piano, às vezes começava um texto ou acabava de editar outro... Mas era um tempo tão limitado que passava-o constantemente a olhar para o relógio, a saber que tinha de sair dali a cinco minutos. Entretanto, através da Rita Ferro Alvim, descobri o método da "fly lady" (trabalhado pela Secret Slob), que pretende optimizar e organizar a limpeza de uma casa; diria que a base deste método é nunca deixar as coisas em modo-caos, de forma a que em pouco tempo consigamos ter tudo minimamente organizado sem perdermos uma vida a arrumar a casa. Não me quero esticar sobre este assunto (no instagram da Rita há um destaque só dedicado a isto), até porque estou longe de ser especialista e não implementei o método na íntegra, tendo aproveitado apenas algumas coisas que achei que poderiam fazer diferença no meu dia-a-dia.

Alguns exemplos: deixar o lava-loiças limpo à noite e no dia seguinte arrumar logo de manhã toda a loiça que esteve a secar ou na máquina de lavar; fazer a cama antes de sair de casa (não fazia porque preferia deixar a arejar, mas a verdade é que chegava à hora de deitar e só puxava os lençóis para cima e não entrava numa cama feita, tal como gosto); tirar dois minutos do dia para arrumar o(s) hotspot(s) - locais onde temos tendência para acumular tralha (no meu caso é o banco da entrada e a cadeira que acumula roupa no quarto). O objetivo é não deixar acumular tudo para o final do dia, em que já temos de fazer jantares, estender, apanhar e dobrar roupas, entre tantas outras tarefas que fazem parte do dia-a-dia da maioria das famílias. 

Assim, no que diz respeito ao equilíbrio em termos de tempo que dedico às pessoas que amo, diria que o dia é dedicado à família (tomo o pequeno-almoço com a minha mãe e irmã, almoço com os meus pais e por vezes irmãos) e o fim do dia ao meu namorado. A premissa é simples: passar tempo de qualidade com cada um deles. E isso implica uma gestão de tempo muito bem calculada.

No meio disto tudo nem sempre sobra tempo de qualidade para passar comigo mesma, para os meus passatempos. Tocar piano. Tirar fotografias, editá-las. Escrever.

Apesar de às vezes até me sobrar tempo nas alturas em que é suposto - quando o jantar acabou, a cozinha está arrumada, o banho tomado e o sofá e a manta à minha espera -, hoje em dia não consigo ter a disponibilidade mental que tinha há dois anos para conseguir fazer certas coisas. Chego às 21h mentalmente exausta - do trabalho, do planeamento rígido da minha vida, do stress constante em que já me estou a habituar a viver. E talvez por isso (ou por influência do meu namorado) tenha de dormir mais do que antigamente, para no dia seguinte ter forças para fazer tudo de novo. Escrever e até ler exigem um tempo, uma concentração e uma dedicação que, neste momento, não consigo dispensar a essas horas. Preferia mil vezes escrever do que ter visto uma ou duas séries da Netflix - mas as séries não me cansam e, entre isso e jogar Candy Crush, prefiro algo cultural. 

Quando comecei a escrever num blog, fazia-o por necessidade de libertar a alma. Tinha 14 anos - e tinha tempo. Hoje tenho 25 - e aquilo que perdi em tempo ganhei em responsabilidades. Já passei por muitas fases em relação à escrita: já precisei de escrever de como quem precisa de pão para a boca; já me apeteceu não escrever; já me obriguei a escrever; houve alturas em que, em dois dias, escrevia textos para a semana inteira. Passei por fases de desleixo e por fases de um rigor imenso, quase digno de colégio militar. Já estive totalmente desinspirada e, outras vezes, inspiradíssima. Já estive cheia de motivação e ideias - mas também já estive desmotivada ao ponto de achar que não valia a pena continuar com esta página aberta.

Mas este blog é como a vida: ele continua. E por muito que me custe não o atualizar durante duas semanas, obrigo-me a aceitar esta realidade. Se ainda hoje acordo a meio da noite a pensar que estou no meu antigo quarto, completamente desnorteada, é sinal de que ainda não atingi o equilíbrio certo na minha vida - e não posso exigir de mim aquilo que exigia antes, como escrever todos os dias. A minha vida ficou virada do avesso e é natural que eu demore a encontrar as novas costuras. E, desenganem-se: o avesso não é uma coisa má - mas é uma coisa nova. E eu ainda estou a aprender como gerir tudo isto.

Não sei se vocês ainda estão desse lado - mas eu ainda estou aqui. E planeio ficar. 

Continuo a acreditar no ditado inglês que diz que "practice makes perfect" (a prática leva à perfeição). Continuo a desejar escrever todos os dias, porque sei que quanto mais escrever, melhor o vou fazer. Continuo a acreditar em sonhos - e que um dia vou escrever livros. E contínuo a achar que esta é a plataforma certa para ir treinando e ir ganhando uma base de leitores que, construtivamente, me fazem crescer e ser melhor a todos os níveis.

Sei que agora não escrevo todos os dias - mas gostava de o fazer e sei que um dia hei-de voltar a conseguir. E vocês? Ficam por aí?

25
Out20

Eu e o desporto: o que vai para além de uma má relação

É triste andar para trás nos arquivos desde blog - e já são nove anos de memórias -, selecionar as tags "desporto" e "educação física" e perceber que o elo comum em quase todos os posts é a desistência. Não se pode deixar de ver o lado da tentativa, claro - foram muitas as resoluções de ano novo (ou os números deprimentes na balança) que resultaram em inscrições em ginásios e outras experiências; mas saber que tudo isso culminou sempre num fracasso não é uma sensação feliz.

Gostava de estar num lugar de paz em relação a esse assunto, mas não estou. O meu namoro trouxe ao de cima muita coisa que estava escondida em mim, no que diz respeito à atividade física. Tenho a sorte de ter ao meu lado um homem multi-facetado e que, neste caso, é o oposto de mim: é ótimo em tudo o que é desporto e gosta de o praticar. Para meu bem tem-me tentado afastar da nuvem negra que me acompanha neste campo, incentivando-me, ensinando-me com uma paciência e um amor como nunca ninguém tinha feito até aqui; chega ao ponto de entender o meu sofrimento, mesmo não o percebendo.

E se por um lado este esforço tem tido alguns resultados, por outro faz vir ao de cima muita coisa que tinha guardada. Há memórias que surgem do nada, enquanto tento lidar com a frustração de não conseguir fazer um serviço de jeito no padel ou de não conseguir levantar um peso nos workouts que de vez em quando faço em casa.

Lembro-me de quando se sentavam em cima de mim, forçando os meus músculos e articulações a esticarem-se ao máximo de forma a fazer a espargata (devido a uma ideia infeliz da minha irmã - embora bem intencionada - de me inscrever na ginástica acrobática).

Lembro-me de uma professora de educação física me chamar para um teste prático de ginástica (se a memória não me falha) e, como introdução, dizer "lá vem aí o desastre".

Lembro-me de na primeira aula de educação física do sétimo ano, de forma a tentar não prejudicar a minha equipa com as minhas fracas capacidades físicas, me esforçar tanto para correr e dar a estafeta ao colega mais próximo que caí, de cara direta ao chão e de forma tão desamparada que fiquei com um olho negro.

Lembro-me do que senti - a humilhação, a sensação de que o tempo não passava - quando, também no sétimo ano, a minha professora de dança propôs apresentarmos o nosso nome em forma de dança - no centro do pavilhão, com todos os colegas a assistir. Foi talvez a única vez em que amaldiçoei o meu nome. Porque não me chamar "Ana", "Rita" ou "Eva"? Porquê que o meu nome tinha de ter oito letras e eu não saber "escrevê-lo" em modo de dança?

Lembro-me do vaticínio de ficar sempre em último quando os professores davam a liberdade dos colegas escolherem as equipas na aulas de educação física.

Lembro-me de não ter par - porque todos escolhiam outros - e de ter de fazer os exercícios com o professor.

Lembro-me de ser a última a completar o "mega quilómetro" - a prova em que tínhamos de fazer um quilómetro no menor tempo possível - e de ter os meus colegas, com ar de frete de quem já está à espera há muito tempo, a olhar para mim enquanto cruzava a meta. 

Lembro-me de não aguentar um minuto em prancha e, por minha causa (em modo "um por todos e todos por um"), sermos todos obrigados a repetir a sequência de exercícios que já tínhamos terminado até ali.

Lembro-me da minha primeira e última aula de step, num ginásio, em que numa "aula básica" dei um tombo tal no soalho flutuante, depois de tropeçar naquele degrau do demónio, que parecia que tinha acabado de cair um meteoro em plena sala.

Lembro-me do stress e do pânico de ir para as aulas com o PT - algo que ainda hoje não gosto sequer de recordar. Lembro-me de ele me dizer que tinha de aguentar com aquela barra nas costas, que era a mais leve, e que a única alternativa era fazer o exercício sem nada (e da vergonha que isso me fez sentir). Lembro-me de só querer chorar, de ter vontade de vomitar. E de desaparecer, de uma forma geral.

Há uns tempos, a propósito do padel, que de vez em quando "tento jogar" - e a propósito de uma frase em que, obviamente, me auto-criticava -, uma amiga minha perguntou-me, admirada, se eu ainda tinha esta panca em relação ao desporto. Eu disse que sim - e, em modo brincadeira, acrescentei que isto só ia lá com terapia. Não é algo que tenha vontade de fazer (nem ache pertinente nesta altura da minha vida) mas, como diz o ditado, a brincar é que se dizem as verdades. E eu sinto que, mesmo sem ser num especialista, a terapia está a ser feita.

Tem sido este esforço que tenho feito em conjunto com o meu namorado - e a aposta incrível que ele tem feito em mim, um trabalho muito mais psicológico do que físico. E, como tal, tem envolvido uma mistura de sentimentos difícil de gerir - e muito choro, muita frustração, muitas gavetas de memórias que surgem do nada e que eu não queria abrir. É por ele que este ainda não é um post de desistência. E é por ele que, de vez em quando, ainda vou tentando.

Nesta fase, mais do que bater na bola, os desafios são outros. Não consigo tolerar o peso de uma equipa nos meus ombros; jogar a pares, como é o caso do padel, é muito difícil para mim, porque tenho a perfeita noção de que a minha inaptidão prejudica o meu colega de equipa - e mesmo sendo ele família, é algo com que não consigo lidar bem. Não consigo jogar tendo plateia a olhar para mim - e, por plateia, entende-se inclusivamente o par que está do outro lado da rede (que também é família). Não consigo ser competitiva - porque, neste campo, a vida me ensinou a perder - mas também não gosto que me forcem a querer jogar mais, atiçando-me, porque isso não me dá vontade de contra-atacar, mas sim de desistir. Eu não entro em nenhum desporto com a ambição de ganhar. Tentar, só por si, é uma vitória. E dentro da vitória vivem-se dentro de mim batalhas muito duras, difíceis de descrever por palavras, que duvido que algum dia se dissipem na totalidade.

Sinto que na altura em que tentava frequentar ginásios e via as minhas desistências como simples desistências - e as pessoas iam sugerindo outras coisas, e dizendo que não era assim tão mau e mandando alguns bitaites - eu não via a questão com a abrangência e profundidade que ela merecia. Eu estava só no início da escavação do buraco, quando na verdade ali existe uma cratera.

Um dia, ao ler um post no facebook de uma pessoa conhecida que falava também das suas memórias tristes em educação física, da pressão e incompreensão dos professores, da sensação de ser deixada para trás e gozada pelos colegas, eu percebi que não era a única. Não sei se na altura lhe chamou trauma, mas eu subentendi-o. E, olhando para tudo o que escrevi - e para o que tenho meditado sobre o assunto nos últimos meses - acho que o partilho. 

Estou no caminho de aceitar as minhas desistências todas ao longo destes anos - e, lá está, de tentar olhar para elas como tentativas. Estou a tentar perceber que, de facto, aqueles pequenos atos e vergonhas que passei em miúda - que sempre tentei desvalorizar, assim como todos à minha volta - deixaram uma mossa que não achei possível. E estou, aos poucos e com alguém que me compreende, que puxa por mim mas não desmesuradamente, a curar as feridas profundas que hoje percebo que tenho. Quer consiga ou não, sei, por certo, que ficarão cicatrizes. E - longe da vitimização - não me permitirei mais desvalorizá-las.

13
Set20

Um ano de tatuagem. Arrependimento?

Fez há dias um ano que fiz a minha tatuagem. Mentiria se dissesse que foram muitas as vezes em que falei sobre ela - e foram ainda menos as ocasiões em que me fizeram alguma pergunta (em grande parte porque durante a maior parte do tempo uso relógio, fazendo com que ninguém note que tenho a pele marcada para a vida). Ainda assim, quando o assunto vem à baila, a pergunta é sempre a mesma: "doeu?". E eu acho curioso como isso não reflete aquele que foi o meu maior receio na altura, mas que por outro lado demonstra muito do estilo de vida atual: o pensamento focado no agora, sendo que o futuro a ele o pertence. A mim apoquentava-me a ideia do arrependimento, do poder mudar de ideias. Não eram os 15 minutos de dor; era o futuro, os anos que tenho pela frente, que me preocupavam.

Entretanto, desse futuro de que receava, já passou um ano. Arrependimentos: zero.

Gosto muito da minha tatuagem - e guardo dois momentos deste ano em que ela foi particularmente importante para mim. O primeiro foi em Dezembro, no dia em que fui operada à fístula criada por o quisto que tive no cóccix. Em momentos importantes sou muito de amuletos, de algo físico que me sirva de suporte e inspiração (uso normalmente peças dadas ou herdadas das minhas avós, curiosamente); no momento da entrada no bloco, por força das circunstâncias, uma pessoa vê-se despida de tudo - da roupa, dos anéis, dos adereços. Quase de si própria. A ideia que fica é que somos só um nome, associado a um diagnóstico que tem no seu foco uma cura - e que os bisturis, e todo aquele aparato de instrumentos que vemos à nossa volta, estão prontos a trabalhar sem se importarem com quem está deitado naquela cama. A solidão - e o medo, acima de tudo - que senti ali, enquanto estava sozinha (e foi por pouco tempo!), foram aterradores. E a única coisa que tinha para me agarrar, a única coisa que era minha no meio daquelas roupas e toucas e fios que estavam coladas ao meu corpo - e médicos, e luzes, e instrumentos, e aquele cheiro a éter que nos entra pelos pulmões até à alma - eram as minhas aspas. Foram elas a última coisa que vi quando me senti a desfalecer, um minuto depois de ter pedido encarecidamente para me porem a dormir e me tirarem daquele inferno. 

Uns meses mais tarde, no meio de uma crise de inspiração brutal - não só na escrita como na vida em geral, em que me sentia completamente incapaz de escrever o que quer que fosse e de completar uma tarefa com sucesso -, o meu namorado agarrou-me no braço e mostrou-me aquilo que eu tinha feito questão de desenhar na pele. E relembrou-me o porquê de a ter feito. Disse-me: "fugiste das letras, escolheste outro caminho, mas as letras não fogem de ti. Nunca". Fez-me ver que posso não escrever um dia, dois, cinco ou quinze; que de facto não o faço com a frequência que queria, mas que eventualmente ia voltar a fazê-lo - era só uma questão de tempo, porque as palavras não me fogem, só se escondem por uns tempos.

No fundo, um pouco como a minha tatuagem: anda quase sempre escondida, mas está sempre lá. Foi muito importante em momentos chave e, só por isso, já compensou o risco. Compensou o medo, a dor, o receio do futuro. Fez a diferença - e isso basta para ter valido a pena.

 

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06
Jun20

Ter ou não ter filhos: eis a questão

Devem ser muito poucos os temas que considero serem centrais na minha vida e que eu, durante estes nove anos, não tenha abordado no blog. Mas há um que, se a memória não me atraiçoa, eu fui desviando sempre: os filhos. Fi-lo porque não queria deixar aqui registada uma opinião (ou um conjunto de pensamentos) de que, no futuro, me pudesse vir a arrepender. Mas os anos passaram-se e nada mudou. E esta é uma questão que sempre tomou uma certa (des)proporção na minha vida precisamente por eu ter uma postura disruptiva em relação à maioria dos que me rodeiam.

Eu nunca quis ter filhos.

Não me lembro de, em nenhuma fase da minha vida, os querer ter tido - nem mesmo quando não sabia o que isso implicava (e falo desde a sua concepção, passando pelo nascimento e terminando na educação de uma criança). Recordo-me de brincar (poucas vezes) com nenucos, com as minhas primas, e de não lhes chamar filhos. Eu não queria filhos. Nunca quis. Ainda hoje não faço questão de os ter.

"Isso passa-te".

"Nunca digas nunca".

"Com a idade vais ver que queres."

Quem está nos meus calcanhares sabe que são estas as frases que preenchem a nossa vida, no que a este tema diz respeito. Sobre isto todos se tornam leitores da sina: todas as pessoas sabem o nosso futuro, como se não existissem excepções à regra. Como se não houvesse, de facto, pessoas que não queiram pôr crianças no mundo.

A sensação é de incompreensão total. 

Tudo isto piora quando se está numa relação estável e, a olho nu, todas as condições estão reunidas para que o casal possa finalmente procriar. São chamados os "três estágios de perguntas-de-tias" - sendo que, hoje em dia, o segundo se vai saltando com alguma frequência. Quando se está solteiro a pergunta é sempre a mesma: "então e namorados, nada?". Já quando se arranja namorado todas as atenções se viram para o nosso anelar - "estamos à espera de casório!!!". Se a segunda fase for ultrapassada (por questões religiosas, monetárias ou, simplesmente, por teimosia dos visados), chegamos ao terceiro estágio: "então e bebés?!?!?!". 

Se a pressão é enorme para todos os que estão nesta fase, pior é para aqueles que têm um desejo diferente da maioria e que ousam dize-lo em público. "Eu não quero ter filhos". A frase é seguida por olhares reprovadores ao longo de toda a mesa, de julgamentos mentais e, acima de tudo, de desprezo para com os "pobres coitados que ainda não sabem o que querem e que, com a mania que vão mudar o mundo, ainda o dizem em voz alta". Afirmar que não se quer ter filhos é ainda hoje visto como uma afronta àquilo que é o propósito da vida. É uma coisa de adolescente revolucionário. De quem ainda não cresceu o suficiente para não sentir o chamamento. 

O problema é quando a idade passa e nós mantemos as nossas convicções. É o meu caso. Fui esperta o suficiente para adotar um discurso que, ainda que honesto, fosse flexível o suficiente para um dia mudar de ideias: sempre disse que, apesar de não ter o desejo de ter filhos, a possibilidade ficaria em aberto se encontrasse alguém que quisesse dar continuidade à família. Como via a minha vida como um caminho solitário, solteira, nunca foi uma preocupação - mas, entretanto, encontrei a pessoa ideal para mim. De tudo o que fomos falando - e isto aconteceu logo numa fase inicial -, este sempre foi o nosso único ponto de discórdia. Ele, um autêntico encantador de crianças, gostava de ter filhos. Eu fui sempre clara no meu desejo "anti-natura" e quis que ele soubesse que isto era um problema - e se ele fizesse questão de ter herdeiros, então eu preferia que cada um seguisse a sua vida. A decisão é hoje óbvia: estamos juntos. Como sempre disse - e não menti - a possibilidade está em aberto. Mas transformou-se num monstro que me persegue de cada vez que alguém me vem com o terceiro estágio do discurso-das-tias ou até pelo simples facto de ver o meu namorado a interagir de forma carinhosa com uma criança.

Sinto-me culpada. Culpada por, eventualmente, o privar de uma coisa que ele deseja. Culpada por ser assim, "diferente"; por pensar tanto no assunto, por racionalizar uma coisa que a grande parte das pessoas olha de um ponto de vista emocional. Eu não quero ter filhos porque não me agrada a ideia de uma gravidez - não gosto sequer de pensar na mudança de corpo e na bomba atómica hormonal em que ele se transforma. Detesto a ideia do parto. É-me totalmente estranha a romantização da amamentação. Porque dispenso a privação de sono, a privação de momentos só para mim, a privação de momentos a dois. Porque não me atrai a ideia de ter alguém ao dependuro durante todo o dia, dependente de mim a 100%; porque não gosto de pensar que não posso ir de férias para o outro lado do mundo porque não vou pôr a criança num avião durante 21 horas. Porque, ao contrário de muitos, para poder fazer tudo isto de que me vou privar, não quero deixar um filho - uma decisão minha, uma responsabilidade minha, um dever meu - à mercê de outros (ainda que família) que não têm de levar com uma criança aos berros e limpar cocós só porque me apetece ir passear. Porque não gosto do risco de pôr um ser no mundo que, por muito boas intenções que eu tenha e boa educação que lhe dê, pode vir a ser um traste. Porque nem sequer gosto particularmente de crianças. Porque me agonia a ideia de viver para alguém, dedicar-lhe a minha vida, e passado vinte e poucos anos ele me dizer que quer ir de erasmus para ter novas experiências e conhecer novas pessoas.

Percebem a ideia?

Não há nada na ideia de ter um filho que me agrade. Posso listar uma série de razões pelas quais gostava de ter crianças - mas nenhuma delas me envolve a mim. É sempre a pensar nos outros - na alegria e no prazer que lhes daria ao ver crescer a família. E, para mim, acima de tudo... ver nascer um pai. 

Muito para além dos medos físicos que possa ter (sim, estamos a falar do parto) o maior tem que ver com a parte psicológica. Há outros que nem sequer se colocam: não tenho medo de não amar o meu filho, de não conseguir cuidar dele e educa-lo; não tenho medo do acréscimo de responsabilidade. Tenho a certeza de que o faria bem. Mas tenho um pavor colossal de que o papel de mãe faça de mim uma pessoa infeliz. Tenho a certeza absoluta que há muitas mulheres com filhos que não são felizes naquele papel - mas também sei que a maioria não consegue ser racional o suficiente para o perceber ou pelo menos entender a razão do problema. Também sei que, quem o sente, não o diz - afinal que tipo de mãe é que diz uma coisa dessas? Que ingratidão é essa, ter o privilégio de deitar um ser ao mundo e não usufruir de tal coisa? Quem é esse "ser horrendo" que admite que era mais feliz antes de ter filhos? Quem é que consegue ser tão racional ao ponto de amar um filho até às entranhas mas saber que ele não veio alterar a sua vida para melhor? É um paradoxo gigante para o qual não estamos preparados. É um julgamento pessoal demasiado pesado para se conseguir lidar - e muito menos aceitar. E é uma dor que acresce às outras, numa pessoa que já se encontra só por si dorida e frágil na posição que se encontra.

Cheguei à idade que sempre achei que seria a ideal para procriar: porque o corpo recupera bem, porque sou nova e tenho mais capacidade para lidar com a falta de sono e os problemas normais que surgem quando se tem um bebé. Fui uma filha tardia, ambos os meus pais com mais de 40 anos na altura, e sempre disse a mim mesma que, se um dia me tornasse mãe, não gostava de os ter assim tão tarde - tão simplesmente porque sinto na pele as consequências de ter pais mais velhos e detesto a ideia de os poder perder ainda em tenra idade. Costumo dizer que, comparado com os meus irmãos, terei eternamente menos anos de convivência com os meus pais - tudo porque eles me levam um belos anos de avanço; eles ficarão inevitavelmente com mais memórias, porque passaram com eles mais anos de vida. E eu não quero que, para os meus filhos, isso seja uma questão.

Tenho tentado procurar respostas com base na experiência dos outros - mas são poucas as pessoas que me interessa ouvir. Apesar de pertinentes, não é importante para mim ouvir histórias de mulheres que sempre quiseram ter filhos, porque sei que nunca me compreenderão. Mas conhecer algumas pessoas que têm filosofias e medos parecidos com os meus é-me essencial. Independentemente de terem cedido à pressão da sociedade e do relógio biológico, acabando por ter filhos, ou tendo-se mantido convictas na sua crença: o que me importa é a capacidade de análise, a racionalização e, claro, a honestidade. Perceber qual a sua percepção dos resultados: abdicar de tudo aquilo que idealizavam como a vossa vida ideal em prol de um filho compensou? Os medos que existiam eram justificados? Ou, depois de se passar de "prazo de validade" há remorsos em não ter filhos? 

No fundo eu não quero ser mãe: mas gostava muito, muito, muito de querer ser. Gostava de ser quem não sou. E, talvez por isso, vivo diariamente assombrada por uma pergunta: devo correr o risco? Porque nesta decisão em particular não há volta atrás; não há botão de delete, não há um papel que se assine e que acabe com aquela responsabilidade. Estou dentro de uma panela de pressão com todos os ingredientes que, na minha cabeça, defini serem os ideias para ter filhos: tenho uma vida estável, um namorado com desejos de ter uma família e estou na idade que acho ser a perfeita para ter crianças. Mas, ao contrário das previsões do resto do mundo, eu não mudei. Continuo com as mesmas ideias que tinha - ainda que gostasse muito de dar esse presente a todos os que me rodeiam. E isso pesa-me na consciência. Na cabeça. No coração. E na alma. É uma dor enorme, uma dúvida com a qual me debato todos os dias - e que sei que nunca terá uma resposta certa. E, por pouca matemática que saibamos, é certo que as contas que não dão um resultado exato são sempre as que nos dão mais dores de cabeça a resolver.

16
Abr20

38 não é só um número de calças - é de auto-estima

No início do ano ganhei coragem para ter um encontro com a balança. Depois chorei. 

Há momentos na vida que são de reviravolta e não têm de ser necessariamente especiais ou bonitos. Não há uma fórmula mágica. Lembro-me perfeitamente de há uns dez anos me ter olhado ao espelho, enquanto mexia na cara, e reparei no quão horrorosas estavam as minhas unhas roídas. Deixei de as roer a partir daquele momento. Foi um clique.

Aqui também foi um bocadinho assim. Não se emagrece tão rápido como se deixa de roer as unhas, mas aquilo despoletou uma ação. Passados vinte minutos estava a ligar para uma clínica de nutrição e decidi-me mesmo a perder o peso a que me tinha proposto (na altura até escrevi aqui, nos meus objetivos, que queria despedir-me de pelo menos 5kgs).

Demorei mais uns dois meses até voltar a subir à balança; as calças já começavam a ficar largas, mas eu tinha medo de que o esforço não estivesse a dar resultados. Quando ganhei forças vi que tinha perdido quase seis quilos. Vitória! Fiquei tão feliz! E agora que já tenho uma série de hábitos enraizados, decidi que queria ir pelo menos para os 60kgs - na loucura até um bocadinho menos, que sempre foi o meu peso de sonho.

E depois apareceu o Covid-19. Não sou das que está em casa e precisa de deixar mensagens no frigorífico para me lembrar de que não tenho fome, mas nestas coisa das dietas a rotina é muito importante. E, mesmo continuando a trabalhar,  muito mudou. Para além disso o fator stress também tem de entrar em conta - há quem coma mais para compensar, há quem coma menos. Eu sou das que me vingo na comida (obviamente...).

Ainda assim digo, com orgulho, que devo ser a única pessoa no país inteiro que, desde que isto começou, não fiz um pão ou um bolo. Comecei a dieta numa altura cheia de aniversários e festas e jantares e dei por mim a ter de saber gerir esta questão: por um lado não posso não comer (podendo até passar por mal educada), mas por outro não posso aproveitar a situação para me vingar e comer por todos os dias em que não o fiz. 

Por isso, neste momento, limito-me a tentar levar essa estratégia avante (nomeadamente com a Páscoa e seus  pães-de-ló e amêndoas do demónio) e, pelo menos, não engordar. No entanto, graças às mudanças de rotina e de horários, surgiu algo positivo: comecei a treinar! Corrijo: o meu namorado começou a treinar. Eu vi-o uma e outra vez a suar as estopinhas ali à minha frente, enquanto copiava os exercícios que passavam na televisão, enquanto eu continuava refastelada no sofá a ler o meu livro. Até que fiquei com vergonha de mim própria e da minha falta de força de vontade. Resultado: treinos de meia hora a 45 minutos, cinco vezes por semana (fazemos descanso de três em três treinos). E a verdade é que se antes emagreci, hoje sinto-me mais tonificada (em relativamente pouco tempo). 

No meio de tudo isto as calças iam-me começando a cair pelo rabo abaixo. Um dia, mal entrei em casa, disseram-me: "essas calças ficam-te horríveis de tão grandes". E, aproveitando os Shoppings Days da Mango, mandei vir uma série de calças 38 - número que não visto há, seguramente, seis ou sete anos (senão mais). Quando chegaram fiquei nervosa. Quando me serviram fiquei estupidamente feliz.

Sempre me irritaram as discrepâncias dos tamanhos das roupas de marca para marca - e sei que algumas calças que tinham escrito "40" eram, na verdade, um 42 (embora, mentalmente, não o aceitasse). E, também por isto, é errado medirmo-nos por uma tabela que não é constante. No entanto é inevitável não sentirmos a felicidade de fechar um botão que, há três meses, não conseguiria caber na sua casa. E é também uma responsabilização acrescida das minhas próprias ações, sabendo que consegui e lutei por caber naquelas calças - e que terei de as manter se quiser continuar a entrar nelas e a apertar o fecho. E, acima de tudo, é aprender a gostar mais de mim. A não desviar o olhar do espelho quando entro na banheira. E perceber que não sou perfeita, mas que ao menos lutei para me sentir melhor com o meu próprio corpo.

 

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